Desde o início que a nova Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA) tem gerado controvérsia entre o Ministério da Defesa Nacional e várias organizações e ex-chefias militares. Aprovada em Conselho de Ministros a 8 de abril, a próxima reforma das Forças Armadas (FA) visa “garantir as condições para que as FA sejam capazes de responder aos desafios atuais e futuros” e o objetivo passa por criar “ganhos de eficácia”, segundo o Governo.
A lei deverá ser votada no Parlamento na próxima terça-feira, mas a reforma está longe de ser pacífica e várias vozes, desde António Ramalho Eanes a vários membros da hierarquia militar, já se vieram insurgir contra a mudança. Em comunicado, a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) diz que está um marcha “um golpe contra as Forças Armadas” e uma tentativa de “partidarização”.
Esta sexta-feira, o mal-estar entre as altas patentes militares na reforma e o Governo agudizou-se, com 28 ex-chefes do Estado-Maior, entre os quais Ramalho Eanes, Brochado Miranda e Fuzeta da Ponte, a enviarem uma carta ao ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, na qual expressaram a sua “apreensão” pela reforma.
Mas em que consiste esta reforma, o que significa para as Forças Armadas e como é que as transforma? Que motivos levaram o Governo a avançar com a reforma e qual é a principal razão de contestação?
A reforma que vai permitir que haja uma “visão de conjunto”
Numa entrevista à Agência Lusa em meados de fevereiro, o ministro da Defesa revelou que iria propor que as competências do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA) fossem alargadas, sendo que este passava a deter o comando operacional de toda a atividade militar: “Hoje em dia impõe-se uma reforma no sentido de colocar debaixo da autoridade do CEMGFA as Forças Armadas como um conjunto”.
Com esta reforma, os chefes dos ramos militares de Estado-Maior (do Exército, da Marinha e da Força Áerea) passam a estar dependentes do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas “para todas as áreas da atividade militar, incluindo o planeamento, direção e controlo da execução da estratégia de defesa militar, a administração de recursos e capacidades militares”.
“Todas as missões passam a estar sob comando operacional do CEMGFA”, de modo a que haja uma “uma visão de conjunto”, anunciou João Gomes Cravinho, acrescentando que os chefes militares vão deixar de tratar de questões militares diretamente com o ministro da Defesa, passando a fazê-lo junto do CEMGFA — e isso fará com que haja uma maior organização e definição na hierarquia nas Forças Armadas.
As funções das chefias militar perdem, assim, a sua natureza de coordenação, passando a ser meramente de consulta. No comunicado do Conselho de Ministros lê-se que os “chefes de Estado-Maior se mantêm como conselheiros do Ministro da Defesa Nacional, no âmbito do Conselho Superior Militar”, mantendo-se a ligação direta com o ministro em matérias como “a execução de projetos no âmbito da lei de programação militar e da lei de infraestruturas militares” e as “matérias administrativas e de execução orçamental que resultem da lei”.
João Gomes Cravinho caracterizou esta reforma como sendo “importante” e “de fundo” e “mais um passo num processo que tem muitos anos e que corresponde também a uma modernização que já foi feita na generalidade dos países europeus”. Além disso, o ministro sinalizou que nos países da NATO também já não existe “um modelo parecido com o português”, tendo já havido uma evolução “para um modelo mais adequado que é o CEMGFA ter autoridade sobre os três ramos e também sobre as novas valências, da ciberdefesa e da saúde militar”.
“Este é um objetivo enquadrado pelo programa do Governo, visando adaptar as FA para responderem a missões cada vez mais complexas, empregando eficientemente os recursos públicos e no sentido de melhorarmos significativamente a nossa capacidade de pensar as FA como um conjunto, e não apenas uma soma de três ramos“, reforçou João Gomes Cravinho.
Apesar da “autoridade” que vai passar a possuir o CEMGFA, o governante garantiu que os três ramos das Forças Armadas vão continuar “a existir e a ter uma identidade própria e vincada”, estando descartada a ideia da criação de um estado-maior único.
