No dia em que tem início a Jornada Mundial da Juventude, o Observador republica um trecho da entrevista que o Papa Francisco deu em agosto do ano passado a Maria João Avillez, na TVI e CNN — e que resultou no livro ‘Francisco – O Caminho’, editado pela Temas e Debates. Nela o Pontífice destacava a força dos jovens — “Eles têm a sua cultura e possuem uma linguagem progressista, que vai em frente” — e a importância deste evento, que, frisa, se deve à “genialidade de S. João Paulo II”.
Gostava que a nossa conversa se iniciasse pela Jornada Mundial da Juventude que vai trazer a Portugal milhares e milhares de jovens de todo o mundo. Sabe que há um enorme entusiasmo? Há muito trabalho a ser feito, existe um compromisso das autoridades portuguesas face à sua realização. Há, enfim, uma expectativa muito bonita. Então pergunto: porque é que as Jornadas Mundiais da Juventude se converteram em algo tão importante para a Igreja? E para si?
Quem teve a ideia foi S. João Paulo II. As jornadas, de alguma forma, relacionam a juventude de várias regiões do mundo e como que universalizam a juventude…
Fortalecendo-a?
Fortalecendo. Os jovens dão força uns aos outros, falam por si próprios e sentem-se apoiados. E ainda que falem diversas línguas e sejam de outras culturas, encontram-se. E, juntos, apercebem-se de anseios e de desejos comuns. Há uma linguagem comum. As linguagens dos jovens são sempre muito criativas. É preciso ver as palavras que os jovens inventam para determinada situação, mas essa criatividade é sinal de estarem ancorados no presente, a olhar para o futuro. Uma coisa que ajuda é encontrarem-se. Encontrarem-se, para que se sintam fortes para fazerem o seu caminho, rumo ao futuro. Foi a genialidade de S. João Paulo II que esteve na origem desta realização.
A juventude e o mundo esperam ansiosamente a sua presença em agosto de 2023, todos anseiam pela sua mensagem.
Eu penso ir. O Papa vai: vai Francisco ou João XXIV, mas o Papa vai (risos).
Ah, Santo Padre todos esperamos, contamos e confiamos que seja o Papa Francisco…
Seja o que Deus quiser.
Como é que o Papa Francisco olha hoje os jovens?
Quando se vai a uma reunião de jovens tem de se estar preparado para que lhe falem noutra língua. Os jovens têm uma linguagem própria que vem da sua cultura: há uma cultura da juventude, a qual provem da própria criatividade da juventude. Não pode hoje falar com os jovens com uma linguagem de europeu, por exemplo, ou de sul-americano. Tem de falar a linguagem deles, jovens, o que não significa que seja uma coisa de “baixa categoria”, não…. Eles têm a sua cultura e possuem uma linguagem progressista, que vai em frente. É preciso ouvi-los no seu modo de interpretarem as coisas e responder-lhes de modo a que consigam entender. Não posso responder a um jovem, perante uma dificuldade, com um livro de teologia antigo: “Olha, aqui diz que….” Ele não entende. Quando me apresentam um problema humano, um problema teológico, é preciso responder numa linguagem que entendam e de acordo com as suas vivências próprias. O presente é o ar dos jovens. O dia de hoje.
E como fazer para que este encontro das Jornadas de agosto de 2023 seja também um grande momento de luz e reconciliação nas dificuldades que hoje afligem a Igreja portuguesa, este duro momento que a Igreja portuguesa está a viver?
O que acentua as dificuldades é a distância. Se estou zangado com a senhora, afasto-me, a senhora segue a sua vida e eu a minha e nunca haverá reconciliação. Por outro lado, quando as distâncias se encurtam, quando as pessoas se aproximam, há diálogo. Haverá discussões, talvez, mas não importa. Há diálogo e aí podemos construir uma reconciliação. Por exemplo, em países em que há duas culturas diferentes, muita gente tenta fazer com que ambas as culturas se encontrem e isso é muito fácil com os jovens, através do desporto, através da arte, de uma orquestra, por exemplo; através de interesses comuns, de conversas, porque os jovens estão muito aptos a aproximar-se. Nós, os adultos, temos já mais experiência de vida, protegemo-nos mais. Defendemo-nos. Os jovens são muito mais audazes. Portanto, como é que se faz? Aproximando. Não de forma artificial, mas através de coisas de interesse comum. As Jornadas da Juventude são, certamente, uma aproximação mundial de jovens.
