“A curiosidade deles por nós já tinha sido estimulada quando repararam no nosso hábito de deixar os sapatos à porta. É claro que se tivéssemos sido mais inteligentes teríamos percebido como isso é um hábito peculiar para uma dona de casa portuguesa. Ao ver os nossos sapatos, a velha empregada perguntou a um de nós: ‘Vocês são aquele tipo de pessoas que seguem aqueles gurus orientais?’. Para além disso, eles certamente viram as longas túnicas brancas do Osho penduradas no estendal todos os dias. E, se viram, o que é que pensaram? Não era óbvio que essas roupas fossem do próprio ‘guru oriental’. Mas as túnicas também não eram certamente roupas típicas de turista.”
O episódio aconteceu em julho de 1986, na grande casa empoleirada na montanha, em Sintra, no meio da floresta densa, com vista para o Palácio da Pena. A recordação é de Maneesha James, nascida Juliet Forman, que descreveu o momento no seu livro Osho: One Man Against the Whole, Ugly Past of Humanity (sem edição em português, tradução aproximada: “Osho: Um homem contra todo o feio passado da Humanidade”). “Eu fiz parte da festa”, lembra a própria ao Observador, numa entrevista via Skype, sobre a sua participação na chamada “World Tour” de Osho — ou seja, a viagem do guru por uma série de países de onde foi sendo repetidamente expulso ou onde a entrada lhe foi recusada.
“O principal motivo pelo qual andávamos de um lado para o outro é porque estávamos a ser perseguidos pelo governo americano”, alega Maneesha. “Muitos países tinham esta ligação à América, porque eles enviam dinheiro. Tivemos de sair do Uruguai, tivemos de sair da Jamaica… Foi uma experiência muito educativa e esclarecedora, perceber como os chamados ‘países democráticos’ estavam sob o jugo da América e da sua influência tremenda no mundo.”
No centro da “perseguição” estava o envolvimento de Osho — à data ainda chamado “Rajneesh” pelos seus seguidores, tendo alterado o nome em 1989 — nos crimes pelos quais foi condenado nos Estados Unidos. Em outubro de 1985, Rajneesh foi acusado de envolvimento num esquema de imigração fraudulento para os EUA e suspeito de conspiração.
Alguns dos seus seguidores, nomeadamente a secretária pessoal Ma Anand Sheela, foram acusados de crimes mais graves, como homicídio na forma tentada: em causa estava o alegado primeiro ataque bioterrorista da história americana, com Sheela a tentar envenenar uma cidade inteira com salmonella para influenciar a participação nas eleições locais. Sheela acabaria por cumprir 39 meses de prisão, mas até hoje continua a declarar a sua inocência. “Foi um processo com motivações políticas. E os Estados Unidos são famosos por este tipo de situação”, declara em conversa com o Observador.
A intoxicação alimentar, provocada ou não pelos rajneeshees foi entendida como o culminar de uma disputa amarga pelo controlo político da cidade de Antelope, no Oregon, por uma comunidade religiosa e os habitantes locais. A polémica duradoura — que envolveu um ataque à bomba a um hotel de Rajneesh, sem-abrigo trazidos em massa pelos sannyasins (como eram conhecidos os seguidores de Osho) para votar, e muitas armas de parte a parte, foi retratada e popularizada graças à série “Wild, Wild Country”, lançada pela Netflix este ano.
“Wild Wild Country”: a história de uma seita que é mais empolgante do que qualquer série
Ao que o Observador conseguiu apurar, Portugal acabou por ter um papel pequeno nesta história, com um número de sannyasins e comunas internacionais bastante reduzido — ainda que tenha sido ponto de passagem e esconderijo para os dois protagonistas mais influentes de toda esta saga. Mas é melhor começar pelo princípio: o local chamado Rajneeshpuram, o paraíso para uns e a fonte de todos os males para outros.