O objetivo da reforma é, de acordo com declarações do ministro após a aprovação do projeto lei em Conselho de Ministros, “melhorar o processo de trabalho entre tutela política e as FA, maximizar a eficácia operacional, promovendo a atuação em conjunto, minimizar redundâncias e estabelecer claramente linhas de comando”, com mais “coerência global” e “modernização”, no sentido de “pensar as FA do futuro”.
Os apoios políticos. Marcelo vai respeitar decisão do Parlamento, PSD apoia Governo
Aprovada em Conselho de Ministros a 8 de abril após o parecer favorável do Conselho Superior de Defesa Nacional — de que fazem parte dois chefes dos três ramos das FA (Exército, Marinha e Força Aérea) –, a proposta de lei será agora votada no Parlamento. Devido à natureza de defesa nacional, tem de ser aprovada por dois terços dos deputados e João Gomes Cravinho já teve “contacto com a maior parte dos partidos” e espera reunir “o máximo de consenso” parlamentar na próxima terça-feira, dia em que a lei vai a votação. A “alteração será feita de forma fácil, sem dificuldade e obstáculos”, sublinhou o ministro.
No Conselho de Estado que se reuniu a 19 de março, Rui Rio saiu em defesa da mudança nas Forças Armadas. O líder social-democrata frisou a “eficácia” da medida e sublinhou o “direito comparado” de outros países. Também Ana Miguel dos Santos, coordenadora da bancada do PSD para a Defesa Nacional, considerou, em entrevista ao DN, que a centralização de competências no CEMGFA é uma “alteração inevitável”. “As FA são cada vez mais chamadas a intervir em matérias de proteção civil, segurança interna, no apoio à população. Temos de perceber que o modelo da estrutura superior deve ser adequado e refletir esta necessidade”, justificou.
Com a simplificação do “processo de decisão” e existindo uma “linha de comando bem definida, vertical e sem redundância respeitando a natureza de cada ramo”, a deputada do PSD considera que a reforma permitirá “despolitizar a estrutura superior das FA”.
A reforma também acaba, segundo Ana Miguel dos Santos, por ser “uma consequência natural de todas as alterações legislativas que têm sido feitas nas últimas décadas”, aludindo às modificações realizadas durante o executivo de José Sócrates, em 2009, e aquelas realizadas durante o Governo de Passos Coelho, em 2014, que também reforçaram a centralização do poder do CEMGFA.
Já o Presidente da República espera que a reforma das FA seja “bem-sucedida”, para que “possa ser seguida de uma renovada reflexão sobre o Conceito Estratégico de Defesa Nacional”, tendo em conta a “alteração em curso geopolítica e no domínio da defesa e da segurança a nível global, a nível europeu, e com incidência a nível nacional”.
Marcelo espera que reforma do papel do CEMGFA seja bem-sucedida com “arrojo e bom senso”
Esperando que a reforma seja uma conciliação entre “arrojo e bom senso, assertividade e participação, reforço institucional e plasticidade pessoal”, Marcelo Rebelo de Sousa terá também uma palavra a dizer após a aprovação no Parlamento — e o garantiu que “vai respeitar” a “última palavra” do hemiciclo.
Sobre a carta enviada esta sexta-feira pelos ex-militares, o Presidente da República lembrou que o processo já “vem de trás” e assinalou que Ramalho Eanes já “várias vezes manifestou a sua posição sobre a matéria no Conselho de Estado e fora dele”. Marcelo refere ainda que teve a “iniciativa de o documento, além de ir ao Conselho da Defesa Nacional, ir ao Conselho de Estado, o que não é vulgar” e acrescenta que “tem havido um amplo debate” sobre o assunto.