Uma das coisas que se observa no Papa Francisco é a facilidade e a alegria muito genuína e sincera com que dialoga com os jovens. Mas agora faço-lhe a pergunta ao contrário: o que recebe o Santo Padre do seu diálogo com os jovens?
Conto-lhe uma história. Há dois meses tive uma reunião com dez jovens que falavam espanhol, mas da América Latina, de África e de Espanha…
Onde? Aqui em Roma?
Aqui em Roma. Foram cinco horas, mais ou menos, em duas etapas. Cada um dizia o que lhe vinha à cabeça. E, claro, que nenhum deles era uma “velhinha de novenas”, agarrada a um terço. Não se tratava de anticlericais, mas estavam perto disso… faziam duras críticas, mas falavam com liberdade. Alguns eram católicos, outros eram batizados mas não praticavam, outros nem católicos eram. E eu aprendi. Colocaram-me dificuldades enormes. Não me preocupei tanto em responder à dificuldade — era como jogar pingue-pongue, atiravam e eu respondia –, tentei antes ver qual a cultura subjacente que eles ou elas tinham para me colocar perante aquela dificuldade. E isso foi-me muito útil. Respeito a espontaneidade. O que me é muito difícil é o diálogo, sobretudo com os adultos. Os jovens não caem no duplo sentido, ou seja, na “linguagem diplomática”, em que uma pessoa diz uma coisa mas pensa outra. Isso não suporto.
A hipocrisia…
A hipocrisia, é esse o termo. A palavra diz tudo porque vem do grego: hipo mais crisis,ou seja, pensar hipo, por baixo. Nesse grupo de jovens nenhum foi hipócrita. Cada um disse o que queria dizer, com a veemência que desejava e nenhum deles me ofendeu. Alguns atacaram-me, mas não me ofenderam, porque foram muito sinceros. Quando damos espaço aos jovens, a sinceridade existe. Pode haver erros, mas quem não comete erros? Há que escutar e, de qualquer maneira, dialogar sobre isso. Mas a espontaneidade dos jovens é uma riqueza imensa.
Uma questão em que o Papa Francisco insiste muito é o valor e a importância do diálogo intergeracional. Falou do tesouro e sabedoria dos mais velhos para ensinar os mais jovens. O que temos a aprender uns com os outros?
Os jovens têm de ter uma visão virada para futuro e uma visão do passado. Quando eles olham apenas para o futuro ficam sem sustentação. O jovem tem de dialogar com as suas raízes. Como a árvore: para que uma árvore dê fruto, tem de vir alguma coisa da raiz. Então refugio-me só na raiz? Fico só com a raiz? Não, porque isso não dá fruto. Mas esse ‘olhar’ para as raízes só se consegue, só se obtém através do diálogo com os mais velhos. É uma das coisas em que insisto porque, às vezes, os jovens vão em grupo visitar um idoso a sua casa, tocar guitarra… Inicialmente estão algo inquietos, não sabem… Mas depois, quando começam a conversar, entusiasmam-se, claro. É porque ouvem, porque conversam e discutem com os idosos. E, então, sentem-se com raízes. Uma forma de não querer ter raízes é rejeitar o diálogo com os idosos. Não significa porém que tenham de fazer o que eles fizeram na sua vida, ou copiá-los mas é preciso ouvi-los. São as suas raízes. As raízes da sua cultura, da sua pátria, do seu modo de ser, da sua família. De tudo. A cultura do avô e da avó é uma das maiores bênçãos…. Quando um jovem vai em frente olha para o futuro, mas tem de ser capaz de dialogar com os mais velhos. Um poeta argentino tem uma frase muito bonita: “Tudo o que a árvore tem de florido vem do que tem enterrado”.
Os portugueses lembram-se de que já esteve em Fátima, onde o viram rezar. Essa experiência íntima de espiritualidade pode ter feito do jesuíta Bergoglio um Papa mais mariano ou já o era?
