No jardim ouvem-se crianças, na bilheteira atropelam-se línguas várias. Eis o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, em agosto. Philippe Vergne, diretor do museu, está no gabinete, longe da confusão. Acende incenso, senta-se à mesa (de assinatura Siza Vieira), e pousa o olhar sobre a janela, que deixa vislumbrar o novo edifício que Serralves espera abrir ainda este ano, também assinado pelo primeiro Pritzker português.
“É uma expansão humilde, porque quando se está fora de Serralves não se vê. É um edifício generoso, vai-nos servir bem, mas é discreto”, explica ao Observador. “Depois deste momento de crise, estar numa instituição em que se pode dar este nível de programação, este nível de crescimento — e não estou obcecado com crescimento, mas é necessário —, onde mais? É uma questão real: onde no mundo vimos uma instituição capaz de fazer isto? Não me sinto um vendedor de Serralves, mas se olharmos objetivamente é extraordinário.” Em 2022, o Museu de Serralves recebeu 758.103 visitantes, de acordo com o relatório de contas.
Nas paredes do gabinete de Philippe Vergne não há obras de arte — havia uma pequena vitrine com uma lata do italiano Piero Manzoni, Artist’s Shit, de 1961, mas foi levada para ser fotografada para uma instalação. Há, sim, notas, muitos livros e uma série de mantras afixados, como uma lista de “Como falhar na vida”. Inclui “ser pessimista”, “estar no sítio errado”, “culpar toda a gente menos nós próprios”, “não tomar responsabilidade”, “desistir”. “É tudo o que nós não fazemos aqui”, garante.
O francês está em Serralves desde 2019, depois de 23 anos nos EUA em instituições como o Walker Art Center, em Minneapolis, a Dia Art Foundation, em Nova Iorque, e, por fim, o Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles. São quatro anos, mas Philippe Vergne diz que mede o tempo antes pelos objetivos que vai conseguindo: exposições, sangue novo na equipa.
Numa entrevista de cerca de duas horas virada para balanços, em inglês, Vergne fala sobre o papel de um diretor de um museu hoje, o equilíbrio necessário entre “confrontar” e “confortar” através da arte, as assimetrias de género e raça na coleção e programação, o bairro da Pasteleira e as barreiras que persistem em Serralves — e que vão além do custo do bilhete (20€ para aceder a todos os espaços da Fundação, 13€ só para o museu). “Somos uma ilha e estou ciente que de tempos a tempos o muro em redor do museu não é apenas físico. Há um muro de perceção. Quando falo de acessibilidade é disso que estou a falar. É uma questão real.”
Numa entrevista pouco depois de assumir o cargo, em 2019, disse: “É interessante estar num contexto que não percebo. Gosto de não perceber Portugal. Li a História, vejo a cena artística, mas ao fim de seis meses não se pode dizer que se compreende um país ou a sua cultura”. Quatro anos depois, já pode dizer que compreende alguma coisa?
Não, acho que estou ainda mais confuso.
Como assim?
Nunca se tem uma compreensão completa do contexto. Seis meses não é nada. Quatro anos tampouco. O que compreendo é muito contrastante com o que não compreendo. Quanto mais entendo, mais confuso fico. O que é parte do entusiasmo de fazer o que faço em diferentes lugares. Para mim é algo muito pessoal… Sou francês, não trabalho em França há quase 30 anos, tenho trabalhado em vários sítios nos Estados Unidos, cada sítio muito diferente do outro, agora em Portugal. Gosto desta ideia de entrar num sítio. Por muito que pareça familiar, porque estamos na Europa, é muito diferente dos Estados Unidos. Continuam a existir coisas que, culturalmente, são difíceis de traduzir. A não ser que se seja nativo ou se passe lá toda a vida, não acho que se possa compreender na sua totalidade. Consegue-se ter perspetiva. Num país como Portugal, que tem uma história muito complexa, para alguém que tem viajado antes de chegar aqui, de muitas formas é intrigante, permanece intrigante. É o sul da Europa, é toda a relação histórica com outras partes do mundo que são novidade para mim, como o Brasil, com África. Há uma história política que é muito exótica para mim. Portanto, não compreendo [Portugal], mas acho que isso é bom. Pode jogar contra mim também.
Quando perde o contexto?
Sim, ou na má interpretação, no ficar lost in translation. Não é só a linguagem, mas a tradução cultural. Mas isso é mais entusiasmante para mim do que tudo o resto.
Encontra mais independência artística no facto de estar fora desse contexto português, ao ser um elemento externo?
[Silêncio]
Sendo que no mundo da arte é comum ver diretores e curadores a mudar de cidade para cidade, essa rotatividade de contextos é frequente…
Acho que sim [que me dá uma liberdade maior]. Mas acho que também é algo no qual trabalho. Tento manter-me independente, o que quer que isso signifique. Não quero soar arrogante ou pretensioso, mas não acho que estou aqui para encarnar uma cena artística ou cultural específica. O que posso trazer para a mesa é a visão de uma mosca, com vários ângulos. Tenho um ponto de vista diferente que fui construindo ao longo dos anos, em locais e instituições diferentes, e que posso trazer a Serralves. É uma forma de independência, sim. Sinto que sirvo, sinto que dependo das obras de arte e dos artistas que estou aqui para apoiar. É esse o meu nível de dependência. Mas tento manter alguma distância criativa.
Que balanço faz destes quatro anos na direção de Serralves e como descreveria a missão do museu em 2023?
