Lapvona não estava nos planos. Ottessa Moshfegh estava a trabalhar noutras coisas quando, sem ter sido capaz de o antever, se viu trancada em casa durante a pandemia de Covid-19. A situação teve um grande impacto no seu trabalho — incapaz de avançar com o que tinha em mãos, a autora norte-americana sentiu que precisava de escrever um romance onde coubessem os sentimentos e preocupações gerados pela pandemia.
O livro é diferente de todos os outros escritos por Moshfegh, não só pelo contexto em que surgiu, mas também pela forma. É o primeiro romance da autora de O Meu Nome Era Eileen escrito na terceira pessoa e passado num tempo anterior ao da modernidade, neste caso a Idade Média, num aldeia isolada algures na Europa do leste onde os habitantes se vêm confrontados com uma situação extrema que os obriga a lutar diariamente pela sobrevivência. As dificuldades são ultrapassadas, mas o mundo nunca mais será o mesmo — tal como aconteceu com a Covid-19.
Lapvona um livro duro, surgido durante um período “horrível”, que é para alguns duro de roer. Muitos leitores queixaram-se em plataformas como o Goodreads que o romance era demasiado gráfico e violento. Moshfegh desvaloriza. Em entrevista ao Observador por videochamada, a autora considerou que a violência, manifestamente exagerada por alguns leitores, é o aspeto menos importante do romance. Para a escritora norte-americana, Lapvona é “de muitas maneiras uma história sobre a procura de salvação e sobre alguma coisa que está para lá da banalidade da vida e do erro humanos”.
Este romance é muito diferente dos seus trabalhos anteriores. Primeiro, passa-se na Idade Média e, segundo, foi escrito na terceira pessoa, algo que nunca tinha experimentado num livro de ficção longa. O que é que motivou estas inovações?
Não estava à espera de escrever este romance. Tinha diferentes projetos em mãos, mas depois começou a pandemia e, como muitas outras pessoas, fui forçada a ficar em casa. As coisas em que estava a trabalhar não estavam a funcionar por causa da Covid e precisei de escrever um livro [sobre a pandemia]. Normalmente passo muito tempo sabendo qual será o meu próximo livro. Termino um livro e, antes de sair, já estou a escrever o próximo. Neste caso foi diferente. A vida mudou e, de repente, apresentou-se esta oportunidade horrível de escrever um romance que seria uma forma de marcar o período da Covid-19. Acho que comecei a escrevê-lo pouco antes do isolamento. Foi um livro que me senti compelida a escrever, porque a minha perspetiva enquanto ser humano no planeta mudou completamente por causa do vírus. precisava de escrever um livro que fosse um sítio onde pudesse colocar todas essas mudanças, todos esses sentimentos e ideias que tinham mudado. Também andava a pensar muito sobre a morte, os meus antepassados e a geografia da minha linhagem. Mais especificamente, andava a pensar sobre um tempo em que não sabia o que é que os meus antepassados andavam a fazer. A minha mãe costuma dizer que, do lado croata da família, os meus antepassados eram piratas no Mar Adriático, mas já tinha escrito um livro sobre um marinheiro [McGlue, de 2014], então pensei que se calhar havia alguma coisa na Idade Média que podia funcionar como uma revisão imaginada da história dessa localidade ficcional [Lapvona]. Queria que as minhas personagens parecessem reais, ao mesmo tempo que trabalhava um género algures entre a fantasia, o conto de fadas, o horror e também uma história sobre atingir a maturidade.
Mas porquê a Idade Média? O que é que a interessou nesse período?