Fui educado pela minha família na devoção a Maria. Sempre. A minha família é muito salesiana, Nossa Senhora Auxiliadora, é algo com que vivemos desde crianças, porque já na família havia a devoção a Maria. Eu sou Mariano, gosto muito da Virgem, mas em Fátima senti outra coisa. Fátima deixou-me mudo. Fátima é a Virgem do silêncio, para mim. Não sei quanto tempo estive ali, nem me apercebi, mas estar na presença da Virgem, estar simplesmente, sem nada mais…
Muita gente diz que não há silêncio como o de Fátima…
É verdade. Eu senti o mesmo. Passou-se comigo. Vejo que é universal, não sabia que diziam isso. Passou-se comigo, sim. E para mim, Portugal é Fátima. Que não se zanguem os portugueses, mas é a minha experiência.
Sabemos e conhecemos o valor insubstituível que é para si a oração. Como é que reza um Papa?
Não alterei a minha maneira de rezar. Posso ter aprofundado, não sei. Rezo o terço, mas faço-o tal como o fazia em miúdo. Rezo com a Bíblia, medito. Rezo o ofício litúrgico todos os dias. Ou seja, de diversas formas. Coloco-me diante de Deus e às vezes distraio-me, mas Ele não se distrai. E isso consola-me. Não sei que santo se preocupava e se afligia, porque adormecia durante a oração e o seu confessor dizia-lhe: “Agradece a Deus. É uma graça adormecer diante do Senhor”. Rezar é estar na presença de Deus e deixar que Ele fale. Não se pode rezar sem liberdade. Isso é muito claro. E cada um tem de rezar como o Espírito Santo o inspira.
Que devemos fazer para estar atentos, para saber quando o Espírito Santo quer falar connosco?
Uma pessoa sente. Por exemplo, perante um acontecimento, uma leitura, perante um pobre na rua ou um doente, uma pessoa sente algo. É o Espírito Santo que motiva a pessoa a fazer alguma coisa. O Espírito Santo fala todas as línguas. Recorde-se da manhã de Pentecostes. O ruído que ele ali organizou, cada um falava a sua língua, as pessoas não entendiam nada, diziam que estavam todos “borrachos”…. Porquê? Porque cada um falava a sua língua! O Espírito Santo era o autor dessas diferenças, mas, por outro lado, é com todas elas que se constrói a harmonia — mas ela é muito diferente da ordem. A senhora vai a um cemitério, está tudo ordenado mas não há vida. Na harmonia há vida e é isso que faz o Espírito Santo: a si dá-lhe uma coisa, a outro dá outra coisa e a outro ainda outra coisa, mas tudo em harmonia e esse é o sentido eclesiástico. Às vezes há pessoas que dizem: “Sou muito religioso, muito religiosa, defendo os valores cristãos…” Mas são incapazes de viver em harmonia com a Igreja. Falta-lhes o Espírito Santo, têm ideologia religiosa, mas não têm o Espírito Santo.
O Santo Padre sabe que uma parte do mundo está hoje zangada com a Igreja. As situações de abuso cometidas por alguns membros do clero estão aí, na atualidade dos nossos dias. Em Portugal vivemos um tempo difícil, duro. Pergunto-lhe: quais as razões profundas desta ferida? O que é que falha? O que é que falhou, a formação? A falta de acompanhamento? A lógica da auto-conservação institucional?
Posso responder-lhe de forma elegante, dizendo: ‘sim, é verdade, a igreja está a sofrer, e etc. e tal’…
…mas não é suficiente.
Não. Quero ser muito claro em relação a isto: o abuso por parte de homens e mulheres da Igreja — abuso de autoridade, abuso de poder e abuso sexual — é uma monstruosidade. O homem ou mulher da igreja — quer seja padre, religioso ou religiosa, laico ou laica — foi chamado a servir e a criar unidade, a contribuir para o crescimento, e o abuso destrói sempre. O abuso é uma realidade trágica de todos os tempos mas também do nosso tempo.
A diferença é que agora se sabe.
