Está por estes dias em Lisboa, surpresa pela quantidade de pessoas que a abordam na rua em jeito de celebração. Em 2021, Paulina Chiziane venceu o Prémio Camões, que recebeu na passada sexta-feira e fez história: foi a primeira mulher africana e negra a receber esta importante distinção que consagra uma obra literária que tem vindo a construir desde a década de 1990. Está habituada a feitos históricos, embora não lhes dê tamanha importância. Foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Balada de amor ao vento, mas antes já tinha militado na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), ainda jovem, onde começou a entender a escrita como lugar de resistência e de intervenção ativa. As experiências de juventude, a independência e a guerra civil em Moçambique que se seguiu à revolução portuguesa, tudo se tornou matéria literária. Mas também a condição feminina, a poligamia, as relações de poder entre pessoas e as diferenças de costumes e modos de viver. A obra de Chiziane narra a história e os traumas do seu país, mas começa normalmente nos lugares mais recônditos e nos momentos mais simples da vida quotidiana.
Escreve como forma de libertação, mas também para expor e refletir sobre a sociedade em que vive. Ao Observador, fala do mundo poético em que cria as suas histórias, mas que através da leitura passam a dizer respeito a uma realidade bastante concreta. A língua portuguesa, como herança cultural, é também um elemento importante na sua condição de escritora. É com ela, explica, que negoceia a sua existência e não deixa por isso de afirmar que a mesma precisa de um processo de descolonização, tal como referiu no discurso de entrega do Prémio Camões. “É uma herança com a qual nos devemos irmanar, e com a qual nos devemos harmonizar e não conflituar. A minha crítica vai no sentido de todos juntos trabalharmos e fazer esta limpeza para que eu não me sinta mal com determinadas expressões de uma determinada língua. Estou a falar no meu caso concreto como mulher africana, como negra”, sustenta em entrevista.
Nascida em Manjacaze, província de Gaza, a sul de Moçambique, Paulina Chiziane cresceu em Maputo, onde frequentou a escola católica e estudou linguística na universidade. Trabalhou na Cruz Vermelha durante a guerra civil. Tem 67 anos. Tempo de vida suficiente para saber que na sua voz estão também presentes temas como o racismo, as ideias pré-concebidas sobre África e a devolução de símbolos roubados durante o período colonial. Mas há muitas coisas que não se podem devolver, ainda que possam existir “gestos reparadores” daquilo que considera ser “erros históricos do passado”. Na sua mundividência, a escrita pode unir: “Leva a uma reflexão profunda sobre as nossas origens, sobre o passado, ajuda-me a refletir sobre o presente e a tentar num provável futuro”. Também é por isso que não se conforma. A sua escrita vem de um lugar de conflito interno, mas também de alguém que quer contribuir para a mudança.
O que lhe têm dito desde que recebeu o prémio Camões?
Tem sido interessante. É muito bonito encontrar na rua pessoas que não conhecia, muitos africanos, mas também muitos europeus, que me abordam. Essa para mim foi a maior surpresa. Dizia para mim mesma: “europeus? Deus do céu”. E todos numa celebração efusiva, com abraços e beijos. Que coisa linda. Quer dizer, eu venho de África, os meus livros contam histórias das aldeias africanas mais recônditas, mas que conseguiram fazer impacto e ter a sua voz, unindo todo o mundo. Isto é, criar uma voz comum. Tem sido bonito.
A literatura, um qualquer livro, pode unir e criar diálogo?
Pode. Sobretudo – estou convencida – o livro Niketche: Uma História de Poligamia, que dialoga com todas as culturas e todos os povos, o que surpreende positivamente. Estou impactada e muito emocionada. Era algo que não esperava, tal como o prémio Camões.
Teve um discurso emotivo, mas que também foi assertivo sobre a língua portuguesa. Há uma reflexão diferente depois de ter recebido esta distinção?
É uma herança com a qual nos devemos irmanar e com a qual nos devemos harmonizar e não conflituar. A minha crítica vai no sentido de todos juntos trabalharmos e fazer esta limpeza para que eu não me sinta mal com determinadas expressões de uma determinada língua. Estou a falar no meu caso concreto como mulher africana, como negra, mas existem outras expressões muito sexistas e outras extremamente machistas. Estou a recordar-me, por exemplo, da palavra “prostituta” que vem [no dicionário] como mulher de má conduta, ao passo que, “prostituto” surge como homem que se diverte com o sexo. A mesma palavra para duas pessoas, sejam elas brancas ou negras, traz sinais muito contraditórios e maus. Um na subordinação, o outro na supremacia. Isso tem de ser varrido.