Um balanço… Honestamente, não sei. Não que seja um dia de cada vez. Aprendi muito a muitos níveis. Aprendi sobre história e uma cena artística que não conhecia antes. Para mim isso é entusiasmante: uma nova relação com artistas e protagonistas da cena artística em Portugal e no sul da Europa com os quais não estava em contacto. Estar em Portugal também me deu uma sensibilidade maior para a relatividade no mundo da arte. É muito interessante ver de um local para o outro como o centro de gravidade muda. É uma lição de humildade. Serralves é uma instituição diferente das que conhecia, que funciona de forma diferente, portanto há adaptações e uma aprendizagem, é ótimo, é como ter mais uma ferramenta. O balanço pessoal é muito positivo. Não quero falar da pandemia, estou farto disso, mas tenho a sorte de ter uma ótima equipa, olho para o que foi produzido nos últimos quatro anos e o que fizemos, em termos de artistas, de performance, de publicações…
Os últimos quatro anos foram muito ricos, em que fizemos desde projetos com artistas muito conhecidos, como [Alexander] Calder ou Louise Bourgeois, até artistas que não são necessariamente muito conhecidos, como o Korakrit Arunanondchai. Demos espaço a artistas em Portugal, como fizemos com a Carla Filipe, por exemplo, uma exposição com a curadoria da Marta Almeida, o programa que fizemos com a Vera Montero, com a Cristina Grande no departamento de artes performativas, o pavilhão que construímos em colaboração com um músico e artista japonês Ryoji Ikeda e um arquiteto português, o Nuno Brandão da Costa. O programa tem sido rico, denso, complexo, com projetos muito queridos para mim, como o do Ryoji Ikeda, ou a exposição do Mark Bradford. Também temos trazido um nível de diversidade no programa, com artistas diversos em termos de background cultural, género. No ano passado houve uma altura em que só tínhamos mulheres em exposição no museu. O museu, quando possível, deve fazer um esforço para refletir como é o mundo.
Há uma tendência para os museus reproduzirem certas identidades artísticas: masculinas e heteronormativas. Em 2017, segundo números fornecidos ao jornal Público, estavam representados na coleção 814 artistas homens e 239 artistas mulheres (os dados excluem obras em depósito). Tem noção dos números mais recentes?
Não sei os números de cor.
Mas esta disparidade preocupa-o?
Claro, olhe para os últimos quatro anos. Foi algo posto em marcha antes de eu chegar, mas Joan Jonas, Arthur Jafa, Louise Bourgeois, Yoko Ono, Carla Filipe, Cindy Sherman, Vera Mota.
É uma forma de corrigir…
Não corrigir, não sou um corretor.
Corrigir a disparidade.
Sim, mas não tenho uma caneta vermelha, nunca gostei disso. Para mim é sobre o momento. Entendo porque foi diferente, porque a cultura era diferente, porque a consciência era diferente, porque era mais difícil falar sobre estas questões. Mesmo em Portugal, 1974 não foi assim há tanto tempo. Temos de dar tempo ao tempo, a informação é diferente. Mas quando olhamos para o programa que estamos a preparar para os próximos anos, estes tópicos estão omnipresentes.
Questão de género, dar espaço a…
Não é dar espaço. É o seu espaço. Só estamos a abrir a porta. Não é que estejamos a ser generosos, estamos só alertados para o que está a acontecer à nossa volta. Fazer o oposto seria um esforço maior, ter apenas o que é a tradição a ser representado, seria parar o que está a acontecer naturalmente. Estamos só a reagir naturalmente a isso. Mas falamos sobre isso, claro. Ainda agora, quando falamos na apresentação da coleção no novo edifício. Quando entramos numa sala num museu é bom sentir que ela reflete como é o mundo. Porque estamos no mundo e porque se as pessoas não se veem no museu não têm motivo para vir. Não querem saber da decisão curatorial. E a decisão curatorial é informada pela estrutura do mundo e o nosso entendimento do mundo, mas se não nos vemos no chão, na parede de um museu, não nos sentimos atraídos para lá ir enquanto público. Queremos ver obras, sejam telas, esculturas, instalações, som, dança, com os quais nos identificamos.
A aquisição de obras de artistas de diferentes contextos para a coleção permanente é também uma forma de criar essa representação mais inclusiva de vozes. Segundo os relatórios de contas, em 2019 houve 16 aquisições, em 2021, sete, em 2022, 28. Não refiro 2020 porque não está disponibilizado. Quantas aquisições já foram feitas em 2023?
Ainda vamos a meio do ano.
Mas como foi nesta metade do ano, e que obras ou artistas pretende adicionar à coleção?
Não quero dizer o que vem aí porque ainda não está fechado e não quero criar expectativas que depois não possamos cumprir. Mas posso dizer que a forma como abordo a aquisição num museu é sempre com base na estrutura da coleção, com o que está em falta, com o que achamos que pode ser reforçado, e com base no nosso programa de exposições, de forma a que os artistas que por aqui passam, as exposições que fazemos, possam deixar um rasto na coleção. Para mim é uma estratégia simples para construir uma coleção que seja singular, que não seja a mesma coleção que existe em todo o lado. Não vai encontrar a mesma coleção na Gulbenkian ou no Reina Sofia. Claro, há artistas similares, mas quando se olha para o conjunto acho que cria uma piscina genética diferente. Quando se olha para o programa que tenho feito desde que cheguei, em 2019, muitos destes as artistas, sempre que foi possível, estão representados na coleção. Alguns ainda estamos a trabalhar nisso. Portanto, a diversidade do programa é um dos fatores de decisão para a coleção. Não quero dizer diversidade porque acho que pode ser mal interpretado, um pouco como biodiversidade, tornou-se muito confusa. Mas a nossa coleção é muito biodiversa. A noção de inclusão está lá.
Muitas das aquisições dos últimos quatro anos foram de artistas portugueses: Carla Filipe, Jorge Queiroz, João Vieira, André Cepeda, Patrícia Almeida, Silvestre Pestana, para elencar alguns.