Sabe-se e ainda bem que assim é. Mas o que não se sabe — porque esse ainda se esconde — é o abuso no seio da família. Não me lembro bem da percentagem, mas penso que 42% ou 46% dos abusos ocorrem na família ou no bairro. E isso esconde-se. Na semana passada estive reunido com um grupo muito sério que trabalha com abusos no Brasil e deram-me esses vários números: a percentagem relativa ao meio do desporto, aos campos de desportos, aos clubes. Às vezes aproveitam-se dos miúdos nos clubes, nas escolas… E depois informaram-me que 3% dos abusos ocorrem com homens e mulheres da Igreja. ‘Ah, 3% é pouco?! Não, não é!. Mesmo que fosse um só é uma monstruosidade. Então, digo simplesmente: sim tudo isto existe, fixo-me nesses números e sou responsável por isso não voltar a acontecer. Infelizmente, a cultura do abuso está muito disseminada. Inclusive nos filmes pornográficos, onde se filmam abusos de menores… Pergunto-me: em que país se fazem? Não podem penalizá-los? Não se sabe onde são feitos. O abuso faz parte da nossa cultura, há pessoas que nos serviços de alguns telefones permitem que se entre em serviços sexuais — alguns são de abuso de menores, outros de outras coisas –, ou seja, a nossa cultura é uma cultura abusadora. Assim, quando falamos de abuso, eu diria que é preciso ter esta visão de conjunto; em segundo lugar que é necessário que não se escondam as coisas porque nalguns sectores, como na família, tende-se a ocultar; e em terceiro, que agarremos na percentagem que nos diz respeito e partamos para o combate. Ou seja, não nego os abusos — mesmo que fosse só um já era monstruoso porque o padre ou a freira têm de conduzir o menino, a menina a Deus, e ao fazerem o abuso destroem-lhes a vida. É monstruoso, é destruir vidas. E depois vêm com perguntas: ‘não será que é o celibato, isto e aquilo…?’ Não, não é o celibato. O abuso é uma coisa destrutiva, humanamente diabólica. Nas famílias não há celibato e essa destruição também ocorre. Do que falamos é simplesmente da monstruosidade de um homem ou de uma mulher da igreja, que ou está doente em termos psicológicos ou é malévolo, e usa a sua posição para sua satisfação pessoal. É diabólico.
O que faz a Igreja para tratar essa ferida?
A Igreja tomou uma decisão depois da ‘explosão’ de Chicago que ocorreu no tempo do Cardeal Law — ele teve consciência dela e começou a seguir os casos de abuso. Sim, a Igreja sabe que 40 e tal por cento desses casos ocorrem nos bairros e na família, mas aqui o que importa são os consagrados na comunidade. E uma coisa é muito clara: tolerância zero. Zero. Um sacerdote não pode continuar a ser sacerdote se é abusador. Não pode. Não sei se trata de um doente ou um de um criminoso, não sei, mas claramente é um doente. Uma baixeza humana: o sacerdote existe para encaminhar os homens para Deus e não para destruir os homens em nome de Deus. Tolerância zero. E tem de continuar a ser assim. Eu sofro com casos de abuso que me apresentam. Sofro. Mas é preciso enfrentar isso.
Dedicou recentemente uma carta apostólica à liturgia e à formação litúrgica. Porque é que, subitamente, esta questão da liturgia, do rito litúrgico, se transformou numa coisa tão confusa e complexa no seio da Igreja?
Creio que é uma situação de crise, de formação litúrgica deficiente, e, por outro lado, há também a falta de piedade na celebração da missa, que alguns celebram sem gosto. Isso provoca escândalo e alguns procuram então formas mais seguras. O problema litúrgico é importante. Elaborei dois documentos a propósito dessa questão: um, Traditionis custodes, destinado a disciplinar bem o rito antigo; e outro, o último, a Carta Apostólica – Desiderio Desideravi — para abrir os horizontes e dar um pouco a espiritualidade litúrgica. A liturgia é a grande obra da Igreja. É a obra de adoração e louvor. Uma igreja que não celebre bem a liturgia não sabe louvar a Deus. No fundo, não sabe viver. Para mim, é muito importante disciplinar bem a liturgia.