Uma cidade erguida do nada que ficaria na História pelas piores razões
“Fizemos História ali.” É assim que Sheela Birnstiel (nome atual de Ma Anand Sheela) resume ao Observador a experiência em Rajneeshpuram, a cidade criada de raiz pelos sannyasins em Antelope, no Oregon. “Deixa-me muito orgulhosa. Foi uma experiência de aprendizagem que acontece uma vez na vida.”
Atualmente a viver na Suíça, onde trabalha e gere dois lares para idosos, Sheela guarda muito boas recordações do projeto megalómano que liderou nos Estados Unidos, construindo uma comuna com capacidade para sete mil pessoas onde, para além de casas, existiam lojas, restaurantes e até uma discoteca e um casino. O objetivo era criar um lugar onde os seguidores de todo o mundo do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh se pudessem concentrar. “Sentia-se ali a energia de centenas de jovens que se estavam a divertir com este trabalho criativo”, recorda Sheela. “Eu diria que todas as nacionalidades do mundo estavam ali representadas, mesmo que numa percentagem muito pequena.”
Funcionando numa comunidade altamente organizada, todos os elementos do grupo contribuíam de alguma forma para fazer de Rajneeshpuram o tal paraíso na terra, onde se praticava a Meditação Dinâmica (que envolvia ações altamente físicas como saltar, gritar ou chorar), onde as pessoas se vestiam com as cores do pôr-do-sol e onde todos os dias a multidão se abeirava da estrada para ver Rajneesh passar dentro de um dos seus 93 Rolls-Royces.
Valter Cardim foi uma das milhares de pessoas que se juntaram à beira dessa estrada para ver um vislumbre do guru, durante o mês que passou em Rajneeshpuram. O brasileiro, vindo da comunidade Soma em São Paulo, teve autorização para ficar um mês no rancho, a fim de participar no festival de Guru Purnima — mediante um pagamento de cerca de mil dólares para assegurar estadia e alimentação. Estávamos no início da década de 80. “Aquilo era de uma organização ímpar”, recorda Valter que, atualmente, vive em Lisboa. “As casas de banho estavam sempre limpas, havia restaurantes por todo o lado… E todas as noites tínhamos o Satsang com ele”, conta ao Observador. O Satsang era a reunião de grupo em que o próprio líder da comunidade participava — mas a visita de Valter coincidiu com o momento em que Rajneesh estava em silêncio, falando apenas em privado com Sheela.
Assim, restava ao arquiteto aproveitar as outras valências da comunidade: acordar todos os dias bem cedo e sair da tenda que partilhava com três alemães, participar na meditação das 5h da manhã em cima de uma montanha para ver o sol nascer e passar o resto do dia a usufruir das várias atividades e meditações que Rajneeshpuram proporcionava. As experiências imperdíveis, segundo Valter, eram o momento em que Rajneesh passava no seu carro e o Satsang, à noite.
“Havia muitos alemães, muitos americanos…”, recorda Valter, que se lembra de ter conhecido apenas um português em Rajneeshpuram, um terapeuta cujo nome como discípulo era Prashantam. A própria Sheela reconhece ao Observador que não havia muitos portugueses na comunidade. Ainda que, no documentário “Wild, Wild Country”, seja a própria Sheela quem menciona a existência de uma comunidade de seguidores de Rajneesh em Portugal. “Nós éramos conhecidos por toda a Europa, falei de Portugal para ilustrar isso”, explica ao Observador. “Mas o número de seguidores não era como o da Alemanha ou o da Holanda.”
A comuna em causa poderia ser a de um centro estabelecido por um casal estrangeiro em Penacova, onde o próprio Valter esteve num retiro: “Quando cheguei a Portugal, encontrei uma divulgação do centro de Penacova e fui. Era uma hospedaria que tinha meditação. Isto em 1990. Achei que era no fim do mundo”, conta o arquiteto, que recorda como teve de apanhar o comboio para Coimbra e depois um autocarro demorado. “Era gerida por dois estrangeiros, penso que belgas. Quando lá estive, eu era o único hóspede.”