[Interessou-me] provavelmente porque cresci com histórias sobre a Idade Média, esse período muito negro, difícil e horrível, que parece ter inspirado um tipo de literatura que estabeleceu o género da fantasia. E estávamos a viver outra vez um período de pandemia. É interessante como a vida se torna muito séria e muito simples de várias formas porque a sociedade global está tão focada nos conceitos de vida e morte, mas a nossa imaginação floresce para fora da realidade. [A pandemia] é um período para o qual olhamos com muito realismo, mas esse olhar é uma construção e uma ilusão criada para nos salvar do horror que foi a vida durante aquele tempo e de como talvez tenha sido tão injusta. Para ser sincera, tinha a Idade Média na cabeça. Não sou uma grande historiadora, mas diverti-me a encomendar uma centena de livros sobre a Europa medieval. A história eslava e polaca atrai-me, mas não houve nenhum momento durante a preparação ou a escrita do livro em que tivesse sentido que estava a escrever um trabalho de ficção histórica. Senti que estava a escrever sobre o género do conto de fadas. Assim que estabeleci em que mundo estava, tornou-se muito focado e pessoal. Adorei usar a terceira pessoa porque pude movimentar-me muito livremente de uma personagem para um local e de um local para uma pessoa totalmente diferente. Foi mesmo libertador. E talvez por causa da claustrofobia do isolamento, foi um escape usar a perspetiva da terceira pessoa. Até aqui, os meus livros eram muito subjetivos. Eram narrativas em monólogo, com um protagonista a contar a sua própria história. Isso pareceu-me uma armadilha. Queria uma perspetiva mais de vista aérea.
Lapvona descreve o que as pessoas fazem em momentos de grande desespero. É muito semelhante ao que aconteceu durante a pandemia, quando muitas pessoas sentiram que perderam o rumo.
Não havia nenhum lugar onde nos pudéssemos esconder, pelo menos no contexto da política social norte-americana. Houve muitas coisas que vieram à superfície de uma forma muito violenta e conseguimos ver a forma perversa como os media afetam um grupo vulnerável de pessoas. Foi muito dramático. Estou a falar especificamente do movimento Black Lives Matter e como foi significativo e comovente e, ao mesmo tempo, incrivelmente triste, porque não sei se alguma coisa mudou. Houve coisas horríveis como a insurgência de 6 de janeiro [de 2021 no Capitólio]. Tudo parecia completamente fora de controlo.
Apesar de a história se passar na Idade Média, parece ser muito moderna. Estava a pensar sobre tudo o que aconteceu?
Em Lapvona, acontece uma mudança muito específica e repentina no clima porque o governante local rouba e desvia água da aldeia. Isso tem consequências horríveis, e é uma das principais razões pelas quais a sociedade se transforma e deixa de ser profundamente religiosa e crente e passa a ser mais moderna, agnóstica e capitalista. Sim, estava a pensar profundamente sobre tudo isso, mas também a seguir simplesmente o rumo das personagens. Queria que tivessem algo de moderno, que cada uma parecesse ter uma mente moderna. Queria que fossem falíveis, vulneráveis e que não tivessem apenas uma faceta, como nos contos de fada. Queria que fossem humanos complicados que eu pudesse compreender.
Não há personagens totalmente boas ou totalmente más. Todas têm falhas.
Isso depende dos leitores. Bom ou mau ou se tem uma vida fácil ou não. Ninguém tem uma vida fácil no livro.
A personagem principal, Marek, é um excluído. Isso supostamente deve-se à sua aparência mas, no final, percebemos que é uma personagem tão ou mais cruel do que as outras. A sua aparência física é um reflexo da sua verdadeira personalidade?
Ele pode ser cruel desde o início. É um excluído de muitas formas. O seu pai, ou o homem que ele pensa que é o seu pai, também é um excluído. Prefere a companhia das suas ovelhas às das pessoas. Cria o filho de uma maneira que desencoraja qualquer tipo de relacionamento social. Essa estranha família de duas pessoas também é excluída. Marek tem essas deformidades físicas que parecem sugerir metaforicamente a sua verdadeira personalidade. Há também a questão se nos tornamos quem somos na nossa mente ou se a nossa mente se adapta ao nosso corpo. Ele acha que é especial porque é deformado e isso significa que tem certos privilégios e necessidades que as outras pessoas podem não aprovar. É como qualquer miúdo — está só a tentar ter aquilo de que precisa. Ao contrário de uma criança que teve mais contacto social, ele escolhe formas muito estranhas de tentar conseguir o que quer.
A sua aparência física não é também uma referência ao facto de ser fruto de uma relação incestuosa e, por isso, monstruosa?