O Dicastério dos Bispos, responsável pela nomeação dos novos bispos, inclui pela primeira vez três mulheres na sua composição. Como devemos ler este sinal seu? A escolha de três mulheres para o Dicastério?
Os homens e as mulheres são batizados. E a Igreja é feminina….
O Santo Padre por vezes diz isso. Já o afirmou mais de uma vez… porquê?
‘A’ Igreja é mulher. Não é ‘o’ Igreja. É “a” Igreja. É mulher, é a esposa de Cristo. E na administração normal da Igreja faltavam as mulheres. Bom, agora há secretárias do Sínodo dos Bispos, a vice-governadora do Vaticano é uma mulher, e porque não propor também mulheres na eleição de bispos? Vou-lhe contar uma experiência pessoal: os relatórios mais amadurecidos que eu recebia para conferir a ordenação como sacerdotes aos seminaristas eram elaborados por mulheres que viviam nos bairros em cujas paróquias eles trabalhavam…
Isso é uma grande homenagem à mulher…
A mulher está encarregada de conduzir a maternalidade da Igreja, portanto, para eleger bispos é bom que haja mulheres que pensem como têm de ser os bispos, ou seja, a entrada das mulheres não é uma moda feminista, é um ato de justiça que culturalmente tinha sido posto de lado. ‘Queres fazer algo pela Igreja? Torna-te freira.’ Não! Pode ser laica… No Vaticano, estão só homens? Não. Aqui, todos os batizados têm lugar. Isto é algo que não inventei, já vem dos últimos 20, 30 anos e lentamente vai-se implementando. Outro exemplo: há três anos a Secretaria da Economia, o Conselho da Economia, tinha seis Cardeais e seis laicos. E um Cardeal presidente. Tudo homens. Na nomeação seguinte, nomeei cinco mulheres e um homem e começou a funcionar melhor.
Segunda homenagem à mulher…
A mulher sabe administrar noutro tipo de coisas, tem uma maneira de executar as coisas diferente dos homens, raciocina de outra maneira, tem a maternalidade, que a torna tão diferente…. Numa ocasião, recebi uma chefe de Estado — ou chefe de Governo, não me recordo –, lembro-me que era uma mulher que mandava num país, casada, com filhos, e que acabara de resolver um conflito difícil. Uma mulher casada, com filhos. E então perguntei-lhe: ‘Diga-me, doutora, como conseguiu resolver esse conflito?’. Ela ficou em silêncio e começou a mexer as mãos assim [o Papa Francisco faz um gesto com as mãos]. Eu olhava e não percebia…. E ela disse-me: ‘Como nós, as mães, fazemos’. É outro tipo de resolução de conflitos, de problemas. Inclusive, na nova economia, com as novas economistas, por exemplo, Mariana Mazzucato nos Estados Unidos: estão a abrir caminhos de economias nestas linhas mais criativas e mais frutíferas. E a mulher é mãe e a mãe não é igual ao pai. A mulher é capaz de se desenvencilhar melhor sozinha. Há uma estatística — mas isto é apenas uma curiosidade — que mostra que um homem que se encontra viúvo tem muita dificuldade em manter a família. Tem de voltar a casar-se ou… Uma mulher que fica viúva é capaz de manter a família sozinha….
E de educar os seus filhos e…
E com uma mão faz isto e com a outra faz aquilo. Assim se movimentam. E há ainda uma coisa que quero dizer, porque é uma homenagem à mulher: a mulher nunca abandona o que está perdido. Às vezes, em Buenos Aires, eu tinha de ir a uma paróquia noutro bairro e, no autocarro, passava pela prisão. E via a fila das mães dos reclusos para irem ver os filhos. A mulher dava a cara pelo seu filho, não o rejeitava. Os pais quase não iam. As mulheres… Uma vez, vi que uma mulher estava a chorar na prisão. Eu tinha ido visitar os reclusos, aproximei-me dela à parte e perguntei: ‘Porque está a chorar?’. Ela olhou para mim: ‘É sangue do meu sangue’, disse-me. É isso que uma mulher sente, é a sua maneira própria de sentir. Não é uma coisa tola. A mulher é capaz de levar por diante a qualidade de Deus que é a ternura.
