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Era 1993 e em Portugal o “Expresso” publicava o polémico “cartoon” de António, com um preservativo enfiado no nariz do papa João Paulo II. Arrancavam as emissões regulares da TVI, abria o Centro Cultural de Belém, o presidente Mário Soares recebia Yasser Arafat em Lisboa e as rádios massacravam os ouvintes com a insólita “La Kabra”, canção dos espanhóis The Farmlopez. Nenhum acontecimento, porém, terá captado tantas atenções quanto o da mulher que castrou o marido nos EUA e atirou o pénis para um descampado. O drama, a tragédia, o horror. Toda a gente falava do assunto, a década ganhava um caso sensacional e Lorena Bobbitt entrava no imaginário coletivo.

História fútil e bizarra, mas de contornos muito sérios que não dão vontade nenhuma de rir – é mais ou menos assim que em setembro de 93 o “pivot” Hugh Downs apresenta no canal americano ABC uma entrevista exclusiva com a mulher do estado da Virgínia que havia mutilado o marido. “Ele tinha mais força do que eu. Gritei, não queria ter sexo com ele, mas ele não me ouvia”, contava Lorena Leonor Gallo Bobbitt, então com 23 anos. John Wayne Bobbitt, de 26, aparecia retratado como violador e concluía-se que o casamento deles era, afinal, marcado por constantes abusos físicos e psicológicos. O medo ancestral da castração assaltou espíritos naquele verão. Psicólogos, juristas, comentadores e feministas esquadrinharam o caso até às últimas, mas para lá do sórdido e do cómico assomava o tema da violência doméstica. “Estamos perante uma tragédia e não uma comédia”, afirmou à época o representante de uma associação contra a violência doméstica, a National Coalition Against Domestic Violence.

26 anos depois, é precisamente esse o ponto de vista de um documentário de quatro episódios que será exibido a partir do dia 15 no serviço “online” Amazon Prime Video (disponível em mais de 200 países, incluindo Portugal). “Lorena”, assim se chama a série, é assinada por Joshua Rofé e Jordan Peele, com chancela da Amazon Studios. Teve antestreia a 29 de janeiro no festival de cinema independente de Sundance, nos EUA.

[trailer de “Lorena”:]

Com avisos de “nudez”, “imagens explícitas” e “conteúdo para maiores de 18 anos”, a série documental “leva-nos a repensar preconceitos e dá profundidade à história de uma mulher que muitos reduziram à caricatura”, lê-se na sinopse. “A falta de apoio às vítimas de violência doméstica, o poder e a fragilidade da palavra ‘pénis’, o inesperado percurso de John depois da recuperação e o apetite voraz do público que incitou ciclos noticiosos de 24 sobre 24 horas”, eis o resumo da narrativa.

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O primeiro episódio, a que o Observador teve acesso via Amazon Studios, dura 60 minutos e faz uma reconstituição circunstanciada dos acontecimentos, ao mesmo tempo que lança pistas para temas a desenvolver nos episódios seguintes. Há imagens de arquivo – lençóis de cama ensanguentados, o próprio pénis avulso, dose industrial de espetáculo – e testemunhos atuais dos vizinhos, dos polícias e investigadores, do cirurgião, do urologista, da enfermeira. Lorena e John também falam, claro, sem que a versão de um seja engrandecida perante a do outro.

Um dos investigadores, Cecil Deane, descreve em grande plano: “Quando cheguei ao hospital, levaram-me a uma sala onde se encontrava a vítima e quando levantaram os lençóis vi um escroto sem pénis, tinha sido cortado mesmo rente.” Não faltam momentos cómicos. E não falta uma montagem de aspetos aparentemente sinistros na cobertura mediática do assunto, com a castração no centro dos discursos e as piadas fáceis em torno de tão invulgares circunstâncias.

Ainda no primeiro episódio diz-se que durante várias semanas a imprensa americana não publicou o nome de Lorena, prática comum à época em casos de abuso sexual. E terá sido o “Washington Post” o primeiro a fazê-lo, numa notícia do jornalista Carlos Sanchez, que agora é entrevistado. Ele lembra-se de ter falado com Lorena na manhã seguinte à castração e as primeiras palavras não poderiam ter sido mais marcantes: “Ele violou-me, ele violou-me.” Meses depois, quando percebeu que Lorena tinha contratado um assessor de imprensa, o jornalista concluiu que não havia problema em publicar o nome dela, até porque nessa fase já a revista “Vanity Fair” preparava uma grande entrevista, com produção fotográfica e tudo. Lorena queria aparecer e apresentar a sua versão.

