A abertura das escolas é o principal motivo pelo qual o pico da quinta vaga da Covid-19 desapareceu dos gráficos, referiram três especialistas ao Observador. A Ómicron, extremamente transmissível em comparação com todas as variantes detetadas anteriormente, veio confundir as contas dos peritos, que ainda não contam sequer com o impacto da reabertura das discotecas, das mudanças das regras de isolamento e do fim do teletrabalho obrigatório. Portugal já tinha entrado num planalto no gráfico do número de casos, mas os números voltaram a disparar — a ponto de, a nove dias das eleições, ninguém ter certezas do ponto em que o país estará no fim do mês.
Os gráficos de Carlos Antunes (Universidade de Lisboa), Óscar Felgueiras (Universidade do Porto) e Fernando Batista (Instituto Politécnico de Leiria) não deixam margem para dúvidas: a subida galopante entre as crianças e os jovens até aos 12 anos denunciam que estas faixas etárias são o motor da pandemia neste momento em Portugal, sobretudo o grupo que vai até aos nove anos.
Em quase todas as outras faixas etárias, o número de casos parece estável ou numa subida paulatina e controlada. As exceções são precisamente os adultos entre os 30 e os 49 anos, que correspondem ao grupo em que se inclui a maior parte dos pais e encarregados de educação destas crianças e adolescentes.
O crescimento foi tão significativo que o número de crianças infetadas está a duplicar em apenas quatro dias. Se até ao fim de dezembro a incidência na faixa etária dos zero aos nove anos era a sexta maior em nove, agora já é a segunda mais elevada. Só o grupo dos 20 aos 29 anos continua no topo da tabela, mas as crianças vão ultrapassá-lo muito em breve.
Desde o início do segundo período deste ano letivo, a 10 de janeiro, até dia 20 surgiram 106.553 novos casos de infeção entre crianças e jovens até aos 19 anos. Foram 51.218 novos casos em crianças até aos nove anos e 55.335 entre os jovens com 10 a 19 anos.
Neste momento, 30% dos casos positivos são crianças e jovens até aos 17 anos; e a percentagem pode aumentar até aos 40% só nesta faixa etária. É uma questão de tempo até a subida vertiginosa se repercutir nas restantes faixas etárias, mesmo que numa escala menor por causa das medidas de contenção a que estão sujeitas.
Não é de estranhar: a cobertura vacinal é muito mais baixa nestas faixas etárias do que nas restantes — a vacinação só está disponível a partir dos cinco anos, deixando o pré-escolar fora do processo, ainda não há crianças com o esquema vacinal completo e muitas não são elegíveis por terem estado infetadas recentemente. Só 4% da população infantil tem imunidade natural ao vírus e a restante continua mais suscetível; a máscara só é obrigatória a partir dos 10 anos e recomendada a partir dos seis; e os contactos entre crianças são difíceis de controlar.
Um caso numa escola é “como um incêndio”, comparou Carlos Antunes — um fogo que se propaga facilmente para os transportes públicos, para casa e para os locais de trabalho dos adultos com quem estes jovens convivem. Também Fernando Batista, que como Carlos Antunes tem acompanhado a evolução da Covid-19 em Portugal, explica que “o facto de as escolas abrirem juntou um conjunto grande de pessoas à população suscetível”. Óscar Felgueiras repete que as crianças são “um fator que tem muito peso”: “Estiveram muito protegidas na altura no Natal, o ritmo de crescimento da incidência até era mais baixo do que nas outras faixas etárias. E assim permaneceu, até à abertura das escolas”.
Imagine que se colocam numa grande sala todas as pessoas que podem ser infetadas pelo SARS-CoV-2 — os suscetíveis. Por uma das portas saem as pessoas que, por já terem sido contagiadas no passado ou por estarem totalmente vacinadas, desenvolveram imunidade contra o agente patogénico. Pela outra porta entram as pessoas que nascem (e estão, por isso, desprotegidas contra ele) ou que já perderam imunidade ao coronavírus, podendo portanto ser infetadas novamente. Quanto maior for o índice de transmissibilidade da variante, mais depressa a sala dos suscetíveis se esvazia e o número de casos aumenta.
O problema desta variante é que ela tem uma capacidade tremenda de infetar mesmo as pessoas que já estiveram infetadas no passado por outras variantes ou quem até já tomou a terceira dose, por isso o número de pessoas suscetíveis volta a aumentar rapidamente também. E “enquanto houver árvores para arder, o fogo vai continuar a propagar”, disse Carlos Antunes.
