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Ninguém estranhava quando algum investigador se levantava e saía porta fora, sem avisar. A sala do Centro Europeu de Cibercrime, na sede da Europol, estava resumida a um aglomerado de computadores, alinhados em redor de uma mesa. À frente de cada um estava sentado um investigador: auscultadores nos ouvidos, olhos no monitor — olhar atento e sem expressão — e uma bandeira a denunciar-lhes a nacionalidade. Na fileira de cadeiras ocupadas, por vezes uma ficava vazia — era a tal pausa de quem se via obrigado a sair. Alguns voltavam pouco depois. Outros não. “Estamos a falar de valores muito complicados de digerir. Temos de perceber quando parar, senão é o caminho inicial para o burnout“, aponta o inspetor da Polícia Judiciária Ricardo Vieira ao Observador.
Não é exagero — naquela sala, durante duas semanas, 27 investigadores de 21 países (europeus e não só) passaram mais de oito horas por dia a analisar imagens — fotografias e vídeos — de pornografia infantil. Foi mais uma reunião promovida pela Europol, para partilha de bases de dados, com o objetivo de identificar cenários e vítimas — e, desejavelmente, conseguir desmantelar redes e resgatar crianças. Um trabalho conjunto das várias polícias, no qual são procurados detalhes que permitam abrir investigações nos países de origem.
Percebe-se, por isso, que o ambiente seja tenso, ainda que com uma dinâmica informal: cada investigador tem a seu cargo uma série — um conjunto de imagens com uma relação entre si — diferente. À medida que vai olhando para as fotos e vídeos, acrescenta comentários em cada uma das imagens analisadas, ou pede ajuda a investigadores de outras nacionalidades. “Quando alguém diz ‘Está aqui uma série com muita informação’ é o caos. Toda a gente começa a perguntar qual é, para poder ver”, explica o inspetor Ricardo Vieira, que fez parte dos grupos “embrionários” de identificação de vítimas da Europol e que, agora, é formador de futuros participantes.
No total, foram visualizadas 584 séries. Cada uma pode ter entre duas a cinco mil imagens. O total? Mais de 32 milhões de conteúdos de pornografia infantil passaram pelos olhos daqueles investigadores — a explicação para que alguns saíssem porta fora, sem aviso. “Isto provoca um desgaste mental muito forte, dada a natureza das imagens”, explica ao Observador Pedro Vicente, coordenador da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e a Criminalidade Tecnológica (UNC3T) da PJ.
241 vítimas, 94 abusadores e o caixote do lixo que denunciou a foto portuguesa
O inspetor Nuno Dias — o único português presente na reunião — foi um dos que analisaram centenas, talvez milhares de imagens, algumas delas parte de uma grande apreensão feita na Bélgica. Durante a análise a uma foto, um caixote do lixo verde, localizado numa rua, chamou-lhe a atenção. O inspetor conseguiu perceber de imediato: aquele caixote do lixo era português. O objeto denunciou o cenário do abuso sexual e tornou-se claro que aquela fotografia tinha sido tirada em território português. “O abuso ocorreu em Portugal. Através da observação das imagens, verificou-se que aquilo poderia ser cá e, depois, foi possível confirmar o local. E foi, de facto, em Portugal”, revelou o inspetor Nuno Dias ao Observador.
Foi a primeira vez que se identificou um conteúdo de pornografia infantil produzido em Portugal, numa destas reuniões. Em anteriores, tinham sido apenas identificadas situações suspeitas que, embora tenham sido investigadas, não tinham, afinal, ligação a Portugal. Desta vez, não há dúvidas e o caso já está a ser investigado pela PJ.
O inspetor português conseguiu, ainda, identificar o país de origem de outros conteúdos — que, curiosamente, faziam parte dessa mesma apreensão belga. Nuno Dias conseguiu perceber que o cenário de outras imagens era russo e desencadear uma investigação que está prestes a ser concluída. No total dos esforços, em 91 séries foi possível identificar 21 países onde as imagens tinham sido produzidas. Os respetivos países — um deles, Portugal — foram informados dessas conclusões, para avançarem com uma investigação a nível interno.