Quem também esteve em Rajneeshpuram foi a australiana Maneesha James, a sannyasin que acompanhou Osho na viagem a Portugal. Ao contrário de Valter, Maneesha integrou a comunidade permanente e não fez apenas uma visita esporádica. “Tive tantos empregos diferentes ali… Trabalhei na madeireira, fui coordenadora dos eletricistas, fui empregada de mesa. Ajudei a construir casas, lembro-me perfeitamente de estar em cima de um telhado com neve, de agrafador na mão, a tentar repará-lo”, diz a antiga estudante de enfermagem australiana. “Lembro-me de estar a limpar casas de banho no meio do verão e de me despir até às cuecas e cantar alto, porque estava sozinha, enquanto limpava aquilo!”
Maneesha chegou a Rajneeshpuram não por ter vontade de ir para os Estados Unidos, mas para acompanhar o líder. Seguidora de Osho desde 1974, altura em que visitou pela primeira vez o ashram de Puna, na Índia, acabaria por ir atrás do resto da comunidade sete anos depois, quando o grupo se mudou em massa para o Oregon. “Foi uma experiência brilhante, aprendi muito e ri muito”, resume. “99% das pessoas não fazia ideia do que a Sheela andava a fazer. Foi um pequeno grupinho de pessoas à volta dela, enquanto os outros como eu andavam a divertir-se imenso a erguer uma cidade inteira. Numa terra que era quase deserto no Oregon, numa terra que tinha sido explorada e abandonada, críamos ali uma linda cidade.”
“Aquilo que a Sheela andava a fazer” foi, de acordo com os procuradores norte-americanos, provocar uma intoxicação alimentar a 751 pessoas, espalhando salmonella num bar de saladas de um restaurante local, com o objetivo de deixar “fora de combate” os eleitores de Antelope que se opunham a Rajneeshpuram — e apanhando pelo meio o comissário do condado local e um juiz. O principal objetivo, creem os procuradores, era o de matar estas duas pessoas. Sheela nega que o tenha feito, mas não nega outros planos que pôs em marcha e que foram igualmente polémicos, como armar grande parte da comunidade ou trazer milhares de sem-abrigo para Rajneeshpuram para que estes pudessem votar nas eleições a favor da comunidade — sendo posteriormente sedados, quando alguns se tornaram violentos.
“Ter armas foi plenamente justificado”, argumenta Sheela. “O direito a ter armas está na Constituição americana, nós éramos ameaçados todos os dias e isto era a nossa forma de dissuasão — que nunca foi utilizada, quer dentro quer fora de Rajneeshpuram. Não éramos uma comunidade criminosa e tudo o que fizemos foi dentro da legalidade. Se alguém quebrou a lei foi o Governo do Oregon, que nos assediou e chegou a criar leis retroativas para nos prejudicar.” O diferendo começou entre a comunidade e os moradores, mas a rápida expansão e controlo da política local por parte dos rajneeshees levaram as autoridades do Oregon a reagir, alegando que não estava a ser cumprido o princípio de laicidade do Estado.
Maneesha, que admite que Sheela terá levado a cabo ações criminosas, considera, no entanto, que a população de Antelope não soube conviver com a comunidade de seguidores de Osho. “Eles diziam-se cristãos, mas trataram-nos de uma forma muito pouco cristã. Sentiam-se ameaçados. Nós vestíamo-nos de vermelho, dançávamos e cantávamos e não tínhamos vergonha da sexualidade, que considerávamos algo bonito. Claro que, politicamente, também tiveram medo de nós e por isso chamaram-nos uma seita sexual… Eles faziam t-shirts com a cara do Osho e uma mira telescópica por cima!”, queixa-se.
Que a tensão existia de parte a parte, não havia dúvidas. Mas também é certo que a Justiça americana não hesitou em acusar Sheela e o próprio Rajneesh de uma série de crimes, pelos quais Sheela acabou por ser condenada a 20 anos de prisão (cumprindo menos de 40 meses por bom comportamento).