Durante a pandemia fizemos um esforço extra para apoiar artistas portugueses e galerias portuguesas também. Eles podem ter uma opinião diferente (risos). Mas foi um esforço. Olhamos para as nossas aquisições desta forma: o nosso programa, artistas portugueses e internacional. E tenho muita sorte em ter uma equipa de curadores, e o facto de a Inês Grosso (curadora-chefe) se ter juntado à equipa, e Joana Valsassina (curadora). A conversa que aconteceu com elas e a Marta Almeida (diretora-adjunta), que já cá está há muito tempo, e o Ricardo Nicolau (adjunto da direção), é interessante porque temos uma visão de Serralves. Há a história da coleção, mas temos uma nova geração de curadores a vir aqui. E eles trazem um ponto de vista diferente. Foi muito interessante planear este edifício porque tivemos uma conversa incrível sobre quem achamos que é relevante agora na cena artística portuguesa internacionalmente. Acho que para as pessoas perceberem realmente terão de vir ver o novo edifício. De Arthur Jafa até Maria José Oliveira, uma artista portuguesa sénior que não é muito conhecida, uma artista fantástica, acho que fizemos aquisições fantásticas e todos os anos tentamos ter uma aquisição mais histórica. Recentemente comprámos [obras] desta artista, a Anna Maria Maiolino, que é uma artista sénior brasileira. Tentamos ser conscientes com isso.
Mesmo não tendo os números presentes, diria que hoje a disparidade de género na coleção não é tão severa?
Sim.
Olhando para a coleção, há alguma ausência que gostasse de colmatar?
Sim, há, mas não lhe vou dizer quais são. Porque, de novo, nunca se sabe. Quando se fazem aquisições há vários parâmetros a considerar, desde a disponibilidade das obras até ao mercado. Temos sonhos, mas não sabemos se os conseguimos concretizar. Se os publicitar criamos uma espécie de expectativa. Mas sim, é quase um exercício anacronista. Olhar para trás para olhar para a frente. Temos buracos históricos, como qualquer coleção, preenchemos alguns, quando comprámos obras da Marisa Merz, da Nalini Malani, da Yoko Ono. São artistas históricas que achamos importantes para perceber o desenvolvimento da arte contemporânea do sítio onde estamos, Portugal.
Falou do mercado. O mercado é uma condicionante para a coleção, uma vez que as aquisições são financiadas muitas vezes por colecionadores privados e apoio privado?
A nossa coleção não é financiada por colecionadores privados.
A obra de Anish Kapoor que está no jardim (Sky Mirror, 2018) foi comprada com apoio privado, por vezes acontece.
Certo. Absolutamente.
A pergunta é se é condicionador da forma como a coleção é construída.
O mercado? Sim, claro.
Qual é o papel de um diretor e curador, nesse caso?
O mercado é uma realidade, temos de lidar com isso. Mas o mercado pode ser ótimo, porque o marketplace é um lugar onde as galerias correm riscos.
E os museus não?
Bem, corremos, mas… Acho que é fácil criticar o mercado e fácil criticar as galerias, mas qualquer pessoa pode entrar numa galeria gratuitamente. Toda a gente pode entrar numa galeria e ver obras de arte de forma gratuita. Se olhar para o Porto tem um grupo de ótimas galerias e toda a gente pode empurrar a porta e ver arte de forma gratuita.
Também há museus em que isso é possível.
Sim, em alguns, mas nós não vendemos nada. As galerias vendem. Há uma economia e há duas economias distintas. O mercado é uma realidade e o mercado pode ser flexível até certo ponto. Quando uma instituição cria uma relação de confiança com um artista, onde há uma vontade há uma maneira. Mas há coisas que sabemos não serem possíveis porque é demasiado tarde e o mercado foi muito longe. É uma realidade e temos de ser inteligentes, temos de proteger o interesse da instituição e do artista. Os mecenas são uma realidade e ajudam, claro, quanto mais apoio conseguirmos, melhor, seja uma cooperação empresarial ou individual. Precisamos de nutrir isso.
Isso leva a questão sobre o que deve ser o papel hoje de um diretor de um museu. É esperado que determine a agenda artística da instituição, que faça angariação de fundos, que alicie investidores, tudo isto?
Não, a função de um diretor de um museu é fazer com que as pessoas que não gostam de nós não passem muito tempo com as pessoas que gostam. Esse é o trabalho. E daí sai a relação com mecenas e artistas (risos) e angariação de fundos.
Tem tido sucesso a fazê-lo no Porto?
(risos) O papel de um diretor de um museu pode mudar de acordo com a estrutura de operações de um museu. Num museu americano o papel de um diretor de museu é essencialmente de gestão, angariação, e um pouco de programação e curadoria. Há sempre espaço. É essa a minha experiência. Para quem quer continuar a fazer curadoria enquanto diretor de um museu, nesse contexto específico é possível, mas é mais trabalho. Aqui a estrutura é um pouco diferente. Na Europa, ao contrário dos Estados Unidos, há uma estrutura diferente de apoio a museus. Temos a sorte de ter uma terceira operação suportada pelo Governo, por um sentido de responsabilidade cívica. E isso é ótimo. A conversa é por isso mais focada no equilíbrio do programa, como o queremos, como nos mantemos relevantes e sustentáveis, isso está no centro da conversa. Sustentável pode ser sustentável financeiramente, sustentável culturalmente, relevante financeiramente, intelectualmente, artisticamente, esteticamente. É preciso balançar tudo isso. E fazer as pessoas sorrir.
Falava há pouco do facto de não ser necessário pagar entrada nas galerias de arte. Isso é benéfico por oposição a cobrar um bilhete? Há casos híbridos, como o da Fundação Calouste Gulbenkian, onde é cobrado um bilhete para o museu, mas é possível visitar os jardins de forma gratuita, onde também há obras de arte. Em Serralves paga-se por ambos.
