PS e PSD estão muitas vezes de acordo na Europa, mas o ambiente ficou tão crispado que a contenda remete para o habitual combate em solo nacional. O Parlamento Europeu debateu esta terça-feira a Lei de Restauração da Natureza, em Estrasburgo, e o debate azedou: de um lado o socialista Pedro Silva Pereira acusou o PSD de espalhar fake news; e, na resposta, Lídia Pereira, disse ao vice-presidente do Parlamento para ir repetir em Pedrógão Grande o que estava a dizer em Estrasburgo.

A lei prevê, por exemplo, que as madeiras mortas sejam deixadas na natureza, um ponto que o PSD considera que aumenta o risco de incêndios — posição que o PS contesta, falando numa direita “negacionista” e encostada à extrema-direita. A proposta tem tido forte oposição do PPE, família europeia do PSD, apesar de vir originalmente da Comissão liderada por um dos rostos da direita europeia, Ursula von der Leyen.

O debate levou mesmo a ativista sueca Greta Thunberg a manifestar-se junto ao Parlamento Europeu, exigindo que os eurodeputados não travem a proposta. Já o especialista em incêndios Xavier Viegas avisa que é preciso “cuidado” com esta lei porque, num país como Portugal, pode mesmo aumentar o risco de incêndio.

O Observador dá-lhe oito respostas sobre esta lei que será votada esta quarta-feira no Parlamento Europeu, em Estrasburgo.

O que está o Parlamento Europeu a decidir por estes dias?

O objetivo europeu é ambicioso: conseguir reduzir as emissões líquidas de gases com efeitos estufa em 55% até 2030. E esta quarta-feira, em Estrasburgo, o Parlamento Europeu vai debruçar-se sobre um conjunto de propostas legislativas com o objetivo de tornar as políticas da UE em matéria de clima, energia, transportes e fiscalidade adequadas para alcançar essa mesma meta.

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À cabeça surge a proposta da Comissão Europeia para uma lei da restauração da natureza, que procura reverter os danos provocados ao ecossistema e com impacto em terrenos agrícolas, mares, florestas e ambientes urbanos. De acordo com a Comissão, este ato legislativo pretende fixar metas juridicamente vinculativas em matéria de restauração da natureza em função dos diferentes ecossistemas para todos os Estados-membros, complementando assim a legislação que já está em vigor. “O objetivo consiste em fazer com que, até 2030, as medidas de restauração da natureza abranjam pelo menos 20% das superfícies terrestres e marítimas da UE e, até 2050, incluam todos os ecossistemas que devem ser restaurados”, consta na descrição oficial.

Qual a origem da lei?

O Green Deal (Pacto Ecológico Europeu , numa tradução muito livre em português) é uma das bandeiras da Comissão Europeia liderada por Von der Leyen, com a própria a assumir-se como um rosto desta intifada verde. O mandato da Comissão começou em 2019, mas a pandemia atrasou muita da atividade nesta área. Porém, há cerca de uma ano (a 22 de junho de 2022), a Comissão Europeia avançou com uma proposta para a restauração da natureza com o objetivo ambicioso de “reparar os danos causados a 80% dos habitats europeus e trazer a natureza de volta a todos os ecossistemas, dos terrenos florestais e agrícolas aos ecossistemas marinhos, de água doce e urbanos”.

A Comissão do Ambiente no Parlamento Europeu acabaria por votar o relatório na semana passada com 44 votos a favor e 44 votos contra, posição da qual emanou uma proposta em plenário para a iniciativa da Comissão ser rejeitada. A autoria da lei é de uma comissão liderada por Ursula von der Leyen, que é da família política do PPE, mas é também o PPE que está a tentar matá-la e o os socialistas europeus (S&D) e os Verdes (a quarta família europeia) que estão a assumir a defesa da proposta.

Ursula está a ser atacada pela própria família política?

