De quatro em quatro anos o PCP faz um exercício de revisão e compilação de todo o trabalho desenvolvido pelo partido. Uma espécie de aula de revisões bem completa, que depois é publicada pelo jornal oficial do PCP ‘Avante’ e que poderá ser enriquecida com os contributos de todos os militantes, cumprindo as devidas regras. O objetivo é que, quando o Congresso reunir, as teses — ou a estratégia — para os próximos quatro anos estejam já afinadas e redigidas segundo a opinião dos membros do partido, dos órgãos nas empresas ao Comité Central (que aprovou os documentos no último fim de semana). E o documento deste ano dedica-se também a tentar justificar a participação do PCP na ‘geringonça’.
E seria de esperar que — depois de uma solução governativa que colocou o BE, PEV e PCP a ajudar o PS a governar — parte da reflexão do PCP se debruçasse sobre esse ponto. Ao longo de 77 páginas, a sigla do Partido Socialista é mencionada 53 vezes, a grande maioria delas seguida de PSD e CDS. Os comunistas insistem em colar a governação socialista à direita, afastada dos valores de esquerda e não tencionam minimizar essas referências em conjunto. Há uma coisa que o PCP faz questão de repetir: A ‘geringonça’ não foi um governo a três — à esquerda—, mas um governo minoritário do PS.
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E, da mesma maneira que dedicam quase uma página inteira aos “passos dados com a intervenção do PCP para a defesa, reposição e conquista de direitos”, também se demoram a enumerar tudo o que o PS impediu e que “o PCP sempre denunciou”: “O PS não abandonara opções essenciais da política de direita que, tendo estado presentes na sua governação e nas limitações estruturais que moldavam, designadamente nas propostas de OE, impediam a resposta plena aos problemas nacionais”, pode ler-se no documento que acrescenta ainda que “não se foi mais além porque o PS continuou amarrado a opções que limitaram o alcance e extensão da resposta que seria necessária”.
Mas há espaço, afinal, para uma ‘geringonça 2’? Não. Pelo menos, o PCP não parece interessado em voltar a dar a mão ao PS. É o próprio PCP que reconhece que da avaliação da anterior legislatura é necessário “extrair ensinamentos e experiência para a intervenção e luta futuras”. Ao longo das teses, o PCP coloca sempre o PS ao lado do PSD e CDS, frisando que os socialistas não se conseguem afastar da política de direita e das imposições da União Europeia. E aponta exemplos, como o das alterações ao Código do Trabalho (que foi revisto durante a anterior legislatura) para tentar clarificar junto do eleitorado que a anterior legislatura só não foi pior porque o PCP esteve lá a servir de travão aos objetivos do PS que, frisa o PCP, ferem “interesses dos trabalhadores e favorecem o grande capital”.
O PS governou com o seu programa e opções. O percurso de defesa, reposição e conquista de direitos que marcaram a primeira das legislaturas só foi possível pelo quadro político e institucional saído das eleições de 2015. Um quadro em que a correlação de forças condicionou opções e prioridades que marcam o seu comprometimento com a política de direita. O que mudou, então, não foi o PS e a sua natureza de classe mas sim as circunstâncias”, frisa o PCP deixando claro que o atual quadro legislativo em nada se assemelha ao anterior.
E, abrangendo as teses nos próximos quatro anos, haverá vários momentos eleitorais importantes para o PCP. Dentro de poucos meses as eleições presidenciais — a que candidatou o eurodeputado João Ferreira — e até ao final do ano as eleições autárquicas que terão especial importância na recuperação de importantes autarquias perdidas nas últimas eleições. E os comunistas enumeram: Alcochete, Alandroal, Almada, Barrancos, Barreiro, Beja, Castro Verde, Constância, Moura e Peniche. Estão todas nas mãos de socialistas e o PCP quer reavê-las. Mas para isso terá, naturalmente, que deixar bem clara a divisão entre o partido e as opções dos socialistas, para que não haja confusões depois de uma legislatura a apoiar o governo PS.
É a partir da realidade concreta portuguesa e da própria experiência dos comunistas portugueses que o PCP aponta o caminho para o socialismo e as características fundamentais da sociedade socialista em Portugal, cujas linhas fundamentais – inseparáveis das particularidades que marcam a história do povo português, a realidade social e a inserção internacional do nosso País – são sistematizadas no Programa do PCP «Uma democracia avançada – os valores de Abril no futuro de Portugal»”, escreve o PCP em jeito de nota explicativa para os mais confusos.