Bem, onde há um jardim Gulbenkian há petróleo. Portanto… Isso ajuda. (A Gulbenkian vendeu em 2019 a Partex, concretizando a intenção da instituição em sair daquele ramo de negócio fundado por Calouste Gulbenkian em 1938). O The Getty, em Los Angeles, tem uma [política] diferente… Isto se estivermos a falar de museus que foram apoiados pela indústria petrolífera — vou criar inimigos. É algo individual. Cada instituição tem diferentes circunstâncias. Nós temos diferentes circunstâncias. Temos de ser sustentáveis. Estou a par da discussão e da crítica, de que [Serralves] é caro, que há um preço de entrada. Eu também gostava que tudo fosse acessível de forma gratuita. Mas isso levanta a questão: se é grátis como se encontra valor no que se faz? Quando é grátis há sempre alguém a pagar, nada é grátis de facto. Há sempre um esforço a ser feito. Por isso, quando o museu é gratuito é ou porque alguém decidiu fazer uma doação enorme para tornar o museu gratuito ou porque somos totalmente apoiados ou por um individuo ou uma instituição pública. Se tivermos os recursos para ser gratuitos acho que é uma ótima conversa para se ter. Se não, temos de encontrar um equilíbrio para tornar o que fazemos acessível de uma forma justa. Justa para o artista com que trabalhamos, porque se querermos ter um certo padrão da programação precisamos de recursos para fazer isso. E precisamos de pessoas para aceder a isso. Há muitas estratégias aqui e em muitos museus para o tornar mais acessível. Há dias em que as pessoas podem vir de graça. Poderíamos ter mais? talvez. Se for um membro de Serralves, que é sempre uma boa estratégia, pode voltar uma e outra vez. Há sempre formas. Mas a questão é interessante porque acho que um dos maiores desafios dos museus hoje é esta noção de acessibilidade. O conteúdo é acessível? É a instituição em si um destino acessível? Olho para o Museu de Guggenheim e a entrada é 30 dólares. O Whitney também. A resposta é um cliché, mas ninguém esperaria ir ao cinema gratuitamente. Então porque é que a arte, as artes visuais, a performance, seria grátis?
O valor do bilhete reflete-se no tipo de visitantes em Serralves? Qual é a percentagem atual de turistas e de residentes?
Bem, nós temos muitos turistas, claro, o que é bom, mas há algumas estratégias em torno disso. O custo do nosso bilhete é uma barreira menor para o turista que vem uma vez e cujas circunstâncias e pouvoir d’achat (em português, poder de compra) são diferentes em Espanha, França, nos Estados Unidos, no Brasil, na China, do que em Portugal. Mas para quem está no Porto recomendaria, não estou a vender a filiação, mas ser membro é um ótimo negócio. Dá acesso e nós precisamos do apoio. Precisamos de apoiar artistas. As galerias são grátis para nós, mas precisam de vender. Nós vendemos bilhetes. Não vendemos obras de arte. Nós tornarmos as obras disponíveis. Ser membro é como ter parte da coleção. É quase um shareholder. Quando se é membro de uma instituição é-se um shareholder. E o retorno não é “não nos mandam receitas no fim do ano”, mas antes a vida da instituição. Ser membro é sempre uma boa forma de ver a popularidade no terreno. É ótimo ouvir várias línguas na galeria, mas é ótimo ver pessoas do bairro, e podemos esforçar-nos mais, acho que, como disse, a questão da acessibilidade local é um grande desafio para os museus. E um desafio interessante.
A Galp é um dos mecenas de Serralves, correto?
Sim.
Como falou na questão das petrolíferas.
Mas a Galp também é parte do grupo Amorim, certo?
Sim. (O Grupo Amorim detém a maioria do capital social da Amorim Energia, que, por sua vez, detém uma participação de 33,34% na Galp Energia)
Sim, Amorim, Galp, Sonae, contamos com as grandes corporações portuguesas. E, de novo, há uma história de filantropia em Portugal muito interessante para mim, que venho dos Estados Unidos onde grande parte da filantropia é individual. Aqui é o oposto. A maior parte da filantropia é corporativa. Precisamos dela. E acho que a filantropia individual se vai desenvolver. A filantropia reflete sempre a história económica e individual de um lugar. É como tudo. Agora, há boa indústria petrolífera e má indústria petrolífera.
Acredita nessa divisão?
Acredito que há indústrias que estão a olhar para o que é o futuro da energia. Não trabalho na Galp, mas olhando para o que o grupo Amorim faz acho fantástico. Já viu a revista? Fico sempre muito impressionado com eles. E não digo isto por serem mecenas. Acho a revista maravilhosa, super bem desenhada.
Em 2020, o Baltimore Museum of Art (BMA) quis vender uma série de obras de grandes artistas com a finalidade de comprar obras de artistas negros, menos representados, e fazer aumentos salariais aos trabalhadores, mas foi duramente criticado e a venda acabou por não acontecer. O que pensa sobre o caso?
O que chamamos de deaccessioning (a palavra em inglês para designar o ato de remover um item de uma livraria, um museu ou uma galeria de arte para o vender) é impossível na Europa. Nenhuma instituição pode fazer isso na Europa. Nos Estados Unidos, é possível e faz parte da estrutura, da estrutura legal da instituição. Também porque muitas dessas obras não são compradas com dinheiro dos contribuintes, o que também muda a relação. Quer dizer, já o fiz no passado. É muito difícil, é muito controverso sempre e deve ser. Deve ser difícil. As regras para deaccessioning em museus americanos são as seguintes: quando se quer vender uma obra de arte, o valor da venda deve voltar para a coleção. Seja para a aquisição de outras obras de arte, ou para o estabelecimento de um fundo que apoia a aquisição de outras obras de arte.
Neste caso, o plano era também poder aumentar o salário dos funcionários.