Ursula von der Leyen tem sido pressionada internamente na comissão pelo vice-presidente que tem a pasta do Green Deal, o socialista Frans Timmermans, mas também pelos Verdes. A presidente da comissão dá a cara pelo projeto, mas é também um dos rostos mais importantes do PPE, que tem feito uma campanha dura contra esta Lei da Restauração da Natureza.

O eurodeputado alemão que faz parte da comissão de ambiente Peter Liese, citado pelo POLITICO Europe, diz que “o Green Deal é algo de muito positivo, mas estamos prestes a ir longe demais”. É essa a posição do PPE: que a Europa está a ir além do necessário no pacto verde. E que isso — e aí interessa eleitoralmente à família política europeia do PSD— vai atingir os agricultores e a indústria.

O maior grupo conseguiu impor a sua força e, na comissão de Ambiente, conseguiu um empate na votação — o que, como definiu o POLITICO, é “uma grande vitória da campanha do PPE”. Os eurodeputados do PPE que pendiam para o lado verde (e de Von der Leyen) foram mesmo substituídos na comissão para que o PPE conseguisse esta vitória política.

Mas as fraturas estão expostas. Os diferendos terão começado internamente na CDU alemã. A negociadora principal do PPE é Christine Schneider, da CDU, que desde o início teve uma lógica de negociação na parte final retirou-se das negociações – o que aconteceu após Mafred Weber ter dado indicação de que era preciso rejeitar lei. Fontes europeias veem neste mais um episódio da medição de forças entre Ursula Von der leyen e Manfred Weber, que mantém ambições – quase impossíveis de concretizar – de presidir à Comissão Europeia.

Tem sido, aliás, o presidente do PPE, Manfred Weber, a assumir a iniciativa no ataque à proposta. O PPE tem vincado que a lei não passou na comissões de Ambiente, Agricultura e Pescas, por causa de mudanças nos membros dessas comissões. Stanislav Polcak, da República Checa, assumiu publicamente que “não considera uma boa decisão” a rejeição desta lei por parte do PPE e que por isso pediu para sair da comissão de Ambiente.

No fim do dia, o lado menos verde, levou a melhor. Na comissão de Ambiente, os membros do PPE que iam votar a favor da proposta foram convidados a não votar e substituídos por membros da comissão da Agricultura.

Publicamente, o PPE está na frente, mas tem aqui um problema: está a derreter a grande bandeira de Ursula von der Leyen para a reeleição: o Green Deal. E colocar Ursula mais perto dos socialistas do que da direita europeia é uma meia-derrota em véspera da escolha de altos cargos europeus, que é já daqui a um ano.

O que pensa o PSD sobre a lei?

O chefe da delegação do PSD no Parlamento Europeu, José Manuel Fernandes, começou a semana a arrasar a ‘Lei de Restauração da Natureza’ num artigo de opinião publicado no Observador, considerando que “o conceito é positivo, mas o seu conteúdo é muito negativo, sobretudo para Portugal.” Para José Manuel Fernandes esta “é uma proposta contra o ambiente, prejudica a biodiversidade, aumenta o risco de incêndios e leva ao aumento dos preços dos produtos alimentares.”

O eurodeputado adverte que a lei impõe que não se retire a madeira morta da floresta, o que, acredita, significa manter “um verdadeiro combustível que favorece os incêndios.” E avisa que podem propiciar novos incêndios como os do verão de 2017: “Não nos podemos dar ao luxo de repetir cenários catastróficos como aqueles que já vivemos.”

Já esta terça-feira, foi a eurodeputada Lidia Pereira a criticar a adoção desta lei por parte de Portugal. A social-democrata foi até acusada por Pedro Silva Pereira, do PS, de estar a lançar fake news sobre os efeitos deste diploma no que toca à prevenção de incêndios – o PSD diz que a Lei de Restauração da Natureza impede a limpeza dos terrenos –, e Lídia Pereira deixou até um desafio ao eurodeputado socialista: “Vá falar com as pessoas a Pedrógão Grande e com os agricultores que estão fora deste Parlamento”.