Estudou linguística. A semiótica pode ser um campo importante neste aspeto?
Sem dúvida. É necessário e fundamental. Temos de olhar para a língua e as suas nuances. Acredito que muita gente que trabalha nesta área, muitos portugueses, não conseguem ver isto ou se veem, não sentem. Tem de vir um africano, a ver e a sentir, dizer isto. E isto precisa de ser resolvido.
Gerou-se algum alarido a propósito da ideia de descolonização da língua. Há uma reflexão maior?
Não devemos ter medo das consequências. O que me move é a necessidade de harmonia com a língua. Isso pode até chocar alguém, que nem sequer sabia que estas coisas existiam, mas a verdade é que a construção de uma sociedade também tem alguns confrontos. Um exemplo que gosto de dar: quando quero construir um edifício, tenho o prego a bater na madeira e tenho o martelo a bater no prego, então é preciso bater e sacudirmo-nos uns aos outros para construir um edifício seguro. O caminho das revoluções, o caminho da descolonização, é um caminho doloroso. Porque há aqueles que se conformaram e que acharam que estava tudo bem, mas também há aqueles que dizem ‘não, não podemos ir por aqui’.
“Sei que não vou por aí”, citando o poema de José Régio.
Sim, é fazer outro caminho. Sei que a minha contribuição é no sentido de todos despertarmos, dizermos que é nosso e que por isso temos de tomar conta. Para que esta língua seja a nossa língua. Portanto, é normal que haja pessoas a sentirem-se mal. Por vezes, o despertar é doloroso. Mas sabemos que a língua não pode continuar assim. São os nossos livros de referência, vamos abrir e encontrar essas coisas? Não me parece justo.
Nesse dia voltou à sua infância, à escrita na areia do chão. Como é que se vai disso até ao momento em que se percebe que se pode escrever e publicar, mesmo com um uso diverso da língua?
Quando trabalhei na Cruz Vermelha, vi coisas incríveis, inacreditáveis, próprias de um processo de guerra, ataques, pessoas que morriam com bombas, pessoas com quem falava e que dois minutos depois tinham sido retalhadas por uma mina. Essas coisas marcaram-me bastante e foi quando comecei a fazer registos. Sem parar. A certa altura tinha um volume enorme das minhas impressões. Eram testemunhos e para evitar chocar os outros com as histórias que chegava a casa e queria contar, decidi que as devia escrever. Era uma espécie de diário. Um dia li um livro de um escritor que era bastante celebrado, olhei e disse “não, isto é celebrado e ainda bem, mas é tão cru e sem motivo”. Acreditava que os meus escritos conseguiam ser melhores e que podia publicar. Foi assim que tudo começou e é dessa forma que surge o romance “Ventos do Apocalipse” e assim saiu o livro, mais tarde.
Antes disso já tinha publicado Balada de amor ao vento, em 1990.
Sim, mas comecei com o Ventos do Apocalipse. O que é que aconteceu? Na altura, com a guerra civil em Moçambique, havia falta de papel e de muitas outras coisas essenciais. A editora, a única que tínhamos, que era a Associação de Escritores de Moçambique, disse que o livro tinha quase 190 páginas e só conseguimos publicar livros até 80 páginas. Disseram que ou cortava ou não seria publicado. Achei que não devia cortar nada e que o melhor era escrever um livro mais pequeno para não perder a oportunidade. E foi assim que comecei a escrever a Balada de amor ao vento.
Quais foram as primeiras impressões em Moçambique, com este romance, o primeiro escrito por uma mulher?
Várias. As pessoas comuns adoraram. Mas houve um grupo de pessoas ligadas aos cânones e à academia que acharam um pouco estranho. Por ser uma mulher, por falar de relações tensas. Diziam-me “Paulina, de quem copiaste isto?”. Ouvi várias vezes isso e também a critica habitual de que fazia uma literatura muito oral e de ser incapaz de fazer uma literatura escrita… enfim, deixei-me estar e continuei a fazer o que sentia que tinha de fazer.
