O números do surto de Covid-19 estão a permitir algum optimismo — se bem que a ministra da Saúde alertou este domingo, em entrevista à RTP, que não deve haver um entusiasmo “excessivo”. Há duas semanas, o primeiro-ministro remeteu uma eventual retoma da normalidade só para junho. E a diretora-geral da Saúde garantiu, este fim de semana, que “um grupo de académicos e cientistas” está a estudar “em que datas podemos retirar algumas medidas de contenção, para voltarmos à vida normal sem risco”. Mas é possível falarmos, já, num regresso, ainda que gradual, à rotina antes da pandemia? O que aconteceria se levantássemos as medidas de confinamento? E quando saberemos que é a altura certa de revertermos as restrições?
É precisamente isso que muitos epidemiologistas e governos estudam por estes dias. E a opinião mais recorrente é a de que levantar a quarentena enquanto os níveis de infeção se mantêm altos traria um ressurgir de novos casos sob risco de sobrecarga dos sistemas de saúde. Neil Ferguson é um epidemiologista britânico, do Imperial College de Londres, e um dos investigadores que mais tem estudado a forma como os países devem reagir à epidemia — e como (e se) podem equacionar baixar a quarentena. Ferguson reconhece que ainda não é altura para grandes conclusões e que os países que primeiro foram afetados pela pandemia, como a China ou Singapura, serão uma espécie de cobaias para, efetivamente, percebermos o que deve ou não ser feito.
Num estudo sobre o caso chinês, a equipa de investigadores que lidera fala já em “estratégias de saída” aplicadas naquele país e que podem “informar os decisores políticos” sobre medidas a aplicar assim que a epidemia estiver controlada. Mas mesmo na China ainda é muito cedo para saber se o fim das políticas mais restritivas foi ou não uma boa ideia. E há já sinais que apontam para a segunda hipótese. Segundo a Bloomberg, na região chinesa de Jia voltou a ser imposto um confinamento obrigatório, após o ressurgimento de novos casos de infeção.
As dúvidas são ainda muitas e não há respostas certas. “Não podemos parar a economia para sempre. Por isso, temos de começar a pensar sobre se alguém vai trabalhar. Devem os mais jovens voltar ao trabalho mais cedo? Podemos testar quem teve o vírus e está agora imune para que possam voltar para o trabalho?”, questionou Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, dias antes de o estado de Nova Iorque ter ultrapassado Espanha no número de novos casos confirmados de infeção.
Neil Ferguson responderia, provavelmente, que a melhor hipótese é, para já, a supressão. Segundo as estimativas do epidemiologista, uma supressão total (a aplicação de medidas intensivas e abrangentes de distanciamento social) permitirá salvar a vida a 38,7 milhões de pessoas em todo o mundo. Foram, aliás, as suas previsões para o Reino Unido, enquanto Boris Johnson ainda optava pela estratégia de mitigação, que fizeram o primeiro-ministro britânico mudar de ideias.
Estimou Neil Ferguson que a opção pela mitigação (tentar conter o surto, prestando cuidados aos infetados que têm sintomas mais graves, esperando que outros tenham sintomas ligeiros, para que seja criada uma “imunidade de grupo”) levaria a que 250 mil britânicos morressem — por Covid-19 ou outras doenças — por não terem resposta do sistema de saúde, que ficaria sobrecarregado com um excesso de casos positivos. A estratégia de Boris Johnson mudou, como se alterou a de Donald Trump e de outros países.
À medida que os dias passam, a pergunta que começa mais recorrentemente a ser feita é: quando e como poderemos voltar à normalidade? A questão está a ser estudada por diversos governos, entre os quais o português, e a resposta poderá passar por um levantamento gradual das medidas de contenção durante as próximas semanas, como aconteceu na China, e vai acontecer em países europeus, como a República Checa.
Porque é que o Reino Unido mudou de estratégia? Resposta: os números do atual modelo assustaram
Mitigação ou supressão? As opções em cima da mesa
Num estudo publicado a 26 de março sobre as estratégias de mitigação e de supressão no combate à Covid-19, a equipa liderada por Neil Ferguson é clara: “A forma como os países responderem nas próximas semanas [à epidemia] será crítica na trajetória da epidemia a nível nacional”. E as estimativas também não deixam margem para dúvidas. Neste estudo, Neil Ferguson deixa quatro cenários:
- Nenhuma medida é tomada.
- Mitigação, com distanciamento social decidido pela população (sem que sejam, necessariamente, aplicadas medidas pelo governo).
