Mise Seiichiro estava na sua casa, em Nagasaki, a brincar e a imitar os sons que naqueles dias mais ouvia: o de bombardeiros b-29 americanos, que lançavam bombas sobre os japoneses. A mãe avisou-o para parar com aquilo, porque os vizinhos podiam assustar-se. Mal teve tempo porque, de seguida, uma luz intensa tomou conta do céu. Mise Seiichiro tinha 10 anos e pôs em prática as lições que tinha aprendido na escola, em caso de bombardeamento: aninhou-se no chão, junto a uma parede, tapou os ouvidos com os polegares e, com os restantes dedos, tapou os olhos. Uns segundos depois, um estrondo tão forte que ele nunca poderia ter imitado, porque não conhecia, varreu a casa. Quando ganhou coragem, abriu os olhos e ouviu a mãe e a avó a gritar o nome dele e dos irmãos, por entre a poeira e os vidros partidos, outros pregados nas portas pela velocidade com que foram projetados pela energia da bomba. Foi no dia 9 de agosto de 1945, às 11h02 da manhã.
Mise Seiichiro morava a 3,6 quilómetros do hipocentro. Três dias antes, a 6 de agosto, Tsuchida Kazumi já tinha passado pelo mesmo abalo, em Hiroshima, com uma distância mais perigosa do hipocentro, menos de 3 quilómetros. A distância foi suficiente para lhe permitir estar a contar a sua história, ao vivo, esta quarta-feira de manhã, numa conferência organizada pela Universidade Lusófona do Porto, perante uma plateia de alunos e curiosos.
Os japoneses têm um nome para os sobreviventes das bombas atómicas: Hibakushas. Mise Seiichiro, hoje com 82 anos, e Tsuchida Kazumi, com 76, sabem que pertencem a uma das últimas gerações de pessoas que viram o céu ficar branco e que depois assistiram incrédulos ao aparecimento de uma nuvem gigante em forma de cogumelo. Por terem sofrido na pele as consequências das duas únicas bombas atómicas alguma vez lançadas contra um país, que juntas mataram entre 129 mil e 226 mil pessoas, decidiram juntar-se no barco da ONG japonesa Peace Boat. A organização já tinha estado em Portugal no passado. No entanto, esta foi a primeira vez que trouxe ao país dois sobreviventes, para que possam dizer olhos nos olhos: é preciso que cada país lute pela erradicação das armas nucleares.
Há muita gente que visita Hiroshima por causa do Peace Memorial Museum e para ver de perto o A-bomb Dome, edifício que ficou por baixo do hipocentro da bomba atómica e que resistiu de pé, até hoje. Junto ao edifício em ruína é possível reparar em homens e mulheres que por ali vagueiam, identificados. São voluntários, todos já na idade da reforma, que dedicam os seus dias a responder às perguntas dos visitantes. Alguns recordam-se desse dia como se fosse ontem, apesar de já se terem passado quase 72 anos. Ouvir da boca de um sobrevivente a descrição do inferno na terra é incomparavelmente mais forte do que qualquer texto num livro de história.
“O cheiro a queimado era tão forte que me fez doer o nariz”, conta Seiichiro, num testemunho semelhante ao que partilhou no Porto. Alguns dias depois, o miúdo de 10 anos quis ir ver se a sua escola se tinha aguentado. O que viu foi feridos a serem transportados para o auditório em carinhos de duas rodas; corpos gravemente queimados e alguns sobreviventes a gritar por água. “Outros gritavam ‘matem-me, matem-me!’, porque não conseguiam suportar as dores das queimaduras. Não queria acreditar.” Não havia meios suficientes para tratar toda a gente, e muito menos para dar um enterro digno aos mortos. “Cavavam buracos no recreio [da escola] e punham lá os corpos sobre portas de madeira ou contraplacados para serem cremados. Alguns corpos eram cremados sem se saber quem eram. Alguns eram cremados por familiares. O cheio era forte.”
Uns segundos de explosão, décadas de sofrimento
As memórias de Tsuchida Kazumi são mais ténues, uma vez que só tinha quatro anos. A vida da criança foi interrompida quando estava de regresso a casa, depois de ter ido buscar leite para a sua irmã mais nova, com um amigo. O choque da explosão e do que viu foi tal que a deixou sem fala durante algum tempo. Não teve feridas visíveis, mas saiu muito magoada do ataque. E recorda-se de ver o pai chegar a casa negro, da fuligem, em sofrimento com dores insuportáveis.
“35 dias depois de a bomba ter sido lançada, o meu pai morreu”, recorda ao Observador. “Isso foi muito difícil para a minha mãe. Ela ficou com um peso muito grande para carregar, até porque a vida no Japão do pós-guerra era muito difícil. A minha mãe sofreu durante toda a vida. Nos últimos 10 anos, sofreu de depressão. Tudo isso teve impacto na minha vida também.”
