O PCP esteve atento aos primeiros passos que Pedro Nuno Santos deu na liderança do PS e já tirou a sua conclusão: a “máscara” do homem que era conhecido como líder dos socialistas mais à esquerda caiu. No primeiro dia do XXII Congresso, em Almada, os comunistas confirmaram a análise demolidora que fazem sobre as decisões que Pedro Nuno tem tomado, assim como sobre as reduzidas — ou nulas — hipóteses que existem de os partidos voltarem a fazer acordos, mesmo com uma das maiores figuras da ‘geringonça’ ao leme do PS. Em Lisboa, como noutros planos eleitorais, não parece haver margem para conversas ou entendimentos.
O primeiro a lançar o tema foi o próprio secretário-geral, Paulo Raimundo, que no seu primeiro congresso enquanto líder disparou contra um PS que considerou “cúmplice” da direita. Mas houve outros dirigentes de topo, como Vasco Cardoso (membro da Comissão Política do Comité Central), que decretaram que os comunistas “tiraram a máscara” ao PS — uma posição também refletida nas “teses”, documento que reproduz as posições aprovadas pelo partido em cada congresso. Essa oposição ao PS atual também se refletiu nas entrevistas que dirigentes como Bernardino Soares e João Oliveira (líder parlamentar do PCP, precisamente, no tempo da ‘geringonça’) deram ao Observador, e nas quais constataram que, se Pedro Nuno Santos até “disse umas coisas interessantes” sobre ser de esquerda no passado, a “prática” é outra.
Na sua intervenção inicial, Paulo Raimundo não hesitou: arrumou as políticas do PS na prateleira da “política de classe”, frisando que isto se acentuou durante a maioria absoluta de António Costa; mas não deixou de atacar o PS atual, que apesar de fazer “proclamações” para fingir que é oposição ou optar por “abstenções violentas” (como aconteceu quando deixou passar o Orçamento do Estado ou o programa de Governo, que o PCP propunha rejeitar) acaba por ser “cúmplice” da direita. “PSD e o CDS tiveram o Orçamento aprovado, o PS criou-lhes as condições para isso, libertando o Chega e a IL de ter de votar a favor. Todos e, para lá de fabricadas discordâncias, são cúmplices do caminho em curso”, disparou.
A crítica de Raimundo focou-se muito no PS atual, mas foi mais longe. Num momento em que os comunistas veem outras forças, nas quais se incluem o Bloco de Esquerda e o Livre, a defenderem convergências com os socialistas em vários âmbitos (das eleições autárquicas às presidenciais), não falta quem no PCP considere que essas alianças seriam, neste momento, puramente artificiais e sem conteúdo, meras táticas eleitorais para tentar ganhar votos.
E neste discurso Raimundo foi claro: “Podem inventar todas as frentes”, que o PCP continuará a considerar que tem de se fortalecer por si próprio. Se não o fizer, ficará “diluído” noutros projetos ou meramente reduzido a uma muleta do PS, comenta-se nos corredores do partido. Como aconteceria, por exemplo, se o PCP desse a mão ao PS em Lisboa com único objetivo de derrotar Carlos Moedas — em entrevista ao Observador, Bernardino Soares também comentaria que em Lisboa o objetivo de uma coligação à esquerda parece não passar de pôr outros partidos a apoiar um candidato do PS.
Há outras críticas que Raimundo deixou no palco de Almada e que se dirigem aos socialistas: o confronto entre quem defende a democracia e quem quer “concluir o processo contra-revolucionário” não permite que se “fique em cima de muro“, nem que se “fale de esquerda e se apoie a política de direita”, ou que se “fale nos direitos dos trabalhadores e se promovam mais benefícios para o grande capital”. Esta tem sido uma das linhas de ataque do PCP ao PS — ainda há dias o partido partilhava nas suas redes sociais um vídeo de uma intervenção da líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, para destacar supostas incoerências entre a prática e a ação do PS (primeiro aparecia a crítica de Leitão ao PSD por não reter médicos no SNS; depois, o momento da votação do Orçamento de Estado em que o PS rejeita a proposta do PSD para a exclusividade dos médicos no SNS, por exemplo).
Para o PCP, não há espaço para “falsas saídas” e “soluções inconsequentes”: o partido tem de ser mais forte e não pode depender de entendimentos com outros para isso. Para mais, quando nos corredores do PCP se comenta até que outros partidos de esquerda tentam propositadamente isolá-lo ou pintá-lo como “lunático”, e que promovem coligações — como no caso de Lisboa — em que toda a esquerda se “dilui” e se une apenas graças ao “mínimo denominador comum de não ser fascista”.
“Pedro Nuno disse umas coisas interessantes no passado, mas é a prática que conta”
Pedro Nuno diz “coisas interessantes”, mas não chega
Em entrevista ao Observador, o dirigente e ex-autarca de Loures Bernardino Soares mostrou-se em sintonia com Paulo Raimundo, desde logo na análise que faz ao momento do PS. Sobre Pedro Nuno Santos, e questionado sobre a fama que o atual líder do PS sempre cultivou à volta de ser o representante da ala mais à esquerda do partido, além de defender a ideia de que a política nacional deve ser polarizada e dividida em blocos esquerda-direita, Bernardino ironizou: Pedro Nuno até “disse coisas interessantes desde há uns anos para cá”, mas “a prática é que conta“.
E com essa prática o PCP não está impressionado. Desde logo, o ex-autarca comunista recordou o currículo de Pedro Nuno Santos: “Foi ministro de Costa na maioria absoluta”, lembrou; antes disso, foi secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares durante a época da ‘geringonça’, mas isso foi um momento “muito específico e irrepetível“; já quando “tocou a decidir se era preciso apoiar ou não grupos económicos e banca e tomar medidas para romper com a especulação na habitação, o PS esteve sempre desse lado e Pedro Nuno Santos esteve sempre com o PS”.