Os incêndios de 2017 provocam mossa no PS e a eurodeputada social democrata atirou ao rival socialista com as falhas que têm existido na recuperação dessa região e que foram também vincadas pelo Presidente da República, que ainda recentemente, na inauguração do memorial às vítimas, admitiu que tem sido mais difícil regenerar a zona de Pedrógão Grande do que outros locais da região centro.

Para o PSD, este diploma tem objetivos que prejudicam Portugal, ao impor os mesmos resultados para os vários Estados-membros, o que, entendem os sociais-democratas, será prejudicial para a prevenção de incêndios rurais em território nacional.

Na intervenção que fez no plenário do Parlamento Europeu, a eurodeputada do PSD procurou ainda afastar a lei da presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen (PPE), ao dizer que este é diploma pensado por Franz Timmermans, o vice-presidente da comissão que é indicado pelos socialistas (S&D).

O PSD e o PPE têm até vincado que a proposta é “bem intencionada”, mas logo atacam a iniciativa da Comissão Europeia, ainda que procurando salvar Von der Leyen, que tem estado em silêncio sobre o assunto.

O que pensa o PS sobre a lei?

O clima aqueceu entre a esquerda e a direita e já leva mesmo o PS a atirar acusações de “negacionismo”, “campanha de notícias falsas”, “mitos” e até “mentiras” contra o outro lado do espetro político, particularmente contra o PSD, cuja posição neste dossiê cola à da extrema-direita. Ao Observador, o deputado socialista João Albuquerque diz-se mesmo “perplexo” com o conteúdo do debate: “Deixou de assentar no melhor pensamento científico, o que torna muito difícil qualquer tipo de discussão, e passámos a ter de debater os próprios factos”.

O ponto mais controverso da lei – o artigo 10º, que prevê que a madeira morta não seja retirada das florestas para que contribua para a sua restauração – é o exemplo que destaca. “Há mentiras a ser propagadas. O PSD diz que o artigo 10º vai implicar deixar madeira morta nas florestas e aumentar o risco de incêndios. É fundamental desmentir isto”. Por um lado, porque, recorda, a lei prevê que cada Estado-membro estabeleça objetivos concretos a aplicar no seu território, dando “flexibilidade” para adequar o texto da lei à ação às “especificidades” do terreno, do clima e do território.

Depois, prossegue João Albuquerque, há entre os especialistas quem aponte que a presença da madeira morta é “essencial” para a restauração das florestas sustentáveis, com uma ressalva: deve ser “despedaçada” para não contribuir para o aumento do risco de incêndios. “Nada obriga a que se deixe ficar madeira morta no terreno”, madeira essa que está a ser descrita pelo PSD como “um rastilho ou uma pólvora” para incêndios, lamenta o eurodeputado.

Mas a discussão vai mais longe: para os socialistas, tudo isto faz parte de uma posição mais abrangente do PSD sobre o Pacto Ecológico Europeu, de que esta lei é uma “parte fundamental”. “É de lamentar, porque o PSD é um parceiro essencial para a estabilidade democrática e custa vê-lo embarcar numa lógica de fake news e negacionismo que a extrema-direita tem alimentado por causa de guerras na sua própria família política europeia”, atira o eurodeputado socialista, dizendo ainda ter esperança de que PSD e CDS ainda recuem na sua posição até quarta-feira, dia da votação, “para podermos voltar à racionalidade dos argumentos”.

No debate desta terça-feira, o eurodeputado Pedro Silva Pereira escolhia palavras duras para seguir a mesma linha, acusando o PSD e em concreto a eurodeputada Lídia Pereira de “lançar uma campanha de notícias falsas sobre a lei”. “A minha pergunta é se realmente leu a lei de que está a falar e se leu porque é que mente sobre o seu conteúdo”, questionou, frisando mais uma vez que os Estados-membros terão autonomia na forma como aplicarão a lei e que as indicações científicas irão variar de país para país.