Num vídeo promocional da estreia, publicado há dias na rede social Twitter, Lorena revela uma atitude determinada, longe da fragilidade que o mundo lhe conheceu há quase 30 anos, e garante que aceitou entrar no documentário ao sentir-se legitimada pelo movimento feminista Me Too, que ganhou força nos EUA em fins de 2017, na sequência de denúncias de violação e abuso sexual contra o produtor de cinema Harvey Weinstein.

https://twitter.com/IMDb/status/1090784476962140160

Paixão na base militar

Voltemos a 93 e à peça emitida pela ABC (de que são apresentados excertos no documentário da Amazon). De voz sumida e desfeita em lágrimas, Lorena Bobbitt acusa: “Ele batia-me e quando fazíamos sexo tentava sufocar-me, porque dizia que o sexo violento o excitava.” O advogado do marido nega as acusações: “Desculpas esfarrapadas.” Mas Janna Bisutti e alguns vizinhos corroboram a versão dela e dizem que Lorena apareceu muitas vezes com marcas nas costas e no pescoço por causa das agressões de John. A polícia local confirma até que ao longo dos anos tinham sido várias as queixas dela por violência doméstica, mas o casal acabaria sempre por se reconciliar.

Semanas antes do sucedido, Lorena teria engravidado e o companheiro obrigou-a a abortar, dizendo-lhe que nunca seria uma boa mãe. O caso era chocante e antes de se jogar na barra dos tribunais fez-se objeto “pop” nos ecrãs da América. “Um circo de que nunca me esquecerei”, diz Lorena no primeiro episódio.

Nascida no Ecuador e criada a partir dos cinco anos na Venezuela, para onde a família emigrara, Lorena era a mais velha de três filhos de um casal católico. Chegara aos EUA aos 19 anos com uma mão atrás e outra à frente. Trabalhou como ama e manicure e chegou a ser apanhada a roubar numa loja e condenada a serviço cívico, o que depois foi usado em tribunal, sem êxito, pela defesa do marido.

19 janeiro de 1994. John Wayne Bobbitt no sexto dia de julgamento (Foto: POOL/AFP/Getty Images)

Pouco depois de se estabelecer, conheceu John num clube da base aérea de Quantico, Virgínia, numa ocasião em que teria lá ido trabalhar como ama (registe-se a curiosidade: é a mesma base militar onde em 2011 ficou detido Bradley Manning, o soldado que verteu para a WikiLeaks centenas de milhares de telegramas diplomáticos classificados e que entretanto mudou de género e se chama Chelsea Manning). Apaixonaram-se. Ele sentia forte atração por ela e ela achava que aquele americano bem parecido era o homem da sua vida. Namoraram durante quase um ano e um dia ele ofereceu-lhe um anel de noivado. Em 1989 já estavam casados.

Nascido nos EUA, militar da marinha por alguns anos, John desorientou-se e não teria emprego certo, saltaria de biscate em biscate, chegou a ser taxista, muitas vezes andaria bêbado. Sem dinheiro para manterem uma casa, estiveram à beira do divórcio e afastaram-se durante largos meses, até que voltaram a morar juntos em abril de 93, no pacato bairro-dormitório de Maplewood, em Manassas, estado da Virgínia. Dois meses depois, acumuladas discussões e alegada violência física, Lorena cortou o pénis de John. Foi na madrugada de 23 de junho.

Faca de cozinha: a noite fatídica

Relatou a ABC News nesse ano: Lorena já estaria na cama naquela noite quando o marido e um amigo entraram em casa, visivelmente alcoolizados. O amigo ficou a dormir no sofá e John foi para o quarto. “Pôs-se em cima de mim, agarrou-me os braços com força, como era hábito. Tentei afastá-lo, mas não consegui. Disse-lhe que não queria fazer sexo, mas ele não me deu ouvidos. No fim, comecei a chorar, sentia-me envergonhada e humilhada”, explicou Lorena. Minutos depois, dirigiu-se à cozinha para beber água e os acontecimentos precipitaram-se.