Ele não sabe disso e nós também não sabemos até mais tarde. Há muito que é revelado [no livro], porque as personagens têm muitos segredos. Ele está condenado desde o início. Se se é fruto de uma violação incestuosa, se essa é a motivação que fez com que nascessemos, se a nossa mãe não o quis, na verdade tentou matar-nos, isso fica impresso algures na nossa psique. Isso foi interessante. Tenho de gostar das minhas personagens ao ponto de querer vê-las ter sucesso ou, caso contrário, é muito difícil levantar-me de manhã e regressar ao trabalho. Sentia uma grande compaixão pelo Marek, pelo facto de ele estar condenado desde o início e por ser bastante bom a criar mentiras fantásticas que conta a si próprio para justificar o que na verdade são impulsos muito negros e destrutivos. Isso é interessante, porque me interesso muito mais pela mente criminosa do que pela mente perfeitamente saudável. Quando olhamos para os comportamentos e personalidade de alguém que é desonesto, isso faz realçar o que significa ser honesto. Conseguimos ver o que é positivo e o que é negativo olhando para o Marek. Foi uma oportunidade para colocar algumas questões morais de uma forma não muito direta. Sempre disse que o meu trabalho é amoral e que a arte deve ser amoral, mas não sei se o que estou a fazer, ao contar histórias que fazem o leitor questionar o que é moral, é realmente amoral. Se calhar é muito moral. Não sei…
Este é também um romance sobre mentiras e segredos e o impacto que estes têm nas pessoas e nas relações interpessoais?
Sim. Agora que temos testes genéticos, isso já não acontece tanto. É muito fácil provar quem é o pai de uma criança. Basta encomendar um teste online e, de repente, temos todo o nosso historial familiar baseado em cuspo que enviámos por correio. Vivemos tempos novos e acho que a nossa relação com a identidade é muito diferente por causa disso. É uma forma objetiva de descobrir a verdade. O Marek apenas tem a informação que o pai lhe forneceu.
Disse que a nossa relação com identidade mudou. Em que sentido?
Acho que quando disse isso estava a pensar em como nos temos identificado e às outras pessoas e em como essas categorias identitárias já não são mais viáveis. É muito fácil assinalar uma determinada alínea nos censos, mas acho que agora abordamos a identidade de uma perspetiva muito mais pessoal. E isso é interessante porque, de certa forma, é também mais factual. Nunca fiz um teste de ancestralidade, mas o meu irmão mais novo fez. Ver os resultados fez-me sentir que tenho uma relação diferente com o planeta. Vi-me enquanto membro de uma espécie. Isso é muito científico, mas também miraculoso de muitas formas. Depois há a identidade social. Sou metade persa. O meu pai identifica-se como persa. Logo aí surgem muitas questões. Como é que uma pessoa se identifica? A minha mãe identifica-se como croata e também aí há complicações. Quando nasci, ela dizia que era da Jugoslávia. Eu nasci na América, logo sou americana. Nasci do género feminino e decidi continuar a identificar-me com esse género. Sou heterossexual… Há todas estas coisas que, de repente, são de alguma forma os sentimentos e a identidade. E os factos identitários estão a ser combinados de uma maneira que faz toda a gente discutir sobre o que é a identidade. Acho que a nossa relação com a identidade está a mudar, porque talvez seja mais auto-direcionada e, no entanto, já não é um facto imutável. É também assustador que possamos mudar a nossa identidade. A ideia de mudar de identidade assusta algumas pessoas.
Alguns leitores ficaram chocados com a violência de algumas passagens de Lapvona. Porque é que acha que isso aconteceu? A Idade Média é um período onde a violência era comum.
Não sei. Acho que todas as pessoas são diferentes e por vezes é mais fácil falar de determinados aspetos de um romance, como dizer que é muito violento. É uma declaração simples, sobre a qual podemos ter uma conversa ou escrever. Não requer assim tanta subtileza de interpretação. Mas pode haver outros aspetos do livro sobre os quais ainda estamos a pensar e em relação aos quais ainda não sabemos muito bem como nos sentimos. Para mim, [Lapvona] é uma história violenta. Nasceu de algo muito terrível. É também de muitas maneiras uma história sobre a procura de salvação e sobre alguma coisa que está para lá da banalidade da vida e do erro humanos. Apesar de estar errado, o Marek está a exercer o seu direito enquanto humano, que é o de percorrer um caminho em direção a Deus. Não foi Deus que o magoou, foram as pessoas. Podemos mesmo culpá-lo por ter essa visão do mundo, quando ele viu quão horríveis as pessoas podem ser? Acho que a violência é a parte menos interessante do livro, porque é uma coisa comum. Está em todo o lado, em todos os jornais e documentários da Netflix. As pessoas não se fartam de ver pessoas a matarem outras pessoas.