Mais à esquerda, a lógica é a mesma: PCP e Bloco de Esquerda fazem parte de outra das famílias políticas que defendem esta lei. O Bloco tem acusado a direita portuguesa de alinhar com a extrema-direita, o que está a servir de clarificação, defendeu Marisa Marias, entre “quem defende o futuro e quem não tem qualquer tipo de escrúpulos na defesa dos interesses económicos que trouxeram o planeta ao estado em que se encontra”.

O que dizem os especialistas?

O especialista em incêndios Xavier Viegas corrobora, em parte, a argumentação apresentada pelo PSD. Em declarações ao Observador, o professor universitário pede “cuidado” na forma como se pretende aplicar esta lei, já que “é diferente deixar a natureza fazer o seu caminho sozinha no centro na Europa do que em Portugal”.

Embora destaque muitos “aspetos positivos na lei”, Xavier Viegas diz que a União Europeia tem de “perceber onde a lei pode ser aplicada” e com particular “cautela” no sul da Europa, onde a produtividade florestal no inverno e os verões secos pode ser uma conjugação fatal para que – caso não se limpe essas matérias mortas das florestas – o risco de incêndios florestais aumente com esta nova legislação comunitária.

O especialista admite que esta lei pode ser positiva em várias zonas da Europa e até de Portugal, mas que tem de haver uma maior acuidade científica para se perceber onde é perigosa e onde é vantajosa para a recuperação da biodiversidade sem colocar em causa a própria floresta. Xavier Viegas pede ainda ao PS e PSD que olhem para esta questão com “equilíbrio”, lembrando que “não é uma questão de direita ou de esquerda”, mas que atinge a vida de todos.

O que defende a ativista Greta Thunberg?

A ativista sueca esteve esta terça-feira, logo pela manhã, em Estrasburgo à porta do Parlamento Europeu, que se reúne na cidade francesa esta semana. Com a lei a ser votada esta quarta-feira, os ecologistas liderados por Greta Thunberg pressionam os eurodeputados a deixarem passar a legislação que pretende vincular todos os estados membros.

A votação está apertada e a pressão externa expressou-se dos dois lados, à porta do Parlamento. Do lado de lá do grupo de  cerca de 150 jovens que militam na organização Juventude pelo Clima estavam os representantes dos agricultores. E se um lado, Greta desafiava os eurodeputados a “ficarem do lado certo da história” e a “passarem das palavras aos atos”, aprovando a legislação, do outro, os agricultores manifestavam-se contra a existência de uma lei que limite a sua atividade económica – rodeando o edifício com tratores.

Que futuro tem a Lei de Restauração da Natureza?

Depois da rejeição da proposta da Comissão Europeia na comissão de Ambiente do Parlamento Europeu, no final de junho, a iniciativa subiu ao plenário, onde tem sido discutida e vai ser votada por todos os eurodeputados.

Tendo sido rejeitada na especialidade, a comissão de Ambiente vai propor ao plenário a rejeição da proposta redigida pela Comissão Europeia, mas há ainda uma forma de salvar o diploma e tentar fazer aprovar a Lei de Restauração da Natureza.

Caso o plenário não rejeite a lei, os eurodeputados do PPE podem aprovar propostas de alteração (emendas) e caso o número de alterações seja superior a 50 a iniciativa tem obrigatoriamente que voltar à comissão para que exista uma filtragem das emendas, o que pode forçar a criar um compromisso político: a iniciativa não cai por terra, mas tem que aceitar várias alterações propostas pelo PPE para garantir que é aprovada no futuro.

A votação está marcada para esta quarta-feira.

Os jornalistas viajaram a convite do Parlamento Europeu