- Mitigação com medidas de distanciamento social mais intensivas, sobretudo nos mais idosos (é semelhante ao cenário anterior, mas pressupõe que os indivíduos com 70 ou mais anos reduzem os contactos sociais em 60%).
- Supressão (aplicação de medidas intensivas e abrangentes de distanciamento social e redução em 75% dos contactos interpessoais, com o objetivo de suprimir rapidamente a transmissão e minimizar casos e mortes a curto prazo).
Segundo os investigadores, o primeiro cenário levaria a 7 mil milhões de infetados e 40 milhões de mortes este ano, em todo o mundo. O modelo pressupõe que cada pessoa infetada contamina outras três, e não tem em conta as especificidades de cada país, nem as políticas económicas e sociais aí adotadas. Já a segunda estratégia permitiria salvar 16 milhões de vidas face ao primeiro cenário. E a terceira estratégia, se acompanhada com uma redução dos contactos interpessoais da restante população em 40%, salvaria 20 milhões de vidas em todo o mundo. Por último, o quarto cenário, se adotado cedo, permitiria salvar 38,7 milhões de vidas. Porém, para que se evite uma nova vaga, esta estratégia terá “de ser mantida de alguma forma até que uma vacina ou tratamentos eficazes estejam disponíveis”.
A equipa do Imperial College pretende, com estas estimativas, ajudar os governos, que têm “decisões desafiantes” pela frente, a decidir que rumo tomar. ““É importante sublinhar que não se trata de previsões do que vai acontecer porque isso depende das ações dos governos e dos países nas próximas semanas, e as mudanças nos comportamentos resultam dessas ações”, esclarecem. E apelam a “uma ação coletiva, rápida e decisiva agora”, que pode “salvar milhões de vidas”, bem como à manutenção de medidas “com elevados níveis de vigilância“.
As únicas abordagens que podem evitar a falha dos sistemas de saúde nos próximos meses serão as medidas intensivas de distanciamento social que estão atualmente a ser implementadas em muitos dos países mais afetados, de preferência combinadas com um elevado número de teste. Estas abordagens têm maiores impactos se implementadas cedo. É, porém, importante considerar que a sustentabilidade destas medidas. Estas intervenções têm de ser mantidas em conjunto com níveis elevados de vigilância e isolamento rápido dos casos positivos para evitar um ressurgimento da epidemia”, lê-se no estudo.
Que impactos estão as medidas a ter nos países? Pelo menos 39 mil mortes já foram evitadas
Vários países europeus estão a implementar medidas de contenção “sem precedentes”, como encerramento de escolas e de universidade, a proibição de ajuntamentos e eventos públicos e, em vários casos, um confinamento generalizado — Portugal é disso exemplo.
O modelo da Imperial College é teórico — não tem em conta as especificidades de cada país, nem os impactos de cada medida, e por isso assume que cada política tem o mesmo efeito em todos os países — daí que as conclusões sejam apenas indicativas.
Ainda assim, as primeiras análises parecem positivas: “Estimamos que os países conseguiram reduzir [desde que introduziram medidas de contenção] a propagação da doença”, medida através do R0, ou seja, um índice que indica o número de pessoas que um doente infeta. A análise, publicada a 30 de março e que não inclui Portugal, conclui que em Itália a propagação da doença caiu de tal forma com o lockdown que um infetado contamina agora, em média, apenas uma pessoa. “Com as intervenções atuais a manterem-se, pelo menos, até ao final de março, estimamos que as medidas em 11 países [Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido] evitaram 59 mil mortes até 31 de março” — das quais 38.000 em Itália e 16.000 em Espanha.
Os resultados parecem indicar que as medidas aplicadas pelos países estão a ter efeitos positivos, mas os investigadores — precisamente por não avaliarem a eficácia de cada medida — são cautelosos em estabelecer uma causalidade: “Para a maioria dos países considerados no estudo é ainda muito cedo para se ter certezas sobre a eficácia das intervenções”, defendem. Mas, enquanto essa avaliação não chega, o melhor é “garantirmos que as restrições se mantêm até que os níveis de transmissão baixem. Estimamos que, nestes 11 países, 7 a 43 milhões de pessoas tenham sido infetadas até 28 de março, o que representa entre 1,88% e 11,43% da população”, sublinham, advertindo que há mais infetados do que os reportadas oficialmente (já que nem toda a gente é testada).