Se me lembro bem dos detalhes, acho que o argumento — e não sou eu quem vai apontar o dedo —era ter pessoal dedicado à coleção. Acho que esse foi um dos argumentos. É muito complicado. A minha posição seria que, quando se adquire obras de arte, voltamos à questão do mercado. Muitas vezes, devido às nossas missões e ao fato de estarmos aqui para promover a pesquisa, a apresentação e a conservação de obras de arte, podemos ter acesso privilegiado a algumas obras. Usar esse privilégio para adquirir e vender as obras para patrocinar e apoiar a sua operação, acho questionável. Imaginemos que temos…
Um das obras em cima da mesa era um Andy Warhol.
Ok, digamos um Warhol. Digamos que tem uma série de obras do Warhol no museu, cinco Warhol excecionais, e uma série que são, bem, são Warhol. Mas depois pensamos que para representar esse artista gostaríamos de poder adquirir algo que não temos. Precisamos, sei lá, de uma cadeira elétrica do Warhol. A única forma de adquirir isso para completar a nossa coleção e torná-la mais abrangente seria vender cinco obras em papel do Warhol que talvez nos dê a possibilidade de adquirir uma obra mais importante. Para mim, isso é justo. Porquê? Porque fortalece-se uma coleção que é um património público. Ao vender essas outras obras para pagar a conta de luz, acho que se está a falhar na missão de ser uma instituição com uma missão educacional. Esse é o meu ponto de vista.
Não foi propriamente a eletricidade. Neste caso, queriam comprar arte de pessoas negras e aumentar…
Sim, mas tinham staff. É por isso que acho que a questão de Baltimore é complicada porque na verdade eles construíram uma coleção fantástica, diversa e inclusiva. É na verdade uma grande coleção enciclopédica. Houve muita controvérsia, mas precisaria de voltar aos detalhes. O que disse é uma posição de princípio. O MoMA faz deaccessioning a toda a hora, faz parte, mas é sempre muito difícil fazê-lo, é preciso ter a aprovação mais alta na instituição, dos curadores, para proteger a instituição do que pode ser só jogo de mercado.
Também é preciso perceber que regras foram um pouco suavizadas recentemente, porque com a pandemia a situação financeira de muitos museus americanos estava extremamente difícil, porque eles não têm financiamento público. Foram situações muito, muito, muito difíceis e é difícil julgar um diretor de museu ou curador-chefe pela decisão se não se compreender totalmente o contexto e as circunstâncias e o que isso traria para a instituição. Quando era diretor da fundação DIA, fizemos deaccessioning e fomos criticados, mas isso deu-nos no DIA a possibilidade de fazer duas coisas: uma foi garantir obras na coleção que estavam prestes a ser removidas da coleção, que estavam em depósito, conseguimos, tomamos uma decisão muito difícil de alienar um grupo de obras para garantir na coleção obras que eram absolutamente essenciais para a coleção da DIA, e também deu à DIA, se bem me lembro , a possibilidade de construir um fundo para continuar a adquirir. Então, para mim, nas circunstâncias, pode-se concordar ou discordar, mas em termos de lógica, desde que continue a enriquecer a missão da coleção, acho que não é anti-ético.
É comum que os museus contribuam para a promoção de artistas estabelecidos e isso leva-nos às chamadas exposições blockbusters. No ano em que chegou, por exemplo, Serralves ultrapassou pela primeira vez o milhão de visitantes, para o qual contribuiu também a exposição da Joana Vasconcelos, e também a de Mapplethorpe, um blockbuster por diferentes motivos. O diretor de um museu programa com a venda de bilhetes em mente?
Claro. Quando preparamos uma exposição esperamos que vamos vender alguns bilhetes. Se passar dois anos a trabalhar numa exposição, quero que as pessoas a vejam e os bilhetes são uma forma de medir os olhares.
Isso pode enviesar o discurso do museu?
De que forma?
O discurso que se está a criar com um programa de exposições pode ser influenciado pela expectativa com o resultado final da bilhética.
Não é o resultado dos ingressos que influencia a decisão. É como se equilibra o programa. Repito isto muitas vezes: para fazer o nosso trabalho e isso vá talvez ao encontro da pergunta sobre o trabalho de um diretor de museu. para mim há duas palavras importantes que começam com “c”. Temos de confortar e confrontar. Se apenas confrontarmos, não temos ninguém na galeria, as pessoas não vêm. Ou vem o pequeno grupo de amigos, os aficionados, a comunidade de arte, eles vêm. E é ótimo porque são os colegas, são a comunidade. Mas se quisermos mais do que isso, porque vamos quer mais do que isso, quando mostramos uma exposição com a Carla Filipe, queremos que toda a gente veja a obra da Carla Filipe. Como se gere isso? A dada altura vamos ter de confortar as pessoas. Se lhes dermos algo que as deixe um pouco confortáveis com o que elas estão a ver, elas podem olhar para outras coisas, outras obras, com as quais já não se sentem confortáveis.
O que trouxe para confortar em 2023?
O que trouxe em 2023….
Assumindo que trouxe Carla Filipe para confrontar.
Não confrontar, mas há aspetos confrontacionais na sua obra. Que outros artistas tínhamos na mesma altura…
Cindy Sherman?