Associações e ex-chefes militares contra: apontam tentativa de “partidarização” e falta de “debate alargado à sociedade civil”
Assim que a entrevista do ministro da Defesa foi publicada, ainda em fevereiro, rapidamente ex-chefes militares vieram mostrar desagrado com a reforma. O general piloto-aviador Luís Araújo, Chefe de Estado Maior Geral das Forças Armadas entre 2011 e 2014, considerou à Agência Lusa que o problema das FA não reside na “estrutura”, mas antes “na escassez de meios de toda a ordem” e salientou que a centralização do poder do CEMGFA fica “excessiva”, não existindo um processo de “checks and balances“.
Por seu turno, Melo Gomes, antigo Chefe do Estado-Maior da Armada (Marinha), declarou não conceber “esta reforma isolada de uma revisão da organização do Estado no âmbito da Defesa”, “porque o problema das FA não é a questão da estrutura superior, mas a adequação dos objetivos definidos em relação aos recursos disponibilizados”. E o general Pinto Ramalho, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, afirmou que se trata de “uma desvalorização da posição dos ramos”.
António Ramalho Eanes tem sido das vozes mais críticas à reforma — aliás, no Conselho de Estado com Marcelo Rebelo de Sousa fez uma intervenção na qual se opôs frontalmente a esta alteração. Ao Expresso, o ex-Presidente da República considerou em março que “a liderança militar é distintiva da de outras instituições” e, apesar de ter de haver uma atualização das chefias “para responder eficazmente às mudanças que o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e o Conceito Estratégico Militar estabelecem”, “essas mudanças devem ser feitas, como dizia Miguel de Unamuno, sem atropelos à sua unidade, continuidade e personalidade” — o que não acontece com a centralização do poder no CEMGFA.
Em declarações à revista Domingo do Correio da Manhã de 18 de abril, o antigo Presidente da República indicou ainda que falta um “prudencial estudo multidisciplinar prévio, com consulta da sociedade civil, do GREI (Grupo de Reflexão Estratégica Independente, formado por generais dos três ramos das Forças Armadas na reserva) e das universidades”. Para o ex-governante, o trabalho “não só não foi feito como se permitiu não tomar em consideração a oposição dos chefes de Estado-Maior dos ramos (Armada, Exército e Força Aérea), que conhecem, melhor do que ninguém, cada um dos ramos que comandam e as exigências da sua liderança”. O Observador tentou contactar os chefes de Estado-Maior da Armada, do Exército e da Força Aérea, mas não obteve resposta.
Relativamente à carta desta sexta-feira, o ex-Presidente da República e mais 27 ex-chefes militares alertam para o “menosprezo” a que foram vetados e sublinham que a reforma que centraliza os poderes no CEMGFA vai fazer com que a estrutura superior das FA dependa do “uso que os titulares dos cargos de chefia militar vierem dar às suas competências”, acusando o ministério de não antever as “reais repercussões da reforma no futuro imediato, para não falar nos efeitos no longo prazo, que ninguém pode prever”.
Os militares na reforma consideram, assim, que o Governo devia manter os “graus e níveis intermédios de comando e administração da estrutura das Forças Armadas” e “preservar a transparência institucional”, através de um “debate alargado à sociedade civil”, envolvendo os partidos, especialistas, a academia” para “refletir e ponderar” o estado das Forças Armadas.
A associação GREI chegou, no entanto, a elaborar um estudo baseado nas declarações do ministro das Defesa em fevereiro, tendo-o apresentando, entre outros, ao Presidente da República e ao primeiro-ministro, mas as suas conclusões não foram levadas em consideração. Em comunicado, revelou que existiu um “sentimento de apreensão em antigos chefes militares e num número significativo de oficias generais retirados do ativo”, após o anúncio da reforma.
Nesse trabalho, a GREI concluiu que a “estrutura superior das FA é no geral equilibrada e tem produzido bons resultados” e que “a sua eventual alteração, com maiores ou menores arranjos, deve ser objeto de grande ponderação e prudência; e, em qualquer caso, tal passo só deve ser considerado depois de estarem estudadas e rigorosamente esclarecidas todas as suas implicações no presente, no médio e no longo prazo”.