O plano de Costa Silva que não serve ao PCP
A poucos dias também da entrega do documento do Orçamento do Estado há outro documento que ocupa as agendas dos partidos. António Costa chamou o independente Costa Silva para ajudar a delinear o Programa de Recuperação Económica e Social, mas os partidos não ficaram agradados com o resultado final. O PCP teceu duras críticas depois da reunião com António Costa em São Bento e houve ainda tempo para deixar isso expresso nas teses que serão levadas a Congresso ou não fossem os apoios europeus para aplicar num período de tempo ainda mais alargado que a diferença entre os próximos Congressos do PCP.
“O Programa de Recuperação Económica e Social (PRES) que o Governo adotou para fazer face aos problemas que o país enfrenta mantém no essencial pressupostos e opções que têm condicionado e impedido o desenvolvimento nacional e estão na base das desigualdades e injustiças que marcam a sociedade e o território”, aponta o PCP acrescentando que “não é condição bastante enunciar problemas e objetivos”. Até porque, frisa, alguns deles já tinham sido “há muito sinalizados pelo PCP”. O PCP diz que a questão decisiva “está em saber como e ao serviço de quem esses objetivos se devem concretizar, as opções que se adotam, os objetivos e destinatários que se priorizam”.
E se ainda havia dúvidas sobre a viabilidade do programa que o Governo quer levar à aprovação de Bruxelas, o PCP é ainda mais direto: “A resposta plena aos problemas nacionais não é compatível com um Programa de Recuperação, apresentado como referência da política nacional para os próximos dez anos”. E porquê? Segundo os comunistas o Programa de Recuperação “ignora a valorização dos trabalhadores, dos seus salários e direitos; propõe a manutenção de todos os instrumentos do neoliberalismo; ilude os constrangimentos impostos pela ausência de soberania monetária e por uma dívida pública insustentável; porque assume o Estado como facilitador e financiador dos grupos económicos, e porque ignora o domínio pelo capital estrangeiro de empresas e sectores estratégicos”.
O PCP insiste que a “rutura com a política de direita é condição essencial para avançar na solução dos problemas do país” e para “responder às aspirações e direitos dos trabalhadores e do povo” que, segundo os comunistas só é possível com a “denúncia das opções da política do governo PS” além do “confronto com a estratégia do branqueamento do PSD e do CDS” de que, aliás, já fez públicas as críticas ao Presidente da República por promover o branqueamento do PSD e a tentativa de “bloco central”.
A autoavaliação do partido que comemorará 100 anos dentro de poucos meses
A 6 de março de 2021 o Partido Comunista Português vai realizar um comício no Campo Pequeno, em Lisboa, para assinalar a chegada ao centenário desde a sua fundação, contando com alguns anos de clandestinidade. “São 100 anos em que não há nenhuma transformação social, nenhum avanço ou conquista dos trabalhadores e do povo português a que não esteja direta ou indiretamente associada a iniciativa, a luta, a ação e a intervenção do PCP”, refere o partido no documento, em jeito de reflexão.
São conhecidos os lamentos do PCP sobre a cobertura dos meios de comunicação à sua atividade e, recentemente, com toda a “campanha” que o partido aponta ter sido realizada contra a Festa do Avante, que terá sido impulsionada por forças políticas mais à direita, segundo os comunistas. Mas também dentro do partido o PCP consegue encontrar quem falhe. “Regista-se a atividade de pessoas que, apresentando-se como membros do partido, contribuem para a campanha contra o partido”, frisam depois de apontar as “calúnias que procuram atacar a credibilidade do PCP e dos seus dirigentes”.
Relativamente ao efetivo, nos últimos quatro anos o PCP perdeu 4.320 militantes, mas a queda tinha sido maior no balanço do Congresso de 2016. Entre 2012 e 2016 o PCP tinha perdido 6.204 membros do partido. Tudo somado, em menos de 10 anos são menos 10.524 comunistas a engrossar o partido. E o PCP também não esconde que a nível financeiro ainda não foi possível chegar a uma situação de sustentabilidade financeira. “A situação exige que prossiga a implementação de medidas que permitam ultrapassar o profundo desequilíbrio financeiro verificado nas contas partidárias e garantir a sustentabilidade financeira”, frisam depois de deixar nas teses a indicação de que “as receitas extraordinárias e institucionais não permitiram superar a situação deficitária decorrente da atividade regular, obtendo-se um resultado financeiro negativo médio anual de 310 mil euros“. Ainda assim, a situação parece ser melhor que a relatada nas teses levadas ao XX Congresso (em 2016) quando o PCP afirmava ter “um valor médio anual negativo de cerca de 1 milhão e 82 mil euros”.