Que grandes figuras femininas da história da Igreja, da Bíblia, o inspiraram mais ou particularmente?
Há uma figura no Antigo Testamento de quem gosto, a Judite. Uma mulher corajosa, que defende o seu povo, capaz de cortar a cabeça ao inimigo. É uma mulher inteira. E obviamente que Maria, a Virgem, é a mulher, a feminina por antonomásia. Em Maria encontramos força, serviço… feminilidade. Quando nos aproximamos da Virgem encontramos e vimos nela toda essa feminilidade. Fico com Maria. A Judite agrada-me por ter sido corajosa. Há mulheres corajosas. Há várias. Foi agora lançado um livro da autoria de um teólogo italiano que estudou todas as mulheres da Bíblia. E há mulheres fortes, muito fortes. E outras que são muito argutas… Dalila, por exemplo [risos].
[…]
Tenho aqui uma pergunta sobre o seu humor, porque é algo que o caracteriza… mas já la vamos…
Sobre isso quero sublinhar que há mais de 40 anos que rezo a oração de S. Tomás Moro para pedir o sentido de humor… Rezo essa oração, sim. Peço essa graça, o sentido de humor. Uma oração que começa: ‘Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir’ (risos). Copiei essa oração para a minha exortação apostólica, ‘Gaudete et Exsultate na nota 101. Se alguém a quiser ver, está lá.
Agora lembrei-me: o Mozart tem um “Exsultate, Jubilate” maravilhoso.
E a famosa ‘Aleluia’! No meu tempo — a senhora é mais moderna, eu sou mais velho (risos) — havia um filme muito bonito, ‘100 Homens e Uma Rapariga’, com Deanna Durbin e Toscanini. Lembro-me desse filme, que vi em miúdo. Cantava-se o ‘Aleluia’ do ‘Exultate Jubilate’.
Gostava de o ouvir agora sobre este caminho sinodal que está em curso: julga que ele ajudará a clarificar a proposta espiritual que o sínodo faz ao mundo?
Temos de recorrer um pouco à História. Ao terminar o Concílio Vaticano II, S. Paulo VI apercebeu-se — ou já sabia — que a Igreja ocidental, a Igreja latina, tinha perdido a dimensão sinodal. As igrejas orientais têm sínodos. A ocidental não tem. Portanto, ele criou a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos para que começassem a habituar-se a isto. E quando se cumpriram 50 anos desde a sua criação, fiz um discurso a explicar os fundamentos teológicos da sinodalidade, o que ocorreu há cinco ou seis anos. Depois fez-se uma consulta a todos os bispos sobre o tema do próximo Sínodo. Surgiram dois temas-chave: os sacerdotes ou a sinodalidade. Escolhi a sinodalidade para encerrar a catequese da sinodalidade. Às vezes confundem-se as coisas e diz-se que a sinodalidade é uma espécie de parlamento, em que cada um diz o que acha, mas… estar num Sínodo é outra coisa. Digo de outra maneira: não há Sínodo sem a presença do Espírito Santo. Quem é a personagem principal do Sínodo? O Espírito Santo. E como se faz isso? Cada um diz o que sente, ou o que pensa, e depois juntos procuram a harmonia — outra vez a palavra — do Espírito Santo. Gosto de S. Basílio porque define o Espírito Santo como harmonia: ‘Ele é a harmonia’. Então, no sinodal está a diversidade — o que cada um vai dizendo — mas é o Espírito que cria a harmonia. Se o Espírito Santo não está presente é um parlamento. Tudo bem, mas então não lhe chamemos Sínodo. É um parlamento. Temos de ter a atitude sinodal de discernimento. É o que a Igreja, graças a S. Paulo VI, que criou tudo isto, tem vindo a aprender nestes 54 ou 55 anos.
Já falou duas vezes de harmonia mas sabe que a Igreja, e não só por causa dos abusos, está hoje muito dividida — às vezes quase que parece haver uma guerra civil dentro da Igreja, os bispos uns contra os outros… Estou a exagerar?