Sim, tivemos a Cindy Sherman. É um bom exemplo. Percebo a pergunta sobre a Joana Vasconcelos, mas não precisamos de falar sobre blockbusters. É fácil falar sobre blockbusters, mas há outras maneiras de chamar esse tipo de exposição. Podemos chamá-las de exposições cívicas, exposições de entrada, porque para muitas pessoas será a primeira experiência com um museu. Então sim, Cindy Sherman, ok, um nome grande, consagrado. No outro espectro, se for a um taxista perguntar — não sei porque pensei num taxista, talvez por causa do Tate Modern, que quando abriu foi convidar os motoristas de táxi de Londres para que eles soubessem onde é — qual será a percentagem que sabe? Não sei, mas o que sei é que havia fila para ver as obras, havia uma aura. Fizemos a Cindy Sherman porquê? Porque tinha tido apenas uma exposição em Portugal há muito tempo em Lisboa, é uma artista importante, tem um relacionamento muito específico com fotografia e pintura, que é totalmente parte de alguns dos discursos já presentes na nossa coleção. O trabalho é o oposto de não-confrontacional, o trabalho é confrontacional. O que foi interessante foi saber que a perceção é que Cindy Sherman é o conforto e, ao mesmo tempo, é o confronto. Havia obras muito confrontacionais no trabalho de Cindy Sherman. Fizemos [uma mostra da] Louise Bourgeois, que nunca tinha tido uma exposição em Portugal. O trabalho da Louise Bourgeois é o oposto do conforto, vai para a sexualidade, vai para a psicanálise, vai para o relacionamento com o corpo. Está repleto de imagens de violência. A decisão que tomamos em termos de exposição que podemos colocar sob o “guarda-chuva” do conforto, é que não são assim tão confortáveis. Olhemos para a Yoko Ono. Claro que toda gente conhece o nome Yoko Ono, ela é uma celebridade, mas o trabalho que mostrámos foi desafiador, não foi fácil. Então, não acredito que, desde que estou aqui, a noção de um blockbuster, com uma exceção talvez, e nem tenho a certeza, tenha sido implementada de forma tradicional em Serralves.
A noção de poder calibrar uma exposição sabendo que podemos mostrar algumas obras que não foram exibidas, que podem atrair um público mais amplo, isso funciona. Fomos muito cuidadosos com isso. Temos o [Alexander] Calder agora. Para mim, esse confronto e conforto são realmente importantes. É como ter um banco no museu. Se tiver um banco no museu, mas o banco não é confortável… Ninguém vai olhar para o que está na frente do banco. A minha missão pessoal é mostrar às pessoas formas, imagens, esculturas, objetos, sons que elas não entendem. Isso é o que eu amo no que faço. Conseguir encontrar uma estratégia para fazer as pessoas pararem no caminho para olhar para algo que não entendem, com o qual não estão familiarizadas. Garantir que as coloquem na frente do que é desconhecido e fazer com que o respeitem, aceitem, passem tempo com isso. Não precisam gostar, mas acho que damos um passo adiante. Vai além da arte. Se formos capazes de encontrar estratégias para nos sentirmos confortáveis com o desconhecido, seja uma cultura diferente, um género diferente, uma origem diferente, uma classe social diferente, então fazemos progressos. E a estratégia que implementamos é fazer isso aos poucos, e não é cínico, é realmente: como podemos usar a qualidade que é aceitável, para fazer a agulha se mover em direção a coisas que talvez levantem diferentes tipos de perguntas, mais perguntas. É ótimo gostar de Calder, mas Calder, assim como Miró, assim como Louise Bourgeois, tiveram um momento nas suas vidas e carreiras em que as pessoas diziam (faz uma careta). Sinto muito, era difícil, era complicado. O tempo fez esse trabalho, e precisamos de os usar de maneira positiva para ajudar as pessoas a olhar para a arte. Se fosse apenas por mim havia cinco artistas de que gosto em um loop o tempo todo.
Quais seriam?
Não lhe vou dizer. Mas o que faço não é isso. É literacia visual, artística e estética. Como se desenvolve essa literacia com padrões altos? Pode chamar-lhe um blockbuster se quiser.
Falando de missão, de acordo com o site de Serralves, a missão da fundação é: “estimular o interesse e o conhecimento de públicos de diferentes origens”. Fez-me lembrar de uma reportagem do jornal Público aquando da exposição de Robert Mapplethorpe (“Entre os nus de Mapplethorpe e o parafuso: a distância de Serralves à Pasteleira”, 2019), sobre como o tema chegou aos moradores do bairro da Pasteleira, a poucas centenas de metros daqui. A reportagem arranca com as palavras de uma moradora: “Sabes porque é que o bairro não vai a Serralves? Porque nós somos pobres e Serralves é para os ricos.” Gostava de saber como olha para o fosso entre o museu e as pessoas que vivem em seu redor, neste bairro. Serralves é uma ilha na cidade?
[Silêncio] É engraçado, tive uma reunião ontem sobre isso. Primeiro: sim, somos uma ilha. A Gulbenkian é uma ilha. É ótimo ser uma ilha. Quando se é uma ilha há uma independência, é-se auto-suficiente. Somos uma ilha e estou ciente que de tempos a tempos o muro em redor do museu não é apenas físico. Há um muro de perceção. Quando falo de acessibilidade é disso que estou a falar. É uma questão real. Não tenho a certeza se tenho a resposta, seria arrogante dizer que tenho a resposta. O que sei é que temos programas que vão nessa direção. Sabemos que ainda estamos na entrada do museu. O curador Ricardo Nicolau, que liderou esta iniciativa (“Janelas para o Mundo”), todo o trabalho que fizemos com o sistema prisional no Porto (especificamente, as prisões de Custóias e Santa Cruz do Bispo), trazendo artistas aos reclusos, fazendo-os trabalhar com os artistas, ouvindo as suas vozes. Tudo isso resultou em exposições e performances. Saíram do centro prisional para vir ver arte. O artista André Cepeda trabalhou também com eles, publicamos um livro sobre essa colaboração.
[Vai buscar o livro à estante. Chama-se “A Ponte/The Bridge”]. Para o bairro da Pasteleira não é preciso sequer uma ponte.