Ao longo das duas semanas de trabalho, estiveram também a ser analisadas imagens de pornografia infantil que foram apreendidas em Portugal. “Quando apreendemos uma fotografia em Portugal, tanto pode ser produção própria como pode ter sido produzida, por exemplo, nos EUA”, explica o coordenador da UNC3T, Pedro Vicente. Foi isso que aconteceu com aquele conjunto específico. Na reunião, um investigador norueguês que analisava material que tinha sido apreendido em Portugal conseguiu perceber que esses conteúdos tinham sido produzidos na Hungria. As mesma imagens tinham também sido apreendidas na Bélgica. “É um crime transnacional. Estamos a falar de fóruns em que eles [os distribuidores de pornografia infantil] transmitem as imagens. Fomos nós que apreendemos esse conteúdo, assim como a Bélgica”, esclarece o coordenador.
Estes casos estão longe de serem únicos. Entre 15 e 26 de outubro, no total, os 27 investigadores conseguiram identificar 94 abusadores e 241 vítimas de exploração e abuso sexual de crianças. Ao identificá-las, fizeram soar o alarme e os resultados foram imediatos: duas crianças foram resgatadas, na Alemanha, ainda a reunião decorria. “Ninguém dorme”, diz o inspetor Ricardo Vieira.
Em formação paralela, identificou imagem produzida no Brasil
Todas as imagens que constam na base de dados da Europol são analisadas ao pormenor, mas é dada uma maior atenção a conteúdos introduzidos recentemente. “Significa que tem de haver ali olhos a ver aquilo de início”, explica o coordenador da UNC3T. Quanto mais olhos, melhor. Qualquer pormenor que chame a atenção de um investigador fica registado num comentário, que passa a ficar agregado à imagem. Se a mesma imagem for observada por outro investigador, este pode acrescentar outra informação. Tudo somado e cruzado permite começar investigações, direcioná-las ou acelerá-las — o que, de outra forma, não aconteceria ou levaria mais tempo.
A diversidade de nacionalidades dentro dos grupos de investigação também é uma vantagem. “Às vezes, se for um filme, poderá ter uma voz que poderá ser portuguesa, eslovena, austríaca ou alemã. É importante que se reúna investigadores de várias origens com vários backgrounds linguísticos. A própria audição da voz poderá gerar alguma informação sobre onde é que aquilo foi produzido”, explica Pedro Vicente ao Observador.
A reunião de outubro foi a quinta deste género. Mas desde a primeira, e em grupos mais pequenos — “quase embrionários”, descreve o inspetor Ricardo Vieira –, sempre estiveram presentes inspetores portugueses. Desde então, muito mudou. “As coisas funcionavam de outra maneira. A tecnologia que tínhamos era diferente, éramos menos inspetores e só acontecia durante uma semana”, explica.
Ao mesmo tempo que a reunião decorria na Europol, a 260 quilómetros dali, na cidade alemã de Selm, decorria uma formação para identificação de vítimas, que habilita os formandos a utilizar a base de dados daquele serviço europeu de polícia. Nessa formação, dois dos 12 formadores eram portugueses. Um deles, Ricardo Vieira, acabou por dar formação ao seu coordenador, Pedro Vicente, um dos 64 formandos. “São paralelas e organizadas pelas mesmas pessoas. Uma é um grupo de trabalho para identificação de vítimas e o outro tem uma componente de formação, em que também fazem esse trabalho de identificação”, explica o coordenador da UNC3T. O curso já existe há 19 anos, mas a estrutura muda de ano para ano. Evoluiu e adapta-se, uma vez que, explica Ricardo Vieira, “a Internet há 19 anos não era a mesma coisa que é hoje e o modus operandi também não”.
Foi nessa formação que Pedro Vicente identificou uma imagem feita no Brasil. “Muitas vezes, o pessoal que ouvia falar brasileiro dizia: ‘Ó Pedro, vem cá ver se isto é português’ e eu ia lá confirmar”, conta, explicando que, num dos casos, encontrou algumas frases escritas em português, em segundo plano: “Via-se o miúdo e não se via a imagem completa, mas via-se: “São os votos de… Lar de acolhimento”. Não conseguiu ver mais do que as duas primeiras letras do nome de uma cidade e tentou, de imediato, pesquisar lares de acolhimento em cidades com aquelas letras iniciais, já com a certeza de que era no Brasil. “Fiz o comentário na imagem, vai ter de ser analisado”, acrescenta.
Os números de identificações conseguidas, divulgados pela Europol, também incluem as que foram feitas na formação, em exercícios reais. “Montou-se uma infraestrutura tecnológica. Quem estava a trabalhar na Alemanha, era como se estivesse a trabalhar na sede da Europol. Eram as mesmas séries de imagens. Aproveitou-se foi o facto de haver mais 60 recursos”, esclareceu o inspetor, que já dá esta formação há três anos. Os formandos não eram, no entanto, obrigados a fazer identificação de vítimas.