Além disso, a associação alerta que “a solução de concentrar numa única entidade – o CEMGFA – todo o poder de decisão a nível estratégico e operacional, e de juntar as competências e prerrogativas de comandante de forças e de administrador de topo, faz desaparecer a maior parte dos graus intermédios de comando e de direção”, sendo também “uma fonte de permanente atrito entre os patamares MDN, CEMGFA e CEM que se repercutirá na eficiência da estrutura e na eficácia da operação”.
às fragilidades apontadas na sua preparação e ao volume de desconfianças acumulado", apontou a associação GREI.
Ao Observador, o Tenente-Coronel António Costa Mota, presidente do Conselho Nacional da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), garantiu que a reforma das Forças Armadas consiste numa tentativa de as “partidarizar”: “O que está previsto constitui um ataque muito decisivo às Forças Armadas, aliás na continuação do que vem a ser feito nos últimos anos quer por este Governo quer pelos que o antecederam”, afirmou.
“A evidente fragilização das chefias militares irá fazer com que, ainda mais, os militares sintam que as chefias cada vez menos os representam, precisamente por cada vez mais estarem a perder a (pouca) capacidade de influência”, o que levanta, prossegue o Tenente-Coronel António Costa Mota, “cada vez mais preocupações e perplexidades”.
O presidente da associação destaca que os chefes militares são “a mais representativa e legítima defensora dos seus legítimos direitos” e que o “caminho que o poder político está a seguir de fragilização das Chefias, ainda assim lhes tira ainda mais capacidade para exercerem o Dever de Tutela”.
Também Joaquim Formeiro Monteiro, Tenente General do ex-Quartel Mestre General do Exército, indicou, num espaço de comentário no Observador, que ao marginalizar “as Chefias dos Ramos do topo do patamar da decisão política estratégica, estariam criadas as condições para a concretização de um velho projeto, há muito ambicionado pela classe política, em Portugal, no sentido de subalternizar as FA, diminuir-lhes a visibilidade pública e social, e submetê-las a uma total governamentalização, procurando anular, assim, o seu carácter institucional”.
Sobre as comparações com países da NATO, o Tenente General considera ser “pobre em termos de conteúdo”, sendo “igualmente isenta de coerência”. “Nenhum motivo suficientemente válido obriga ou justifica a necessidade de mudar o modelo de organização das Forças Armadas portuguesas”, justifica.
Gomes Cravinho diz que críticas são “mistificações” e “manobras escusas”
Em resposta às críticas, João Gomes Cravinho afirmou que estas “desviam a atenção ao essencial” e que em outros países existiu resistência a medidas do género, por causa dos “interesses corporativos”. O ministro acusou ainda os opositores de “mistificações e caricaturas” sobre a discordância com as alterações.
Além disso, o governante acusou os ex-militares de “perpetuar a influência” nas Forças Armadas e diz que não se vai deixar “intimidar” por estas “manobras escusas”.
O ministro da Defesa garante que aceita “que haja diferentes pontos de vista, mesmo quando são puramente corporativos” — mas não “manobras escusas”, que são uma forma de desvio “dos propósitos e do normal funcionamento das instituições”. “Em democracia não é assim que as coisas funcionam”, vinca. O Observador tentou contactar o Ministério da Defesa para obter uma resposta às críticas, mas não obteve resposta.
Ministro da Defesa critica “manobras escusas” de “agremiação” de ex chefes militares contra reformas
Sobre estas críticas, na carta enviada esta sexta-feira, os ex-militares descrevem a “ação política” de Gomes Cravinho como sendo “apressada” e “não convencional”. Acrescentam ainda que se começou “da pior maneira e de forma pouco prometedora”, sendo “uma espécie de exercício político e administrativo degradado”.