Sim. Um bocadinho, sim, mas compreendo. Graças a Deus que diz uma guerra civil. Pior seria uma guerra eclesiástica. Em todos os processos existem os que nele estão bem; os que vão mais à frente; os que vão mais atrás. Ora é preciso deixar que os processos acabem. E aí vai-se sedimentando lentamente, muito lentamente, um conceito. Por exemplo, o facto que referimos há pouco, que haja mulheres na Cúria, é um processo cultural, um processo de justiça, mas se a senhora há 100 anos dissesse uma coisa destas… Há 100 anos teriam dito de si: ‘esta mulher está maluca’. Porque o Espírito Santo vai-nos suscitando maneiras de amadurecer a Igreja. E no amadurecimento há quem não ache bem, e então, esperam, estão mais atrasados. É a teologia do caminho: uns vão à frente a correr e outros ficam um pouco para trás. E o Bom Pastor — aquele que tem a função de pastor, o Bispo — tem de saber mover-se por entre o povo de Deus, tem de estar com os que estão mais à frente, tem de estar no meio e tem de estar atrás. Um pastor que está apenas num sítio não serve. Tem de falar com os que estão mais adiantados para marcar o ritmo, ajudá-los para que não se percam, e estar no meio para sentir o cheiro das pessoas, do povo; e estar atrás com os que estão mais renitentes à mudança e acompanhá-los. Por isso, digo que um pastor tem de ser universal no que diz respeito ao santo povo fiel de Deus. O clericalismo, que é uma perversão, retira essa universalidade ao pastor e torna-o pastor de um setor ou de uma modalidade pastoral. ‘Aqui mando eu e vocês obedecem.’ E, nesse entretanto, o Espírito Santo está escondido….
Quando escreveu a sua Encíclica “Laudato Si’” confessou-nos que tinha sido inspirado no seu irmão Bartolomeu, patriarca ortodoxo; e quando redigiu a “Fratelli Tutti” confessou-nos que tinha sido muito inspirado pelo grande imã Ahmad Al-Tayyeb. A fé fortalece-se e expande-se no diálogo inter-religioso?
Claro, porque o diálogo inter-religioso não é criar equilíbrios, nem ver como nos vamos pôr de acordo. É ouvir. ‘O que pensas? Como sentes?’. É ver a tua visão, ouvi-la, argumentar, mas caminhar em conjunto como pessoas. Na minha cidade, na década de 1930, havia um grupo de católicos muito conservador. A mim disseram-me que os protestantes iam todos para o inferno. De Lutero diziam-me tudo e mais alguma coisa… Eu tinha 4 anos quando ouvi a primeira palavra ecuménica, dita pela minha avó: íamos a andar pela rua e, do outro lado, vinham duas senhoras do Exército de Salvação. Tinham um chapéu e um laço grande, e eu perguntei à minha avó: ‘essas senhoras são freiras?’. E ela disse-me: ‘são protestantes, mas são boas pessoas’. Foi a primeira observação ecuménica que ouvi. É ver que Deus atua através de culturas, de tradições religiosas, de outra maneira. Através do diálogo, sempre. É preciso dialogar. Ao dialogar, nunca se perde. Nunca.
Há diálogos indispensáveis. Anunciou que gostaria de ir a Kiev e a Moscovo. O que é possível dizer aos presidentes Putin e Zelensky?
Não sei, não sei. Dialoguei com os dois, os dois vieram cá visitar-me. Não agora, há mais tempo e… acredito sempre que, se dialogarmos, conseguimos avançar. Sabe quem não sabe dialogar? Os animais. Funcionam por puro instinto. Se nos deixarmos levar pelo puro instinto… O diálogo é deixar de lado o instinto e ouvir. O diálogo é difícil, mas tem de começar logo na família. Se na família não se dialoga, se há apenas gritos e discussões, as crianças não aprendem a dialogar.
Quando vai a Kiev e a Moscovo?