“De repente, vi a faca, comecei a pensar em muitas coisas ao mesmo tempo: no aborto, nas coisas que ele me tinha dito sobre ser má mãe, as constantes violações. Voltei ao quarto, levantei os lençóis e cortei.” Neste passo, a jovem chora perante as câmaras da ABC. Porquê o pénis? “Não sei, só sei que ele me magoou e lembro-me de ouvir a voz dele na minha cabeça: ‘Vou atrás de ti até ao fim do mundo e vais ter de ter sexo comigo’.”

Ele mal reage à castração, provavelmente por estar bêbado. Ela pega na carteira, sai de casa, liga o carro, muito nervosa, conduz sem destino. Os detalhes tornam-se anedóticos. “Percebi que tinha o pénis dele na mão e atirei-o pela janela”, diz. Vai até casa da amiga e patroa, Janna Bisutti, que toma a iniciativa de chamar a emergência médica, mas John já deu entrada no Hospital de Prince William, com uma hemorragia profunda. Melhor ainda: a polícia começa de imediato a procurar o órgão de John, primeiro em casa, depois algures na berma da estrada, sob indicações confusas de Lorena. Muito melhor: encontram mesmo o pénis perdido e levam-no ao hospital. Os médicos implantam-no de volta, através de uma cirurgia que dura mais de nove horas.

O americano desequilibrado e a imigrante cheia de sonhos acabam ambos em tribunal. Arriscam até 20 anos de prisão. Ele é acusado de violência sexual conjugal (“marital sexual assault”), ela, de ofensas à integridade física com dolo (“malicious wounding”). Mal sabe dos factos, a imprensa salta sobre o assunto e explora-o durante muitos meses.

Cientes dessa repercussão, John e Lorena contratam assessores de imprensa e agentes para negociação com editoras ou estúdios de cinema que quisessem comprar direitos sobre a história, noticia então o “New York Times”, acrescentando em tom imparcial: a senhora Bobbitt foi acusada imediatamente após os factos, enquanto o senhor Bobbitt só o foi seis semanas depois.

Um dos produtores da série documental, Jordan Peele, vencedor em 2018 do Óscar de Melhor Argumento pelo filme “Foge”, diz agora que os factos foram “mal interpretados” em 93 e por isso motivaram chacota e ridículo. Mas acredita que “em retrospetiva já podemos analisar o porquê dessas reações e iniciar um debate sério” em torno do caso Bobbitt.

O tema oculto: violência doméstica

O barulho mediático não deu tréguas, voltou em força quando se iniciou o julgamento de John, em 8 de novembro de 93. Ele apresentou diferentes versões dos factos. Disse não se lembrar de ter feito sexo com a mulher na noite do incidente ou talvez tivesse feito, mas em estado inconsciente, ele próprio, enquanto dormia. Sobre o momento preciso da castração, relatou: “Senti um solavanco, levantei-me de repente e senti uma dor silenciosa. Pus as mãos na zona genital e aguentei-me.”

Com declarações tímidas e hesitantes, de acordo com a imprensa, John e Lorena revelam em audiência a relação tumultuosa que vivem. Sabe-se que dias antes de emascular o marido ela pediu às autoridades para o proibirem de a contactar, mas depois não compareceu perante um juiz e o pedido ficou sem efeito. O amigo de John, Robert Johnston, que terá entrado com ele em casa na fatídica madrugada, diz que não apercebeu de nada, nem mesmo quando John o acordou, calmamente, a pedir ajuda.

Lorena descreve em tribunal “anos de violência crescente”, praticamente desde que se casaram, com murros, tentativas de sufocação e outras sevícias, que ela justifica com o treino militar que ele recebeu. Os advogados de John chegam a perguntar-lhe em tribunal se ficava excitada quando era agredida. Tentam usar contra ela um primeiro depoimento prestado à polícia na madrugada do incidente, onde Lorena aparentemente explicava a castração sem argumentar com abuso ou violação: “Ele atinge sempre o orgasmo e não espera por mim, é egoísta.”