Precisamos de uma ponte maior, até. Acho que é uma ponte mais difícil. Ou uma ponte diferente. Este foi um projeto fácil… Um museu não pode ser a resposta para tudo. Claro que penso no bairro aqui ao lado a toda a hora, porque conduzo e passo por lá todos os dias e parte-me o coração ver as crianças lá. Quero dizer, não apenas as crianças, mas de alguma forma penso nas crianças em primeiro lugar e como vivem lá. Entendo a adição, entendo a complexidade do que é ser um adicto. Novamente, é uma realidade muito complexa. Para um museu abordar isso, não é apenas um bairro que está socialmente, não sei como dizer isto, em risco…
A pergunta é: como pode um museu contribuir para essa questão social?
Não sei. Desculpe, quer dizer, é verdade, não sei. Isso não significa que não devamos tentar, mas não sei. O bairro aqui tem circunstâncias sociais e tem circunstâncias endémicas, circunstâncias como as drogas. Com isso, tem uma situação em que, se não é um especialista, se não é alguém que entende o envolvimento comunitário, que entende a dependência a um nível médico, não tenho a certeza se Calder vai ajudar. No entanto, se pudermos trazer as crianças aqui para que possam ver algo diferente, poderíamos ajudar. Temos uma nova diretora para o sistema educativo, a Inês Pina, e é algo sobre o qual temos falado.
Sobre trabalhar com esta população?
Falámos sobre o bairro ontem mesmo, é uma pergunta que temos. Não tenho uma resposta. Já fiz programas assim no passado, quando estava a trabalhar nos Estados Unidos, no Walker Art Center em Minneapolis. Mas foi uma série de programas construídos ao longo de 20, se não mais, anos de envolvimento com a comunidade para ter a confiança da comunidade. O que significa que tínhamos artistas a trabalhar connosco. Os artistas decidiam com qual comunidade gostavam de trabalhar. Eram comunidades em risco que estavam envolvidas. Lembro-me de um artista que veio e trabalhou com adolescentes sem-abrigo em Minneapolis. E é uma população realmente difícil, onde no inverno chega a 20 graus negativos. Ele decidiu trabalhar com eles. E foi fantástico. Mas havia uma equipa inteira de educadores especializados a trabalhar com ele. Porque eles sabiam como falar, como se relacionar com essas pessoas. Não se improvisa um líder comunitário ou um educador com estas comunidades. É realmente, realmente difícil. Lida-se com uma realidade que é realmente diferente. Faz 10 anos agora um projeto com uma curadora chamada Yasmil Raymond, que estava a trabalhar comigo na Fundação Dia. Convidamos o artista Thomas Hirschhorn para fazer um projeto no Bronx, onde criámos o que ele chamou de Monumento Gramsci no Bronx. Durante 77 dias, o artista viveu no Bronx com a equipa de curadores, desenvolveu um monumento. E o monumento não era uma imagem de Gramsci num pedestal. Era uma instituição, construída como uma casa de favela, mas com um palco, com uma exposição dedicada a Gramsci, com um jornal publicado todos os dias, com um filósofo a dar uma palestra todos os dias, 77 palestras, quer houvesse público ou não. Foi um esforço enorme. Hirschhorn, o artista, olhou para mim e disse-me que não me queria lá. Para encontrar o dinheiro para fazer o projeto, mas para não estar lá porque isso representava exatamente o que seria o fracasso do projeto. Eles vão ver alguém com sotaque francês a chegar ao Bronx. Tudo foi operado pelo bairro. Os vizinhos começaram a cozinhar e trazer suas coisas. A estação de rádio era operada pelos locais. A música, o monumento, essa cidade de favela, estrutura enorme, foi construída pelos vizinhos, o eletricista, os carpinteiros, os pintores. Nós contratámos toda a gente daquele bairro, trabalhámos com uma agência de emprego naquele bairro para encontrar as pessoas com as habilidades para fazer o projeto. Tudo veio da visão do artista, durante 77 dias, e funcionou. Toda a gente nos disse: é um bairro violento, vão-vos ver a chegar com recursos, vão queimar o monumento. A cidade de Nova York, o departamento de cultura da cidade de Nova York… E não aconteceu. Aliás, 10 anos depois, convidaram-nos para a 16 de setembro celebrar esta iniciativa, porque ainda está ativa. A memória do que se criou mudou o bairro. É possível, mas é extremamente difícil. Então… é uma questão, mas não tenho uma resposta. Numa instituição como o DIA, não digo que foi fácil, mas foi mais como, “ok, vamos fazer isso. Eu arranjo o dinheiro e vamos fazer isso”.
Aqui não é possível?
De alguma forma na Europa, no espaço público, é mais difícil. Há questões semelhantes, na verdade, entre este bairro (Pasteleira) e o Bronx, onde estávamos. Drogas, violência, desemprego. É uma grande questão.
Alguma vez abordou a questão com a administração de Serralves?
Bem, há um limite para quantas conversas podemos ter. Sim, já falámos internamente sobre o que podemos fazer. Acho que antes de Serralves lá ir é preciso… O município, pelo que vi, acho que tem uma iniciativa ótima, de ter um lugar para os adictos, para que possam estar seguros. Isso mudou um pouco o bairro. Mas não, além da conversa que tive com o staff, com a minha equipa, porque pensamos nisto, não. Mas também não podemos abordar tudo ao mesmo tempo. Mas é uma boa questão, é uma boa questão.
Chegou ao museu de Serralves depois de uma saída conturbada do então diretor, João Ribas.
Isso foi há cinco anos, é quase no século passado.
Falou com ele após a polémica?
Sim, conheci-o quando ele estava a trabalhar em Boston, depois quando trabalhava no The Drawing Center, em Nova Iorque. É um colega, algo aconteceu, algo mau aconteceu, segue-se em frente. É a vida profissional. Sim, já nos vimos.