A ideia dos investigadores é, assim, que as medidas de confinamento sejam mantidas até que a propagação da doença seja muito baixa. Mas quão baixa? Não é referido. O que é certo é que um levantamento precoce das restrições, defendem, levaria a que o vírus “se propagasse rapidamente”. A lógica é que, como “ainda apenas uma pequena parte dos indivíduos” nos países estudados foi infetado, a Europa “não está perto de atingir a imunidade de grupo”. Com a propagação do vírus a diminuir, a possibilidade dessa imunidade “vai abrandar muito rapidamente”.
Então, quais as opções?
Como a Europa ainda não chegou à tal imunidade de grupo, levantar as restrições significaria, muito provavelmente, dar origem a uma nova vaga. A proposta de um outro grupo de investigadores, desta vez economistas, é a de que, quando os níveis de infeção começarem a baixar se possa aos poucos levantar as medidas restritivas, de forma a que poucas pessoas fiquem expostas de cada vez (evitando elevados níveis de casos infetados e, assim, uma sobrecarga dos sistemas de saúde) e permitir que quem está imunizado (a evidência aponta para que quem seja infetado uma vez fica com imunidade, mas não é ainda certo) regresse ao mercado de trabalho para pôr a economia a funcionar.
Outra ideia é planear o regresso ao mercado de trabalho, numa primeira fase, das faixas etárias mais jovens — em que a mortalidade é mais baixa. Uma das pessoas que o propõe é a presidente do Banco Santander em Espanha, Ana Botín, que pediu ao governo espanhol um planeamento “o quanto antes” do retomar da atividade económica. “Devemos planear o quanto antes o regresso ao trabalho dos mais jovens e dos que estão imunizados, e ao mesmo tempo assegurar que os mais vulneráveis permanecem protegidos”, disse, num discurso.
Perante um abrandamento do número de novos casos de infeção, a República Checa já anunciou que vai relaxar as medidas de confinamento. Passará a ser possível praticar desporto na rua sem ter máscara e vão reabrir algumas lojas de bens não essenciais, como sapatarias, lojas de roupa, ou de reparação de equipamentos informáticos, entre outros. Ainda assim, continuará a ser obrigatória a manutenção de uma distância de segurança de dois metros e os estabelecimentos comerciais devem ter desinfetante.
A Áustria também já anunciou que vai abrandar as medidas de contenção, o que terá como consequência um aumento do número de pessoas que sai de casa. Por isso, será obrigatório usar máscaras em locais públicos. A partir de 1 de maio, o país equaciona mesmo que sejam reabertas lojas e centros comerciais e, mais tarde, os restaurantes.
Se uns começam a pensar regressar aos poucos à normalidade, a chanceler alemã, Angela Merkel, defendeu esta segunda-feira que ainda é cedo para aliviar as medidas de contenção na Alemanha. O país estará, no entanto, a ponderar criar um “passaporte imunológico” que permita a quem está imune ao vírus sair de casa, por exemplo, para trabalhar. Ainda assim, as hipóteses de um regresso à normalidade estão ainda a ser estudadas.
Os alertas para os riscos de se levantarem demasiado cedo as restrições vieram também da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Se os países se apressarem a levantar as restrições demasiado rápido, o vírus pode ressurgir e o impacto económico pode ser ainda mais grave e mais prolongado”, referiu o diretor-geral da organização, na sexta-feira.
A Suécia, que aplicou medidas pouco restritivas, pondera agora alterar a abordagem inicial — a de criar uma imunidade de grupo –, depois do aumento do número de infeções e de mortos. No país, as escolas mantêm-se abertas, assim como algumas empresas e estabelecimentos comerciais, como restaurantes. Até agora, as únicas restrições foram a proibição de aglomerações públicas de mais de 50 pessoas e o encerramento de universidades. Foi sugerido que quem possa teletrabalhar o faça. Mas mesmo esta estratégia começa agora a ser questionada, à medida que o número de casos aumenta, e o Governo prepara-se para alterá-la.
Já a estratégia adotada em Singapura parece estar a dar resultados. Em vez de apenas optar pelo distanciamento social, desde cedo que o país adotou fortes políticas de controlo dos casos infetados, através da formação de equipas especializadas em traçar o percurso feito pela pessoa, com recurso a câmaras de vigilância, e contactando depois aqueles com quem o infetado se cruzou. “Ligaram-me e perguntaram: ‘Estiveste num táxi às 18h47 de quarta-feira?’ Foram muito precisos. Fiquei assustada”, descreveu à BBC uma britânica a viver em Singapura e que foi contactada por uma destas equipas por suspeitas de poder ter Covid-19. Este mapeamento dos contactos dos casos positivos também foi usado na Coreia do Sul.