Persistiu e a certa altura a escrita tornou-se um ofício?
Sim, não mais deixou de ser. Primeiro não me interessavam as regras de ninguém. Queria fazer o que me apetecia, que ainda hoje faço, mas hoje creio que já me entendem e já me aceitam.
Diz que é contadora de histórias e não romancista.
Preferi contadora de histórias, porque se me aceitassem como romancista viriam todos cair sobre mim e a querer dar-me normas e escolas para seguir. Não estava para isso.
Entre os temas, a poligamia, o lugar da mulher, as relações de poder entre pessoas de diferentes hierarquias, as diferenças entre o Norte e o Sul de Moçambique no que diz respeito ao patriarcado: expõe para refletir e tentar mudar?
As duas coisas. Quando escrevi o “Niketche: Uma História de Poligamia”, eu que sou do Sul e que falo com aquela beleza das mulheres do Norte, algumas mulheres zangaram-se comigo. Diziam: “Paulina, sendo tu do Sul, como é que vais pintar as mulheres do Norte com estas cores de alegria e quase que nos colocas numa posição de subordinação?” Eu dizia que escrevia o que me apetecia… a verdade é uma: as mulheres do Sul têm mais educação, mais poder económico, mais oportunidades, mas isso não significava que fossem mais ou menos mulheres. Escrevi aquilo que via e porque é que fiz este exercício? Havia e há um preconceito, a mulher que não é da capital e que é da periferia é uma mulher inferior. Sempre considerei isso errado. E muitas mulheres do Sul quando leram começaram a fazer essa autorreflexão. Agora já me dizem que tinha razão.
Os estereótipos persistem?
Persistem, mas às vezes lemos a poligamia de uma forma muito linear e com um olhar muito ocidental. Por vezes falamos da poligamia pela superfície e pela rama, mas não conhecemos a verdadeira poligamia. Isto é: existe uma poligamia patriarcal e existe uma poligamia baseada no matriarcado. No ocidente, não me lembro de ter visto muitos estudos em torno destas diferenças. Talvez haja e mesmo nos países árabes. O que digo é que existe uma poligamia baseada no matriarcado, em que são as próprias mulheres que dizem aos homens que eles podem ter outra mulher, mas são elas que assim decidem. Elas têm o poder e ai deles que não aceitem. É estranho e mesmo eu sendo africana não deixo de me questionar como é que algumas mulheres conseguem fazer isso, mas é uma realidade que existe. E foi por isso que senti que devia contar esse lado também, como escritora. Na maioria dos países onde isto é uma realidade, normalmente é o homem que tem esse poder, mas há casos em que isso não funciona assim e é importante mostrar esse lado também. Existem semelhanças e diferenças que precisam de ser expostas. Para mim, que cresci num ambiente diferente, trata-se de uma realidade difícil de aceitar.
Esse ambiente de que fala, da sua infância. Que memórias tem?
Belíssimas memórias. Lembro-me da escola primária, de estudarmos debaixo de uma árvore, sentadas no chão, começávamos a escrever com o dedo ou com um galho e podíamos olhar à nossa volta, sentir tudo o que se estava a passar. Participávamos desse ambiente, com toda a liberdade. Lembro-me de uma vez, estávamos numa aula, e de repente cair uma cobra e parava tudo, já não havia mais aula [risos]. Eram momentos únicos e as minhas melhores memorias são desses tempos.
Gostava de voltar aos seus tempos de juventude e da sua militância na Frelimo. Em que medida é que esse período a formou como pessoa e autora?
A força de vontade. Moldaram-me porque, primeiro, trouxeram-me uma nova consciência através de algumas atividades que fazíamos, clandestinas, em que pude ver que, afinal, podia participar através de atos para a mudança de condição e que muito mais tarde ia trazer um bem maior, que era a independência nacional.
Foi um tempo de resistência?
E de enfrentar os perigos. A polícia colonial era severa. Tínhamos os panfletos e as reuniões secretas e sabíamos que podíamos ir parar à cadeia.
O que é que fazia em concreto na Frelimo?
Trabalhei muito na produção e distribuição de panfletos. Fazia parte de um grupo clandestino. Funcionava por células, nem sequer sabia quem era o nosso chefe. Recebíamos mensagens, passamos noites nisso, saímos para espalhar panfletos e fazíamos também conversas boca a boca sobre o que se devia fazer para mudar a situação.