O Congresso marcará também a escolha do novo Comité Central e o partido assume que este possa ter “uma ligeira redução” ainda que deva manter os mesmos princípios. “O Comité Central deverá manter uma ampla maioria de operários e empregados, com uma forte componente operária; (…) deverá integrar quadros do partido – funcionários e não funcionários – com responsabilidades no trabalho de direção, camaradas de empresas e locais de trabalho, dirigentes ou ativistas de organizações e movimentos de massas, que se destacam em várias áreas da vida nacional. A natural renovação deve ter presente uma composição que alie a participação de quadros com experiência à responsabilização de jovens, bem como de mulheres”, detalham nas teses.
A heteroavaliação. Da direita à esquerda todos merecem críticas (exceto o parceiro da CDU)
Além da reflexão interna, no documento há também lugar à heteroavaliação das restantes bancadas. E se a olhar internamente o PCP é meigo, mas também encontra sinais de que a coisa não está a 100%, quando toca a avaliar os outros partidos o tom é outro, especialmente no que toca ao colega de carteira, o Bloco de Esquerda.
Diz o PCP que ao Bloco de Esquerda falta coerência. O “BE continua a beneficiar de promoção mediática” e mantém “um posicionamento caracterizado por inconsistências ideológicas”. “Cultiva uma agenda e um posicionamento assentes num verbalismo que não altera no essencial o seu carácter social-democratizante, expresso nas suas posturas federalistas assumidas no quadro da União Europeia, na submissão ao ambiente ideológico dominante, no alinhamento com objetivos do imperialismo e de revisionismo histórico em curso”, apontam os comunistas. Mas não é tudo mau: o PCP dá uma palmadinha nas costas do colega do lado a quem reconhece “matérias de convergência no plano institucional” já que, reconhece, ambos “convivem com o preconceito anticomunista”.
E como raramente se apontam falhas aos melhores parceiros, sobre Os Verdes há lamentos de “silenciamento e menorização” por parte da comunicação social, mas destaque para a “qualidade e seriedade do trabalho político e institucional”. E com o aparecimento de novos partidos ligados à ecologia, o PCP continua a enaltecer “o papel pioneiro” que Os Verdes “há muito tem em áreas como as da proteção da natureza, ambiente ou animais”.
E por falar em ambiente, para o partido Pessoas-Animais-Natureza fica a nota da “promoção da comunicação social”, uma espécie de dois em um já que faz uma crítica à cobertura desigual entre Os Verdes e o PAN, por exemplo, e considera que o PAN “assenta a sua intervenção num discurso demagógico a que não é alheio o anticomunismo primário e uma indisfarçável convergência com componentes da política de direita e interesses do grande capital”.
Mas à esquerda ainda se chegou a sentar o Livre, que perdeu a representação depois de ter retirado a confiança política à deputada única que tinha conseguido sentar no hemiciclo em outubro, e o PCP diz que essa perda de deputado “não está desligada da natureza e posicionamentos que alimentaram a sua base eleitoral”. Os comunistas dizem ainda que o Livre se procurou apresentar “como força de causas e de influência em meios urbanos” e que “nem sempre assumiu o seu carácter social democrata e federalista”.
Já nas bancadas do outro lado do hemiciclo o PCP vai-se mantendo atento ao “esforço de reposicionamento que contribua para branquear ou apagar responsabilidades recentes na política de retrocesso social e declínio económico que o PSD impôs ao país”. E a dinâmica interna do PSD também não escapa ao olhar dos comunistas: “Apesar das frequentes convulsões e disputas internas, o PSD continua a ser tido pelo grande capital como instrumento de promoção da política de direita”, apontam.
Com a troca de líder no CDS o PCP diz que os democratas-cristãos tentaram “branquear responsabilidades passadas”, quando formaram coligação com o PSD nos governos, e que “assume na disputa do espaço mais à direita uma agenda e objetivos mais nitidamente reacionários”.
Sentando na mesma carteira o Iniciativa Liberal e o Chega (como “sucedâneos do PSD e do CDS), o PCP demora-se um pouco mais a falhar sobre o Chega. Ao partido que elegeu como deputado único André Ventura — que é agora também candidato à Presidência da República — os comunistas apontam “um discurso demagógico de exacerbação de temas que identifica como suscetíveis de apoio, a ocultação deliberada do seu papel ao serviço do capital, a dinâmica fascizante presente na ação” e alerta para “os verdadeiros objetivos expressos no programa: liquidação do SNS, da escola pública e subversão do regime constitucional”.
Sobre o Iniciativa Liberal o PCP avalia-o como estando “associado aos centros mais reacionários do capital” tendo por objetivo intervir para “projetar valores e conceções antidemocráticas e intensificar a ofensiva ideológica dirigida contra os trabalhadores e povo português”.