Ritz—Estoril—Ritz—Sintra. O percurso de Rajneesh em Portugal
Enquanto Sheela era condenada, os advogados do próprio Rajneesh negociavam um acordo com os procuradores norte-americanos para uma pena suspensa e a saída do guru dos Estados Unidos. Rajneesh regressa então ao seu país, a Índia, mas o Governo decide retirar os vistos de entrada aos seus seguidores não-indianos, o que leva o místico a decidir sair também.
Maneesha era uma dessas seguidoras não-indianas que tinham decidido acompanhar Rajneesh. A ordem para acompanhar o mestre tinha vindo de cima, mas a australiana não se importou. O efeito que o guru tinha sobre si era magnético, desde a primeira vez que o viu, em 1974: “Era um homem tão bonito. Isto não era uma atração sexual, ele tinha para aí mais 17 anos do que eu. Mas tinha uma bonita pele cor de azeitona, enormes olhos castanhos, mãos delicadas de artista”, recorda Maneesha, mais de 40 anos passados, num discurso em tudo semelhante ao da própria Sheela, quando recorda o seu primeiro encontro com Bhagwan, como lhe chama, na série ‘Wild, Wild Country’. “Ele tinha uma postura de quem estava tão à vontade consigo próprio… E uma pessoa assim emite uma graça e uma doçura incríveis.”
Com esse fascínio mais do que vincado dentro de si, Maneesha juntou-se ao grupo que acompanhou Rajneesh por uma série de países, de onde tiveram repetidamente de sair por expulsão ou onde a entrada lhes foi vedada: Nepal, Grécia, Suécia, Reino Unido, Canadá, Irlanda, Espanha, Uruguai, Jamaica. Onde quer que a entourage de Rajneesh fosse, não conseguia permanecer. Foi então que o grupo orquestrou uma viagem para Portugal, como é mencionado de passagem na Autobiografia de Osho, reeditada este verão pela Pergaminho: “A 19 de junho de 1986, Osho voa do Uruguai para a Jamaica, onde obtém um visto de duas semanas, mas na manhã seguinte a polícia diz-lhe para partir até à noite. A 20 de junho, voa para Lisboa, em Portugal, onde fica tranquilamente numa vivenda alugada durante algumas semanas.”
Phil Mistlberger, antigo sannyasin e autor do livro The Three Dangerous Magi: Osho, Gurdjieff, Crowley (sem edição em português, “Os três perigosos magos: Osho, Gurdjieff, Crowley”, numa tradução livre), explica mais em pormenor ao Observador como foi essa chegada. Primeiro ficaram no Ritz, hospedando Rajneesh com um nome falso. Depois, tentaram mudar-se para um hotel no Estoril, mas o místico teve um ataque de asma no quarto e os seus seguidores acharam melhor retirá-lo dali e regressar ao Ritz. Ao fim de uns dias, conseguiram arranjar a tal mansão em Sintra, escondida na floresta. “Mas a neblina da floresta fez com que tivesse mais ataques de asma. Ele sempre teve uma saúde frágil”, conta Mistlberger.
Maneesha reforça que essa era uma grande preocupação para o grupo, mas diz que não era a única. O receio de que também Portugal pudesse decidir expulsar Rajneesh pendia sobre a cabeça de todos: “Ele era tão frágil que, obviamente, a nossa primeira preocupação era o corpo dele. Tínhamos connosco esta pessoa preciosa, este místico, e não nos deixavam ficar em lado nenhum por causa do longo braço do governo americano, achávamos nós. Iríamos ficar separados? Ele seria preso outra vez? Estávamos a viver no fio da navalha.”