Sentia que estava a contribuir?
Na verdade, eu na altura sentia que me estava a divertir. Comecei por me divertir, até começar a ver a seriedade das coisas. Quando somos jovens gostamos do desafio e fui-me desafiando. Essa vontade e esse não ter medo do desafio vem desse período que me mudou como pessoa.
Havia figuras importantes como Samora Machel que a marcavam?
Mas só o conheci mais tarde. Conheci o José Craveirinha, sim, mas não tive grandes contactos com ele. A pessoa com quem tive mais contacto e proximidade foi o Malangatana, que também fazia parte deste grupo. Esteve na prisão, na mesma cela com o Rui Nogar, mas ele foi um dos primeiros a sair. A Noémia de Souza conheci-a aqui em Portugal, mas que até ali só conhecia dos escritos.
Por vezes somos toldados pela força e o rumo da história. Isso faz parte da sua identidade?
De certa maneira, sim. Se bem que eu tenho uma natureza teimosa e quando alguém diz que não, eu quero saber porquê, mas esses momentos marcaram-me profundamente.
No seu processo de escrita estão muitas dessas marcas.
Sim, mas a verdade é que nunca procurei um tema que fosse. Vou à rua, vejo coisas que me encantam e desencantam, vou embora a pensar ou a tentar esquecer e quando menos espero, estou a refletir sobre essas pequenas coisas. É nessas alturas que surge a caneta na mão e um tomar de notas. E lá vou eu, sem tema, mas impactada por algo que experienciei.
Ainda escreve noite fora?
Nem tanto. Tenho a vista um pouco cansada. Consigo escrever alguns textos durante o dia, mas noite fora, como fazia, já não consigo. O corpo já não aceita. Não escrevo todos os dias. Às vezes passo semanas sem escrever, mas cuido do meu jardim, das minhas plantas. E agora estou aqui e a pensar se estão a ser regadas como quero [risos]. Mas os meus dias têm sido preenchidos, recebo muitas visitas, muita gente nova e lá me vou entretendo.
Perguntava-lhe isso porque a certa altura, há uns anos, disse que não ia escrever mais.
Vontade não me falta.
Mas está a escrever?
Agora não.
E tem livros por escrever?
Muitos, mas não sei se vão acontecer. Qualquer dia. Não quero fazer planos. Recuso-me. Um dia surge algo, mas não sei o que é. A escrita não é imposição, mas quando surge uma ideia, esta impõe-se e quando menos se espera estamos de novo a escrever.
Ainda se interessa pela política?
Não… sim. Existem aqueles que praticam a política, como gestores, como profissionais. Aqueles para quem a política é profissão. Não vou fazer parte disso. Ouço falar de vários assuntos, mas não acho que seja o meu lugar. Prefiro falar de política, negociando novas consciências a partir do que faço. Por exemplo, há um tema que me surge na mente e sobre o qual quero escrever, se estivesse num partido político não ia poder publicar porque a linha não permitiria, etc. São salamaleques que não me interessam. Não quero fazer partes desses grupos. Quero sim, ter a minha liberdade, de poder dizer o que quero e quando me apetece, sem ter de pedir permissão a quem quer que seja.
Tem ainda assim uma voz que é ouvida. Nos últimos anos surgiram muitas personalidades africanas que marcaram a sua posição. Recordo que, por exemplo o Achille Mbembe foi convidado pelo Governo francês a fazer um relatório sobre a relação de França com as antigas colónias e devolução de obras roubadas.
Isso gosto de fazer também, mas, como digo, dentro do meu espaço de liberdade. Do meu jeito, usando os meus signos e a minha visão do mundo que talvez recrie e adote. Agora ficar dentro de um sistema político, não.
Defende a devolução de obras e artefactos retirados durante o período colonial?
É complexo falar sobre isso. Houve tanta coisa que foi tirada. Para mim essa devolução faz parte do reconhecimento de um erro histórico, o que é para mim extremamente positivo. Foi roubado, reconhece-se o erro e tenta-se devolver… isso aproxima-nos muito mais das antigas potências, reconhecendo que há uma geração nova que pensa de uma forma diferente. O gesto em sim é positivo, mas falar de devolução é complexo. Há coisas que não se vão devolver nunca.