Portugal deve ter 140 mil infetados a 30 de janeiro, mas só metade diagnosticados
Até onde vai esse fogo? Ninguém sabe: o pico da quinta vaga, que devia estar a ser atingido entre 20 e 24 de janeiro, foi “suspenso”, “adiado”, “retardado”, “sem poder ser acompanhado”. A pouco mais de uma semana do domingo de eleições, Carlos Antunes aponta uma projeção com “mutíssima incerteza”: Portugal pode estar a registar mais de 70 mil novos casos diários de infeção pelo coronavírus — e esses são apenas os casos positivos apanhados na rede de testagem. O número real de infetados deve ser o dobro nesse dia, ou seja, 140 mil.
Carlos Antunes prevê ainda 1,1 milhões de pessoas em isolamento a 30 de janeiro — 790 mil dos quais com 18 anos ou mais. Outras contas propõem números mais modestos: as contas de Fernando Batista dão uma estimativa de 200 mil a 400 mil pessoas confinadas no dia das eleições. Mas o engenheiro, que baseia as suas contas na taxa de positividade, concorda que as previsões são praticamente impossíveis, mesmo a curto prazo: “A curva da variante Ómicron esmagou a da Delta e agora não conseguimos acompanhar a propagação da infeção”.
Mais: se neste momento o país já terá cerca de 750 mil pessoas infetadas com a Ómicron, até ao domingo das eleições vão contabilizar-se um milhão de casos positivos diagnosticados para a nova variante. Uma simulação a longo prazo revela, ainda que com um elevado grau de incerteza, que até abril ou maio Portugal terá sete milhões de casos diagnosticados desde o início da pandemia. Se assim for, “até ao verão estaremos quase todos infetados, mas nem toda a gente vai saber porque a testagem não vai chegar”.
Não há previsões sobre que impacto terá o levantamento do isolamento para os casos positivos e isolados no dia das eleições. E pode nunca vir a ser apurado. Carlos Antunes avisa que “tudo vai depender da correta utilização da máscara, de quantas pessoas estarão no pico de infecciosidade, do distanciamento físico e do arejamento e ventilação dos espaços fechados das eleições para evitar a concentração de partículas virais dentro das salas”.
Se as regras forem cumpridas o risco é mínimo, mas as cadeias de transmissão que se criarem nas filas para a votação ou no interior das salas podem nunca ser identificadas. E os novos casos que delas vierem vão confundir-se nos gráficos com o impacto da abertura das discotecas e do fim do teletrabalho. “Mesmo que haja um aumento de casos, não se poderá assumir que será disto”.
O mesmo se aplica às novas regras de isolamento, embora os estudos mencionados por Carlos Antunes e Óscar Felgueiras apontem que, quanto mais curtos forem os períodos de confinamento para casos positivos, maior a percentagem de pessoas dadas como recuperadas que continuarão mesmo assim a contagiar outras. Um estudo inglês demonstra que, quando o período de isolamento foi de 14 dias, apenas 1% das pessoas que receberam alta continuaram a infetar terceiros. A percentagem quando o isolamento era de 10 dias rondava os 5%.
Agora, com um isolamento de sete dias como o que está em vigor em Portugal Continental, 10% das pessoas que receberam alta continuam infecciosas. Se forem cinco dias, como acontece na Madeira e nos Açores, a percentagem sobe para 15%.
Explicador. O que mudou no isolamento de doentes com Covid-19?
A situação não é a mesma em todo o país. A região de Lisboa e Vale do Tejo está num planalto há vários dias — os casos não sobem, mas também não descem —, mas as do Norte e Centro insistem em arrastar para cima a quinta vaga. Enquanto esse pico não chegar, também os picos dos internamentos e dos óbitos por Covid-19 ficam adiados. A boa notícia é que, sendo esta variante 50% a 60% menos arriscada que a Delta, a repercussão nos hospitais está a ser incomparavelmente menor às ondas anteriores.
Riscos da variante Ómicron são 50% a 60% inferiores aos da variante Delta, afirma ECDC
Só que, mesmo assim, a matemática falha: é que 30% a 40% dos internados nas alas Covid-19 nos hospitais estão infetados, mas não hospitalizados por causa do coronavírus, aponta Carlos Antunes. Como “não há dados desagregados” destes internamentos e todos entram para os números de internados infetados, a perceção da pressão que a pandemia está a exercer nos hospitais pode ser pior do que realmente é. E prova disso é que, nos cuidados intensivos, a situação tem estado mais controlada.
Como se explicam os óbitos que se têm registado nos últimos dias e que ascendem às três dezenas? São provavelmente pessoas que estiveram infetadas com a variante Delta, idosos e pessoas com o sistema imunitária fragilizado, aponta Carlos Antunes.
Cinco vezes mais contágios a nível global devido a variante Omicron e mortes a aumentar