O embate com as autoridades acabou por acontecer, mas de forma não oficial. O grupo começou a ser vigiado em Sintra por, creem os sannyasins presentes, polícias à paisana. Os homens em causa chegaram a fazer perguntas a alguns membros do grupo, como “quem são vocês?” e “o que fazem aqui?”. Contudo, a haver alguma intervenção do Estado português, não parece ter sido de forma oficial e muito menos orquestrada pelo governo norte-americano: o Observador consultou toda a correspondência diplomática de 1986 entre a embaixada portuguesa nos EUA e o Ministério dos Negócios Estrangeiros português e o nome de Rajneesh nunca é mencionado em nenhum dos telegramas desclassificados.
Rajneesh, no entanto, decidiu que era tempo de deixar de fugir. “Gostaria de voltar para a Índia em vez de viver desta maneira. Sei que a polícia já nos encontrou aqui. Vamos passar outra vez pela mesma tortura bárbara da polícia, a mesma expulsão de um país. Já me resta pouco tempo e tenho muito trabalho a fazer, que só é possível de ser feito se ficar permanentemente no mesmo sítio”, terá dito Rajneesh aos seus discípulos, de acordo com o livro “The Rebellious Enlightened Master”, do sannyasin Swami Gyan Bhed.
A 27 de julho de 1986, os seguidores de Rajneesh fizeram-lhe uma festa de despedida. “Não estávamos a roer as unhas ou a chorar. Só fez com que tudo o que estava a acontecer fosse ainda mais precioso e maravilhoso”, afirma Maneesha. E assim, tão discretamente como chegou e se estabeleceu por entre a neblina de Sintra, Rajneesh e os seus discípulos desapareceram num jato privado, numa manhã de verão, com destino a Mumbai.
A “senhora inglesa” que vivia no meio das árvores
À medida que toda esta “World Tour” do seu amado Bhagwan decorria, Sheela mantinha-se fugida na Alemanha, mas não por muito tempo. Três meses depois de Rajneesh chegar à Índia, a sua antiga secretária pessoal era detida e extraditada para os Estados Unidos, onde começou a cumprir a sua pena de prisão. “Estive 39 meses na prisão. A Existência protegeu-me durante todo o pesadelo. Deu-me o bom senso para evitar problemas e perigos. Deu-me uma intuição cristalina, que me guiou sem falhas. Aprendi muito nesses 39 meses”, avaliou a própria Sheela no seu livro de memórias Don’t Kill Him! The story of my life with Bhagwan Rajneesh (“Não o matem! A história da minha vida com Bhagwan Rajneesh”, sem edição em português).
Precisamente no mesmo livro, escrito em 2012, Sheela recorda como também ela acabaria por refugiar-se em Portugal, depois de sair da prisão: “Portugal é um país pobre. Eu também era pobre. Por isso senti-me imediatamente em casa. Tinha de criar um pequeno lar para mim aqui. As pessoas em Portugal são simples. As suas vidas giram à volta das necessidades diárias”, escreveu à altura. Mas, na obra, os pormenores sobre a estadia de Sheela em Portugal escasseiam: não é dito qual a cidade onde está, nem se conheceu portugueses, nem como foi lá parar. Há apenas referências a uma floresta de eucaliptos e a uma japonesa com quem travou amizade. Nada mais.
A passagem breve de Sheela por Portugal é confirmada num artigo do Oregonian, o jornal que fez aquela que é provavelmente a cobertura mais completa da construção e desabamento de Rajneeshpuram — mas, uma vez mais, faltam pormenores. Contactada pelo Observador, uma outra protagonista de ‘Wild, Wild Country’, Jane Stork, confirmou que Sheela esteve em Portugal, “algures em 1989”, mas não revelou muito mais informação sobre essa viagem. A antiga aliada de Sheela, que em tempos passeou por Rajneeshpuram armada com uma Uzi e que cumpriu pena pelo seu envolvimento nos crimes cometidos no Oregon, afastou-se entretanto do grupo e da própria Sheela, com quem não fala há 30 anos.