A violência doméstica não seria à época uma preocupação tão vincada quanto hoje, nem nas leis nem na cobertura mediática nem nos tribunais. Mas como demonstra um artigo do “New York Times” de novembro de 93 era um assunto em óbvia ascensão. O jornal lamentava a cobertura da ABC News, alegadamente mais focada na “chocante” castração do que nos “três ou quatro milhões de mulheres” que todos os anos nos EUA seriam alvo de violência doméstica por parte dos maridos ou companheiros. Em sentido oposto, o grupo ativista masculino National Center for Men dizia tratar-se apenas de um episódio da “guerra dos sexos”, “resultado das ideias feministas de que os homens são opressores natos”.

James T. Sehn, o médico que chefiou a equipa que fez a cirurgia de reconstrução, mostra uma foto do pénis cortado de John Wayne, a 11 de janeiro de 1994 (Foto: POOL/AFP/Getty Images)

O documentário sugere que até então os jornais americanos tinham pruridos em publicar a palavra “pénis”, considerada pouco edificante perante os leitores, e terá sido o caso Bobbitt a contribuir para a mudança de estilo. Outro presumível efeito concreto foi o da necessidade de alteração das leis federais sobre violência doméstica, o que sairia reforçado no ano seguinte, com célebre caso OJ Simpson – o antigo jogador de futebol americano acusado, e ilibado, do homicídio da ex-mulher Nicole Brown e do amigo desta, Ronald Goldman.

O congresso americano votou em 94 uma lei sobre a violência contra mulheres. Até esse momento, pelo menos no estado da Virgínia, a violação entre cônjuges só dava prisão se ambos estivessem já separados no momento dos factos e se um deles pudesse provar danos corporais permanentes, ouve-se no documentário.

O julgamento de John acontece num ápice. A 11 de novembro, um júri de nove mulheres e três homens, dois dos quais aparecem agora na série da Amazon, decide que John não é culpado de violência sexual conjugal. A mãe, Marylyn Biro, está no tribunal e congratula-se. À saída, é aplaudido por cidadãos anónimos. O procurador Paul B. Ebert não fica convencido e declara: “É caso para dizer que se merecem um ao outro. Ela cometeu um ato hediondo, mas ele também. E duas coisas erradas não fazem uma coisa certa.”

Pornografia e ativismo

No segundo episódio do documentário, o acontecimento em destaque é o julgamento de Lorena, em processo separado, com início em 11 de janeiro de 94: sete mulheres e cinco homens no júri. A 22 de janeiro, aceitam a alegação de inimputabilidade, muito por causa do depoimento de uma psiquiatra que reforçou a tese de “surto psicótico”. É declarada inocente. Vários apoiantes celebraram a decisão à porta do tribunal, onde aliás está montado um carnaval, com vendedores de “t-shirts” e “snacks” com formas fálicas.

[excerto da leitura do acórdão, 1994:]

https://www.youtube.com/watch?v=6sqP6c401WY

No terceiro episódio do documentário, discute-se de que lado estaria a razão, que influência teve a cobertura mediática no desfecho judicial, como lidavam as autoridades e a sociedade com a violência doméstica. No quarto e último segmento, conhece-se a vida após os julgamentos: a popularidade de John como estrela pornográfica e os constantes problemas legais que enfrentou.

Lorena, hoje apenas Lorena Gallo, afirma: “Passei por este inferno e hoje digo às mulheres: não estão sozinhas, podem fugir da violência doméstica se quiserem e tomar as rédeas da vossa vida, tal como eu fiz.” John releva que o pai também batia na mãe, que a mãe foi violada mais do que uma vez e que ele foi alvo de abusos sexuais em criança por um “tio pedófilo”.

No ano seguinte à castração, John seria novamente acusado de agredir uma namorada e ao longo dos anos viu-se envolvido noutros casos de violência doméstica. Foi estrela no “talk show” de Howard Stern, anunciou uma operação para aumento do pénis, foi ator pornográfico em produções sem consequência. Vive agora reformado por invalidez, desde que partiu o pescoço num acidente de viação, escreveu a “Rolling Stone” no ano passado. Lorena foi agente imobiliária e tornou-se ativista no campo da violência doméstica, através da associação Lorena’s Red Wagon. Casou-se e tem uma filha de 13 anos.