Em Portugal esse debate está a começar, mesmo o pensamento sobre o passado e os traumas que estão por resolver. Mia Couto, numa entrevista, disse que em Moçambique isso ainda não é um tema debatido.
A opinião do Mia Couto é muito válida. Devo dizer que não se falou ainda por uma questão de consciência que é precisa de ser criada. Uma consciência social para se poder perceber a real dimensão histórica desses gestos e dos arquivos do passado. Gradualmente, as pessoas vão despertando para essa temática. Agora quando digo que há coisas que não se podem devolver, falo por exemplo, no tráfico humano e do que África perdeu em número de vidas. Isso jamais se poderá devolver. Falando da dignidade dos povos africanos, a quantidade de horrores que foram descritos pelos cronistas do passado e que criaram esse estigma, nada disso se pode remediar ou devolver. Uma devolução será este aspeto que menciono dos dicionários, porque pode devolver a dignidade de um povo, limpando aquelas complicações que escreveram e que se perpetuaram. A nossa terra foi ocupada durante séculos e nunca ninguém pagou aluguer. Se um dia chegasse a Portugal e dissesse que me tinha de pagar o aluguer por todos os séculos passados, não sei o que é que este país faria. Portanto, falemos primeiro do gesto nobre de reconhecer que existiram erros históricos, porque há coisas que jamais se poderão devolver.
Disse que Moçambique ainda não encontrou a sua paz. O que é que falta?
Muita coisa. Estamos agora com terrorismo no norte do qual não temos grandes informações. Ninguém sabe de forma clara. Então saímos de uma primeira fase de guerra civil, entramos noutra, agora temos esta invasão, entre catástrofes naturais. Está muita coisa a suceder.
Mas é um lugar de fim do mundo?
Para mim não. África esteve sempre em crise, mas não acabou.
O que é que lhe diz Moçambique hoje?
É o meu país. É o país pelo qual lutaria por toda a eternidade. E assim farei.
Uma vez escreveu: “Contar uma história significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão”. O mundo que inventa pode ser onírico e poético, mas serve para a realidade. Um livro pode mudar um estado de coisas?Não diria que um livro pode mudar o curso da história. Um livro pode mudar a consciência e trazer uma nova visão do mundo. Os meus escritos já me provaram que certos grupos, depois de lerem, refletem e ganha uma nova visão. Agora, mudar o mundo não sei se algum vez aconteceu. Por exemplo, os religiosos gostam de afirmar o poder pelos livros sagrados, mas o que é que estes mudam de facto? A evangelização tem milénios, as ideias de amor ao próximo e de não fazer mal, mas quando menos se espera pisamos todos esses princípios. Vamos sempre fazer o contrário. Será que a humanidade mudou mesmo pela religião? Vemos o caso da Europa que se diz muito evoluída, mas em termos humanos, alguém percebe a loucura que é a guerra na Ucrânia. Eu não consigo compreender. Construíram com tanto sacrifício e passado pouco tempo já estão a destruir. E destruir vidas? Pergunto: onde é que está a evolução da humanidade? Parece que a evolução está nas coisas materiais, mas o espiritual é igual à pré-história, o ser humano não evoluiu.
O mundo de hoje é um lugar melhor ou pior para se escrever?
Não sei, mas faz-me bem escrever. Gosto de escrever, mas sobretudo porque o processo de escrita me leva a uma reflexão profunda sobre as nossas origens, sobre o passado, ajuda-me a refletir sobre o presente e a tentar num provável futuro. Ajuda-me a comparar as épocas e é aí que digo que está tudo igual, não mudou nada. Ontem eram esclavagistas, hoje são terroristas, outros dias são bombistas e autoritários… será que alguma coisa mudou mesmo? Acredito na humanidade, mas confesso que estou desiludida.
Escrever pode unir?
Escrever une, mesmo que seja de forma temporária. A partir disso, podemos falar e refletir em conjunto, trocar impressões. Há uma comunicação de alma para alma. Criamos utopias. O que será da realidade não sabemos, mas temos um momento de ar fresco e de esperança.
São muitas histórias ainda por escrever, portanto.
O nosso país e África, em geral, é virgem no sentido de que a sua cultura e as suas histórias não foram escritas ainda, daí que tenha essa motivação para escrever. Se tivesse oito mãos escrevia muitas. Resta saber se chegarei lá.