Já passaram quase 72 anos desde aqueles dias de má memória. Mas Mise Seiichiro ainda vive com o medo de que um cancro lhe leve a saúde. Levou a vida da irmã mais nova, que morreu aos 48 anos com cancro do cólon. Aos 60 anos morreu mais um irmão, com cancro da próstata.
“Temos experienciado muitas coisas”, desabafa ao Observador. “Uma delas é a discriminação por sermos Hibakushas, por termos sido as pessoas diretamente mais afetadas pela radiação.” Durante muito tempo, os japoneses acreditavam que a radiação se transmitia para as segundas gerações e ninguém queria casar com uma vítima. Também era menos provável contratar um empregado que podia estar em risco de desenvolver doenças cancerígenas. Mise Seiichiro casou em 1964. “Tinha tanto medo dos efeitos da radiação que a primeira coisa que procurei ver no meu filho quando ele nasceu era se estava deformado”, admite.
A importância de preservar a memória, para que a história não se repita
Educada e sorridente, Tsuchida Kazumi foi escolhida em 2012 pelo Ministério Japonês dos Negócios Estrangeiros para visitar Israel, durante um período de tensão. Foi enquanto “Comunicadora Especial por um Mundo sem Armas Nucleares”, com a Peace Boat. “É fundamental que alguém que tenha estado fisicamente lá [nos bombardeamentos] alerte para as consequências”, considera a septuagenária. A pensar na idade avançada dos sobreviventes, as autarquias de Hiroshima e de Nagasáqui estão a promover um programa que “ensina as pessoas a passarem a mensagem”, conta. No Peace Boat há, neste momento, duas pessoas a aprender como desempenhar essa função. Também em Tóquio, na zona de Kunitachi, apesar de não haver lá Hibakushas, porque a cidade não foi bombardeada, “os habitantes também estão a ouvir as histórias dos Hibakushas e a estudá-las, para que possam ser eles a contá-las no futuro, quando os Hibakushas já não estiverem cá.”
O Japão é o único país do mundo a conhecer na pele as consequências nefastas da arma atómica. No entanto, votou recentemente, na Organização das Nações Unidas, contra uma resolução que pretendia iniciar conversações no sentido de banir as armas nucleares. “É incrivelmente desrespeitoso [para com os Hibakushas] que votem contra”, afirma Mise Seiichiro. “Na minha opinião pessoal, quando o Primeiro-Ministro vai visitar Hiroshima e Nagasáqui para prestar a sua homenagem às vítimas e depois faz isso, eu só gostava de lhe perguntar então porquê dar-se ao trabalho de viajar até às duas cidades se depois não quer participar nas conversações.”
Portugal também votou contra, seguindo o sentido de voto dos Estados Unidos, da NATO e das principais potências mundiais. Tsuchida Kazumi deixa, ainda assim, um apelo a Portugal: “Gostaríamos muito que Portugal participasse e assinasse o tratado que pretende banir o nuclear. A ONU vai voltar a discutir o tema entre os dias 15 de junho e 7 de julho.
Com o escalar das tensões em alguns pontos do globo, nomeadamente com a Coreia do Norte, vizinha do Japão, há alguma situação em que os dois sobreviventes admitem a existência do nuclear? Se ninguém tiver a arma, todos ganham, consideram. E não são só as armas que constituem perigo. Na opinião destes dois japoneses, os reatores nucleares de produção de energia também deveriam parar. “Se olhar para o Japão, apesar de ser um território com uma atividade vulcânica muito alta, mesmo assim há 54 reatores nucleares ativos espalhados pelo país”, lembra Kazumi, que prefere não comentar decisões políticas no que toca aos países que detêm a bomba. “O Japão está numa posição em que, se quisesse, poderia construir armas nucleares. E não creio que devesse ter esse poder. Nem para a produção de energia”
Seiichiro concorda. “Quando começaram a construir os reatores nucleares, disseram-nos que eles eram totalmente seguros. O grave acidente em Fukushima, em 2011, mostrou o contrário. “Já passaram seis anos e ainda há pessoas que não podem regressar às suas casas. A situação não está a melhorar e, por trás de tudo isto, há gente a ganhar muito dinheiro com a situação. A grande maioria dos japoneses não quer energia nuclear nem armas nucleares.”
Ao final da tarde desta quarta-feira, os dois sobreviventes voltaram a entrar no Peace Boat e vão agora a caminho de França, espalhar a mensagem de paz e de desarmamento. Mas, com tudo o que sofreram ao longo da vida, foram capazes de perdoar a América pelo que lhes fez? “Nós fomos usados como teste, porque a bomba largada em Hiroshima era diferente daquela largada em Nagasáqui”, começa por dizer Mise Seiichiro. “Fomos um teste para a América ver se aquela era uma forma viável para terminar a guerra mais cedo e odiamos isso. Mas foi algo que aconteceu no passado. Hoje, a América encontra-se numa posição em que pode liderar o caminho da desnuclearização. Infelizmente, não o estão a fazer.”