Há situações de pornografia infantil reportadas pelo WhatsApp: “A rede funciona”
Os resultados obtidos não se esgotam naquelas duas semanas. “Criam-se ligações entre os investigadores, que fazem uma rede. E isto é uma vantagem que não há dinheiro que pague”, defende o inspetor Ricardo Vieira. A “rede” funciona 24 horas por dia, sete dias por semana e, segundo explica também o coordenador da UNC3T, “funciona”, acrescentando que já existiram situações de pornografia infantil que foram reportadas informalmente. Por exemplo, por Whatsapp. “Se for preciso, alguém manda-me uma mensagem por WhatsApp a pedir, por exemplo: ‘Podes ver isto que está na base de dados? Descobri isto e acho que é deste país'”.
O coordenador Pedro Vicente dá outro exemplo: se algum inspetor estrangeiro, numa investigação de pornografia infantil, conseguir detetar um número de telemóvel de Portugal, os inspetores portugueses conseguem confirmar a operadora e encaminhar a investigação. “Isto não quer dizer que nós vamos fazer o pedido por ele. Não há mecanismos ilegais de obtenção de nada. Apenas ajudamos e, assim, as coisas não andam perdidas — quando chegam, vão bater à porta certa”, esclarece Ricardo Vieira.
Depois de reuniões como estas, os investigadores estabelecem “laços” que poupam “dias, horas, o que seja” e, alerta o inspetor, “toda a poupança, no final de uma investigação, é muito tempo e tempo para identificar vítimas”. “Quando se fazem pedidos ao Ministério Público para serem acionados mecanismos de cooperação internacional, eles já têm informação certa. Ou seja, os pedidos vão todos pela via legal, mas mais rápido. Isto não resolve investigações, apenas acelera e canaliza para o sítio certo“, explica o coordenador Ricardo Vieira.
Grupos de identificação vão ser mais frequentes. Base de dados portuguesa nasce até dezembro
Em breve, reuniões como a que teve lugar na Europol poderão passar a acontecer na sede da PJ, em Lisboa, e com inspetores de todos os cantos do país. Portugal também vai ter a sua própria base de dados com imagens de pornografia infantil resultantes de apreensões da PJ. “A base de dados já foi implementada e está em fase de configuração final — tanto a própria base de dados, como a estações de trabalho que vão haver em Lisboa, Porto, Coimbra e Faro. Estamos a ultimar o protocolo de funcionamento. No fundo, toda a cadeia: quem é que faz a alimentação da base de dados, quem começa por categorizar, etc.”, explica o coordenador Pedro Vicente, acrescentando: “Não está descartada a ideia de fazer em Portugal aquilo que se faz lá fora. No fundo, chamar os colegas do Porto, Coimbra e Faro e fazer grupos e ações de formação”. Esta semana, deverão começar a ser carregadas as primeiras imagens de pornografia infantil resultantes de apreensões da PJ.
Todos os anos a Europol junta investigadores de vários países para analisar imagens de pornografia infantil, mas a ideia é aumentar a frequência destas reuniões para três vezes por ano. A Interpol também o faz — o próximo encontro está marcado para dezembro — e o trabalho vai passar também por pedir ajuda a todos os cidadãos.
Em junho de 2017, a Europol lançou a iniciativa “Stop Child Abuse – Trace an object” — que descreve como um spin-off destas reuniões — para estender a análise de imagens de pornografia infantil ao público em geral. No seu site, este serviço europeu de polícia publicou várias imagens — sem que as crianças sejam visíveis — com cenários, objetos ou roupas das vítimas. Desde a criação da iniciativa, já foram enviadas mais de 22 mil sugestões de internautas à Europol, que resultaram no resgate de oito crianças e na detenção de um abusador.
Todas as ajudas são fundamentais. Um detalhe que seja é apenas o começo da investigação e a identificação de uma só vítima pode abrir caminho para a descoberta de dezenas ou centenas de outras — e dos seus abusadores.
Cada um dos números representa, pelo menos, uma vítima, seja o abuso de que natureza for. “Nem todas as imagens mostram atos sexuais de relevo. Mas a simples fotografia já é um crime, porque circula com o propósito de satisfação sexual. Não sabemos o que [as vítimas] passaram para serem expostas às fotografias e se atrás dessas fotografias não está documentado o abuso físico”, diz o inspetor Ricardo Vieira, alertando: “Ninguém tem noção daquilo que está atrás de uma imagem.”