A saída de João Ribas expôs um mal-estar “generalizado” em Serralves, com reclamações sobre autoritarismo a acumularem-se. Desde o início da pandemia, houve relatos de precariedade laboral, envolvendo principalmente elementos do serviço educativo, mas também montadores de exposições e outros técnicos (nas ocasiões levadas à justiça, o tribunal foi favorável a Serralves). Além disso, várias pessoas abandonaram a empresa. Como descreve o ambiente laboral na instituição e o que pode o diretor de um museu fazer no que respeita a questões laborais?
A sua pergunta aborda questões totalmente internas a Serralves e não é algo que sinta a necessidade de tornar público ou de responder. Instituições, como qualquer organização, têm a sua dinâmica interna e não é da conta de ninguém. Então, como julga uma instituição pelos resultados? Há duas questões. Sobre os educadores foi escrito até a exaustão. Houve um caso legal, que não vou abordar. É algo que também aconteceu em muitas outras instituições, no MoMA em Nova York, por exemplo, porque os educadores estavam em crise, com a crise que o mundo inteiro enfrentou. Estavam na linha de frente, não apenas educadores, mas quem trabalhava em restaurantes ou qualquer categoria profissional de trabalhador independente. Foram o primeiro dano colateral da pandemia em todo o lado. Não apenas em museus. Houve um caso legal. Serralves venceu o caso. O que quer que diga?
Se enquanto diretor de um museu acompanha estes casos e se preocupa com quem lá trabalha…
Preocupo-me com o bem-estar da minha equipa. Quero que amem o trabalho e quero que estejam felizes quando vêm trabalhar. Parte da minha responsabilidade é tornar o ambiente de trabalho agradável, que se sinta uma recompensa de ver o objetivo que alcançamos. Em que tudo o que fazemos contribui para o cumprimento dessa missão. Isso é um ambiente de trabalho agradável. Senti isso durante toda a minha carreira. Parte do nosso trabalho como curador, como diretor, parte do nosso papel quando temos um pouco de responsabilidade é cuidar das pessoas que reportam a nós, que dependem de nós para fazer o seu trabalho. E essa é a maneira como abordo o meu trabalho. Sinto um prazer enorme em ver um sorriso no rosto de alguém. Passamos por um ano muito difícil para as instituições culturais. Tivemos que enfrentar desafios, enfrentamos. Mas, ao contrário de muitas outras instituições no mundo, Serralves permaneceu aberto na maior parte da pandemia. Fechamos quando foi necessário fechar, mas continuamos envolver-nos com a audiência e os artistas durante esse período muito desafiador. E foi realmente difícil em todos os níveis fazer isso. E a equipa do Serralves ficou. A equipa permanente de Serralves não foi afetada pela pandemia, ao contrário de outras instituições.
A equipa contratada, não os trabalhadores a recibos verdes.
Não eram funcionários. Essa também é uma distinção que as pessoas não fazem. Para se ser funcionário de uma instituição isso vem com restrições. É preciso decidir se se quer ser funcionário. Às vezes digo que quero ser freelancer. É uma maneira diferente de abraçar a vida. A equipa permanente de Serralves foi protegida.
Não houve lay-off.
Sim, olhe para todas as instituições do mundo. O museu que costumava dirigir em Los Angeles, foram lay-offs atrás de lay-offs. Começando por, tenho certeza, educadores, mas eles não são lay-offs. Não havia trabalho para eles. Não quero revisitar isso. Na verdade, não acho justo fazer essa pergunta agora, porque é algo que esteve na imprensa, foi julgado. É um capítulo encerrado.
O Museu de Serralves teve cinco diretores desde a sua fundação…
É o suficiente.
De Vicente Todolí (1999-2003), João Fernandes (2003-2012), Suzanne Cotter (2013- 2017), João Ribas (2018), apenas João Fernandes dirigiu o museu por mais de quatro anos, até sair para o Museu Reina Sofía, em Madrid. O que pensa sobre carreiras longas na direção das instituições?
As instituições são maiores do que as pessoas. Nesta profissão somos menestréis viajantes. Há valor em permanecer, porque o mundo da instituição pode-se mover a um ritmo glacial e a mudança leva tempo. Quando se precisa de dois anos para montar uma exposição… Nem todas as exposições, algumas são mais rápidas, mas fazer uma exposição com uma pesquisa cuidadosa, e publicações associadas, leva uns dois anos.
Há um período mínimo para ficar na direção de um museu?
Para mim não há regras. Algumas pessoas são lifers (permanecem na mesma instituição por muito tempo), algumas pessoas não são. É como os Rolling Stones.
De que forma?
Os Rolling Stones são uma instituição.
Certo.
Mas durante muito tempo iam à Suíça todos os anos para mudar o sangue. Uma instituição é igual, de tempos a tempos é preciso mudar o sangue (risos).
Como está o seu?
O meu sangue está ótimo! Tenho uma alta tolerância para vícios, mas não tenho vícios (risos).
Por último, em novembro de 2021 foi anunciado que Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT) ficaria sob a gestão de Serralves mas, mais de um ano depois, o acordo divulgado foi bem mais reduzido do que o inicialmente avançado, não tendo ficado exatamente claro: como é, afinal, a coordenação entre as duas instituições e de que forma está envolvido?
Joga xadrez?
Não, porquê?
Não sei, xeque-mate. A minha relação é sempre ao nível programático. Foi uma ideia que teve algumas pernas, não funcionou por uma constelação de razões. Continuamos com uma muito boa relação com o MAAT e estamos a planear uma série de trocas com eles, é demasiado cedo para falar sobre o assunto.
Portanto, até à data, não está preparada nenhuma iniciativa ou exposição conjunta?Estamos a trabalhar, não lhe vou dizer mais nada além do que foi publicado, que é a verdade. Estamos a trabalhar. Voltando à acessibilidade, quantas mais parcerias tivermos mais conseguimos construir acessibilidade. Há boas conversas com os nosso colegas lá [no MAAT]. Quando o tempo chegar seremos mais específicos.