A equipa do Imperial College defende, porém, que, pelo menos enquanto a situação não estiver controlada na Europa, as medidas restritivas “terão de ser mantidas até que uma vacina esteja disponível”, ou seja, “entre 12 a 18 meses”, partindo do princípio de que a transmissão “aumentará rapidamente se as restrições forem relaxadas”. A visão pode ficar mais pessimista: “Não há garantias de que a primeira vacina seja altamente eficaz”.
O ideal, defendem, é uma combinação, de quatro medidas: distanciamento social de toda a população, isolamento dos casos confirmados, quarentenas em casa e encerramentos de universidades e escolas. Se medidas como a quarentena generalizada forem abrandadas (por exemplo, no caso da figura seguinte, a partir de setembro), as infeções aumentariam, o que resultaria num pico no final do ano.
Ainda assim, sugerem que as restrições possam ser “abrandadas temporariamente em curtos períodos de tempo”, mas desde que sejam implementadas rapidamente novas medidas se e quando novos casos surgissem. Daí que a “mitigação nunca será completamente capaz de proteger quem está em risco de contrair a doença e morrer, e a mortalidade pode ser elevada”.
Em Portugal, segundo a ministra da Saúde, Marta Temido, o índice R0 está a baixar, o que é fundamental para chegar ao fim do período mais crítico e, assim, levantar as medidas de contenção. A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, adiantou até que estão a ser estudadas formas de regressar à normalidade. “Um grupo de académicos e cientistas está a fazer estudos para poder responder melhor às dúvidas, em que datas podemos retirar algumas medidas de contenção, para voltarmos à vida normal sem risco”, disse.
Não há data para a vida normal. Mas há cientistas a estudar regresso e o “R0” está a baixar
Aliás, o Expresso deste sábado noticiou que o Executivo pondera reabrir as escolas para os alunos do secundário a partir de 4 maio, com os exames de final de ano letivo a ocorrer em julho e em setembro. O início de uma estratégia para a retoma da normalidade.
A China levantou a contenção. E que efeitos é que isso teve?
O surto do novo coronavírus começou em Wuhan, na província chinesa de Hubei. As políticas restritivas de confinamento começaram a ser impostas a 23 de janeiro nessa região — e outras foram-lhe seguindo o exemplo. Quando atingiu o pico (e considerando como fiáveis os dados oficiais), a China tinha entre cerca de 2.000 e 4.000 novos casos confirmados por dia. Até 23 de março não tinham sido reportados novos casos de transmissão local na China (apenas casos importados) durante cinco dias consecutivos — o que levou o país a declarar oficialmente como controlada a pandemia –, com os investigadores a associar estes resultados às medidas restritivas.
“Isto indica que as medidas de distanciamento social aplicadas na China levaram ao controlo da Covid-19“, começam por escrever. Mas depois alertam que “estas intervenções também tiveram impactos na produtividade económica” e que “a capacidade de a economia chinesa retomar sem recomeçar um surto não é ainda clara”. Ainda é cedo para tirar grandes conclusões, reconhecem os investigadores, e a forma como a China lidará com a nova janela de oportunidade será não só decisiva, como um exemplo para os países que lhe seguirem.
“Os resultados não impedem uma futura epidemia na China, nem permitem estimar a proporção máxima de atividade dentro da cidade que será recuperada a médio prazo. No entanto, sugerem que após um distanciamento social muito intenso que resultou em contenção, a China abandonou com sucesso a sua política rigorosa de distanciamento social“, lê-se no estudo.
Na prática, o que os investigadores fizeram foi tentar perceber se há uma correlação (não causalidade) entre as deslocações diárias dentro das cidades chinesas e a propagação da doença (medida através do índice R0). E concluíram que, numa primeira fase, quando a primeira variável aumentava, a segunda também. Porém, “à medida que a China começou a remover as restrições nas deslocações e recomeçou a atividade económica”, as variáveis deixaram de estar associadas. Conclusão? “As estratégias de contenção da China vão continuar a ser eficazes à medida que o país recomeça a atividade económica.” Se é possível ter certezas de que uma vaga não está a caminho? Não, e o exemplo de Jia, uma região na China com 640 mil habitantes é disso exemplo.
Segundo a Bloomberg, nessa região, voltou a ser imposto um confinamento obrigatório, após um ressurgimento de novos casos. As autoridades publicaram uma diretiva na quarta-feira a dar instruções aos habitantes para que se isolem e usem máscaras se tiverem de sair à rua. Foi ainda limitado o trânsito na região.