Está no ar. Ainda não sei. Estou a falar com eles. Amanhã, por exemplo, tenho uma conversa telefónica com o presidente Zelensky. Vamos ver. Na verdade, a Kiev já foram representantes meus. Três cardeais. Um deles foi aliás três vezes — esteve lá toda a última Semana Santa — e foi também o subsecretário de Estado, digamos, o encarregado das Relações Internacionais. A minha presença lá é forte. Agora não posso ir porque depois da viagem ao Canadá a recuperação do joelho ressentiu-se um pouco e o médico proibiu-me. Até de ir ao Cazaquistão, estou proibido de viajar. Mas tenho mantido contacto, por telefone. Faço o que posso. E peço a toda a gente que faça o que puder. Entre todos pode fazer-se alguma coisa. Acompanho com a minha dor e com as minhas orações tudo o que consigo. Mas a situação é deveras trágica.
Como é o quotidiano do Papa? Por exemplo, agora: estamos em agosto, um mês de férias mas está aqui a trabalhar, na Casa de Santa Marta, onde vive e a sua agenda mantém-se preenchida. Não está em Castel Gandolfo, nos arredores de Roma a descansar. Não gosta de Castel Gandolfo, prefere ficar nesta sua casa a trabalhar?
Bem… Castel Gandolfo… não vou. Transformei a residência em museu. Havia inúmeras peças do Museu do Vaticano que não tinham espaço para serem expostas e decidi então transformar uma casa onde não iria, num museu. Se quiser, posso ir, claro, porque há mais dois locais onde me poderia instalar, mas não. Passo aqui as férias a ler, a ouvir música, rezo mais um pouco…
Que música ouve?
Gosto muito de ópera.
E que compositores?
Wagner!
E agora tem um pouco mais de tempo para a ópera?
Sim, ponho a tocar e, enquanto trabalho, vou ouvindo.
Quando não está de férias, como é o seu dia a dia? Sempre muito pesado não é?
É organizado. Gosto de organizar. Levanto-me cedo. Às quatro da manhã. Mas às dez da noite já estou a dormir.
Mas é necessário acordar assim tão cedo?
Acordo sem querer. Sou como as galinhas. Levanto-me às quatro, faço as minhas orações. Às vezes celebro a missa a essa hora, outras vezes mais tarde. Depois começa o trabalho. Deito-me às nove da noite e às dez apago a luz. Durmo seis horas.
De onde vem a força com que acredita na vitória do Bem sobre este Mal tão triunfante? De onde vem a raiz da sua fé?
Cada época teve o seu Bem e o seu Mal e eu não me atrevo a dizer que atualmente tudo é mau. Não. Há coisas muito boas, atualmente. A fé radica em Jesus Cristo, Senhor da História. Ele é o Senhor da História. As coisas más que acontecem agora aconteceram noutras épocas de outra maneira. Ou seja, o trigo e o joio estão juntos.
É preciso é separá-los.
Isso mesmo. Jesus disse que crescem juntos e que na colheita vão separar-se. Temos de nos habituar a viver situações históricas. Algumas nada boas, mesmo más. Sabe Deus.
Gostava, para finalizar, de lhe pedir agora uma palavra que ponha luz e reconciliação no caminho da Igreja portuguesa — neste seu momento difícil — até às Jornadas Mundiais da Juventude?
Eu diria isto: olhem para a janela. Olhem a janela. E perguntem-se: ‘a tua vida tem uma janela aberta?’. Se não tiverem, abram-na o quanto antes. Não tenham vistas curtas. Em relação a um problema ou a seja o que for. Saibam que estamos a caminhar para o futuro, que há um caminho. Olhem para o caminho. Sempre com a janela aberta. Não se fechem. Pergunto: ‘qual é a tua janela? Qual é a tua esperança?’. ‘Não te ocorre?’ Então procura-a e cria-a! Não se pode viver sem esperança, não se pode viver sem esse ímpeto positivo da esperança. Se não for assim, encaracolas-te como um caracol sobre ti próprio e isso é doentio. Abram a janela, é o conselho que dou para se prepararem para as Jornadas da Juventude. Abram a janela. Vejam além do nariz, além. Olhem, abram, olhem para o horizonte. E alarguem o coração.
Santo Padre, e agora? Como é que lhe posso agradecer este momento?
Reze por mim, reze por mim. Mas a meu favor, não contra mim (risos).