Acha que o problema está no facto de se tratar de um livro e não de um filme?
É mesmo isso que penso. Penso que algumas pessoas acham que ler um romance é uma prova da sua inteligência muito sofisticada. Não é um filme. Sentem que trabalharam tanto para ler um livro…. Ler um livro não é uma coisa fácil de fazer nos dias de hoje. É preciso tempo, solidão, silêncio. Se organizarmos a nossa vida de modo a poder ler um livro, sentimo-nos bem com nós próprios. Sentimos que fizemos algo. Acho que é fácil ler um livro e sentir que somos a autoridade em toda a literatura. Porque é uma forma culta de expressão humana, não devia ter nenhum dos componentes da cultura pop. “Porque sou tão bom e tão espero, mereço este espaço limpo, a salvo de qualquer coisa feia ou violenta que possa entrar no meu cérebro maravilhoso.” Isso aproxima-se da vaidade extrema e há vários livros para essas pessoas. Não escrevo para elas, para as pessoas que leem para provarem o seu intelecto. Não é verdadeiramente justo dizer que ler um livro é um feito intelectual. Acho que nos torna mais inteligentes, porque nos faz pensar sobre coisas que normalmente não encontramos no nosso dia a dia, mas um homem das cavernas não se torna uma pessoa culta por ir a um museu. Algumas pessoas são mesmo sensíveis à violência e querem que a literatura seja um lugar de experiência desencarnada. Acho que isso é muito perigoso, porque isso não existe. A experiência da vida é a experiência de habitar um corpo. Isso é viver. Tanto quanto sei, os fantasmas e espíritos não conseguem escrever livros. Estou viva, tenho um corpo, não vou fingir que não estou viva porque é desconfortável para algumas pessoas sentirem-se vivas. Elas que leiam outra coisa qualquer. Não me importo, sinceramente. Tenho imensa sorte em ter uma carreira alinhada com a jornada criativa da minha vida. Isso é incrível. Isso realmente chateia algumas pessoas. Há pessoas que ficam chateadas pelo simples facto de outra pessoa ter escrito um livro e farão tudo para que esse livro seja mal visto porque têm ciúmes.
A proibição e censura de livros tem sido muito discutida recentemente nos Estados Unidos da América. Isso preocupa-a?
Não presto atenção a isso. Não posso. A única coisa que posso fazer é escrever o que quero e encorajar outras pessoas a escreverem o que quiserem. É tudo o que podemos controlar.
Revelou recentemente em entrevista ao The Guardian que estava a escrever um novo livro, passado nos anos 90 em Inglaterra.
Passa-se num lugar que parece Inglaterra. Estou a gostar muito de escrever livros que se passam em locais que não conseguimos identificar, mas que têm alguns detalhes muito claros que conseguimos localizar. O meu livro anterior, que acho que não está publicado em Portugal, Death At Her Hands [de 2020], passa-se na América, mas não se consegue perceber exatamente onde. E em Lapvona, não conseguimos perceber onde se passa, mas parece a Europa do leste. Este novo projeto é inglês. Há uma sensibilidade que parece inglesa e não americana, mas não conseguimos perceber exatamente onde em Inglaterra ou porquê ou se é mesmo Inglaterra. Ainda estou a trabalhar nisso…
Não quer escrever sobre a América?
Não estou a escrever sobre a América porque as histórias sobre as quais estou a pensar não se passam na América. De certa forma, consigo perceber melhor os lugares que são longe. Quando olhamos para uma coisa que está muito próxima, é difícil focarmo-nos nela. Se construir um cenário numa terra distante, sinto que talvez tenha mais facilidade em descobrir os detalhes. Por outro lado, a cultura americana é tão controversa neste momento que pensar em escrever uma história que se passa na América levanta muitos argumentos, como por exemplo, se as coisas são boas, precisas ou representativas de uma forma justa da sociedade. É tão denso e complexo para mim, que, na verdade, sinto que é melhor que a minha ficção se passe fora da América. Sinto que tenho mais liberdade.