Com tantas dúvidas no ar, nada como perguntar à própria. E, se há lema que Sheela parece manter dos seus tempos como líder da comunidade, é que “não se desperdiça uma oportunidade de falar com os media”. A Sheela que em tempos utilizava no programa da televisão americana “60 Minutes” a expressão tough titties (uma forma pouco educada de dizer “azar”) para os que não gostavam de viver perto dos rajneshees, e que disparava asneiras e retórica dura em direto na TV, já não parece morar aqui. A “guerra” que existiu entre os sannyasins e os habitantes de Antelope já lá vai; mas Sheela está sempre disponível para falar sobre a sua experiência de vida.
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“É claro que posso dar-lhe uma entrevista!”, diz do outro lado do telefone, a partir da sua residência na Suíça. A estadia em Portugal aconteceu, durou oito meses e foi um período muito importante na sua vida, confirma a própria. “Foi um período de isolamento, mas também foi muito bom. Deu-me a força para olhar para dentro de mim e para os meus sentimentos de novo”, confessa, enunciando cada palavra lentamente, no seu inglês perfeito com sotaque de Gujarat.
Tudo aconteceu em 1989, depois de ter saído da prisão. Sheela mudou-se para a Alemanha, mas voltou a ter problemas com as autoridades lá: depois de uma visita à Suíça, a entrada no país foi-lhe negada. “Por isso comecei a pensar ‘para onde posso ir?’. Não tinha dinheiro suficiente para ficar a viver na Suíça, por isso abri o mapa, fechei os olhos, pus o dedo no mapa e calhou ali — em Portugal.”
Chegada a Lisboa, Sheela sentiu-se demasiado assoberbada com o rebuliço da capital — e, mais uma vez, garante que entregou tudo às mãos do destino. Chegou à estação e comprou um bilhete quase à sorte, diz. “Olhei para alguns nomes de sítios e achei Nazaré um nome muito bonito. Foi ao calhas, mas acabei por escolher o sítio certo. Era muito bonito.” Chegada à vila piscatória, hospedou-se numa das dezenas de pensões que ali existem à beira mar. Mas, uma vez mais, o destino — ou a Existência, como diz Sheela — interveio: a mãe do dono da pensão morreu e ele teve de fechar por uns dias. Rapidamente, o homem arranjou uma alternativa: alugar uma casinha perto de uma pequena floresta na freguesia de Pederneira, pertencente ao concelho da Nazaré. “Seria perfeito”, respondeu-lhe Sheela, que ansiava pelo isolamento que aquela casa lhe poderia dar.
Sheela viveu ali oito meses. Na vila, havia quem lhe chamasse “a senhora inglesa”, conta, de memória nada enferrujada, usando a expressão em português. Comprava queijos, vinho, fruta. “Levava uma vida simples e solitária”, conta ao Observador. “Até que, numa festa de aldeia na Pederneira, conheci a tal rapariga japonesa, que estava em Portugal para escrever um livro. Ela ficou muito feliz por conhecer alguém ali que falasse inglês.”
Não havia planos para ir embora, no imediato, mas, um dia, um telefonema do seu advogado mudou tudo. “Por favor, esconde-te, eles estão de novo à tua procura”, ter-lhe-á dito. Foi então que, apesar das parcas poupanças, Sheela regressou de vez à Suíça. “Tenho cidadania suíça, por isso ali estava a salvo. Não conhecia a lei portuguesa e não me sentia com energia sequer para tentar conhecê-la. Só sabia que na Suíça estava mais segura e regressei.”
A morte de Osho e o futuro dos sannyasins
Enquanto Sheela regressava à Suíça, a saúde de Rajneesh — agora auto-intitulado Osho — deteriorava-se. Nenhum dos dois regressaria alguma vez a Portugal, que acabou por ser apenas um dos muitos pontos de passagem onde os dois estiveram, em momentos diferentes. Osho acabaria por morrer em 1990, levando a uma transformação do seu movimento.