Mais: o comportamento do PS no primeiro Orçamento do Estado de Luís Montenegro, que acabou por viabilizar, serviu para os comunistas como a prova dos nove. “Viabilizou o OE da baixa do IRC”, constatou João Oliveira, antigo líder parlamentar do PCP. Para mais, juntou a isto uma crítica que Raimundo já tinha lançado: ao viabilizar o Orçamento, Pedro Nuno Santos libertou a Iniciativa Liberal e o Chega desse ónus e deu-lhes “a possibilidade de ficarem como opositores, em vez de esse campo ficar para os partidos à esquerda do Governo”. Ou seja, acabou por prejudicar todo o campo da esquerda, ao permitir que partidos como o Chega se assumissem como oposição — e presumivelmente possam recolher votos graças a isso, ajudando a esvaziar a esquerda da sua função de voto de protesto.
Ainda nessa entrevista ao Observador, eurodeputado comunista defendeu que a aprovação do Orçamento do Estado serviu para revelar, mais uma vez, “o critério oportunista com que o PS se vai posicionando, no discurso mais à esquerda, mas contribuindo para opções contrárias”. Ou seja, se Pedro Nuno Santos sempre se colocou teoricamente no espectro mais à esquerda, a abstenção e consequente viabilização no Orçamento do Estado de Luís Montenegro só veio provar que “o PS vai pondo e tirando a máscara“, mas continua essencialmente um aliado do centro-direita.
O antigo líder parlamentar comunista, que negociou diretamente com Pedro Nuno Santos durante os tempos da ‘geringonça’, não mostra grande surpresa com o facto de o sucessor de António Costa não ter invertido o caminho. “Só pode ficar desiludido com o PS quem alimenta essas ilusões”, rematou. João Oliveira fez mesmo questão recuperar o exemplo da “abstenção violenta” de António José Seguro no primeiro Orçamento do Estado de Pedro Passos Coelho para comparar os dois líderes e a sua relação com o PSD — uma óbvia provocação a Pedro Nuno Santos, que se afirmou precisamente como o resto da ala mais à esquerda do partido, o líder dos ‘jovens turcos’ do PS, precisamente no combate interno à estratégia de Seguro.
Feita toda esta análise, tanto um como outro acabariam por rejeitar possíveis alianças, nomeadamente autárquicas. “O PS nem sequer se desligou da atual legislação de Moedas, tem viabilizado todos os orçamentos. Tem de haver uma convergência em termos de quê?”, desafiou Bernardino Soares. O mesmo valerá para as presidenciais, embora falte ainda muito tempo. Mas se a ideia é começar a construir uma frente de esquerda para derrotar o(s) candidato(s) da direita, não existe, para já, grande entusiasmo por parte do PCP na avaliação que se vai fazendo sobre os protocandidatos presidenciais: de Mário Centeno a António Vitorino, João Oliveira, por exemplo, concluiu que todos se encaixam na atual “fogueira de vaidades” que é a pré-corrida a Belém, sem perfil para defender a Constituição.
“Pedro Nuno? Só pode ficar desiludido com o PS quem alimenta essas ilusões”
PS “demitiu-se” da oposição. “Caiu a máscara”
Quem também aproveitou a sua intervenção no púlpito do congresso para lançar uma farpa dirigida ao Largo do Rato foi o dirigente Vasco Cardoso, que falou para apresentar as teses deste congresso. E fê-lo assim: “Nas teses tiramos a máscara ao PSD, CDS, Chega, IL, mas também ao PS, cuja submissão aos interesses do grande capital contrasta com ilusões que ainda persistem”. Mais uma vez, o PCP a querer acabar com as “ilusões” de que o atual PS se posicione realmente — e mais do que o PS de António Costa — à esquerda.
De resto, basta consultar o longo documento que contém as teses do partido para constatar que esse ataque é feito e repetido por diversas vezes. Primeiras referências: Governos do PS colados aos da direita e carregando a culpa de “empurrar Portugal para uma crise profunda”; um último Governo do PS que não se “distinguia” das decisões da direita; um PS e um PSD atuais que “partilham objetivos em questões essenciais”; uma política de direita que “encontrou no PS” uma casa, independentemente das “fabricadas polémicas e confrontos verbais” em que se meta contra PSD, CDS, Chega e IL.
Depois, os comunistas lançaram-se ainda a uma autópsia tardia à geringonça, criticando o PS por revelar um “incómodo” sobre a “nova fase da vida política nacional” — o termo que o PCP usa para se referir aos acordos assinados à esquerda — e “deturpar” e “simplificar” o que saiu desses acordos. Nessa altura, recorda o PCP, o PS foi assumindo cada vez posição de crescente “resistência” até que os dois partidos romperem em definitivo o acordo e os socialistas chegaram à maioria absoluta. Por outras palavras: o PS instrumentalizou a ‘geringonça’ e o PCP para ganhos eleitorais, ignorando ou assumido como exclusivamente suas todas as conquistas desse período.
Hoje, segundo o diagnóstico do PCP, o resultado não é melhor: o PS “demitiu-se” de enfrentar o Governo e “promove e facilita” a política de direita e os projetos que se “confrontam” com a Constituição. Para os comunistas, Pedro Nuno Santos não veio alterar nada. Mas veio entregar uma hipótese a um PCP enfraquecido para tentar estabelecer-se como a “verdadeira força de oposição”: mesmo por entre os muitos lamentos e críticas à estratégia do PS, a verdade é que, ao dar a mão a Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos abriu pela primeira vez desde 2015 uma estrada para o PCP se afirmar por oposição e concretamente como um força verdadeiramente alternativa aos socialistas.