As teses de Osho, uma mistura de ensinamentos orientais com características ocidentais — que não via inconveniente na mescla da meditação com princípios capitalistas, por exemplo — continuariam a ser seguidas por todo o mundo, incluindo em Portugal. Valter Cardim, que viu Osho de perto em Rajneeshpuram e chegou a trocar cartas com “a famosa Sheela”, como diz, tentou aplicar alguns dos ensinamentos do místico em Portugal.
Depois de duas idas ao ashram de Puna, na Índia, e após a morte de Osho, Valter estabeleceu-se em Portugal. “Em 1990, comecei a dar alguns seminários de meditação. Dei [no seminário] Torre d’Aguilha, na Parede, onde os padres eram muito simpáticos. Depois, também dei nos Franciscanos em Braga, na Madeira… Na altura pouca gente conhecia o Osho, foi assim que muitos dos que hoje se dizem sannyasins conheceram isto, por exemplo. Os cursos enchiam bastante, na altura havia muito interesse, mas a maior parte das pessoas interessava-se mais pela meditação do que pelo conceito de ser sannyasin.”
Atualmente, Valter continua a seguir a meditação proposta por Osho todos os dias, mas já não a ensina com a mesma regularidade. “Às vezes há pessoas que perguntam, mas poucos aparecem”, diz, sobre os cursos que por vezes dá na Associação Luso Brasileira de Ayurvédica, em Lisboa. Para além da ALBA, várias associações identificadas pela Osho International dão cursos sancionados pela fundação.
Maneesha James, que continua a dar workshops ligados ao ensinamentos de Osho e focados na questão de ensinar a lidar com a mortalidade, diz que continua a encontrar muito interesse pelo místico a nível internacional “A visão dele atrai as pessoas por razões diferentes. Conheço pessoas que só o descobriram já ele não estava cá fisicamente e que diziam sentir-se tão ligadas a ele quanto eu me sinto”, garante.
Considera que os crimes em torno da comunidade, que imputa a Sheela, prejudicaram o guru: “Ele próprio disse uma vez ‘a Sheela fez a minha visão recuar uns 20 anos’.” Mas não crê que isso tenha destruído a utopia representada por Rajneeshpuram. “O documentário da Netflix criou muito interesse à nossa volta, até positivo. As pessoas sempre foram capazes de ver para lá da má imprensa”, afirma.
A partir de Portugal, Valter tem outra visão. O arquiteto, que em tempos ia trabalhar para o seu escritório na Avenida Paulista vestido de vermelho dos pés à cabeça — “diziam-me ‘virou do capeta!’”, conta entre risos —, já não tem a mesma fé. O movimento, diz, tornou-se “um negócio”. “Enquanto ele era vivo a energia era outra, depois mudou”, garante. “É claro que as técnicas continuam a ajudar as pessoas, mas isto hoje é uma miscelânia. Faz-se dois dias de formação e já se pode ser pago para ensinar os outros. A ideia na altura não era essa: pagavam-se umas poucas rupias na Índia só para ajudar a manter a comunidade, não se pagava para meditar.”
O que Valter não sabe é que Sheela, na Suíça, concorda consigo. “As palavras do Bhagwan estão lá, mas o coração e a alma não estão. Essa é a minha perceção pelo que oiço das pessoas que me visitam”, diz, sublinhando que não contacta com outros sannyasins há 35 anos. “Mas quem está aberto a receber o Bhagwan não precisa de uma organização para o seguir. Eu segui-o todos os dias”, garante.
Na Suíça, tomando conta de idosos como forma de homenagem aos seus pais, Sheela assegura que ainda traz na memória e no coração o mesmo sentimento que a fez erguer paredes, montar um negócio bem sucedido, meditar todos os dias, dizer insultos na televisão e até armar uma comunidade. “Hoje em dia é a mesma coisa com o trabalho que coloquei diante de mim desde que saí da prisão e voltei a erguer-me. O meu foco são os meus pais e o Bhagwan, eles formam o triângulo que inspira a minha vida”, diz, perto da despedida, antes de desligar o telefone. “Tudo o que fiz, fiz por eles.”