Quando no início de fevereiro o Governo e a Comissão Europeia negociaram a aprovação do Orçamento do Estado em Bruxelas, já ambos sabiam que a situação em maio seria complicada. Agora, Portugal arrisca-se a ser alvo de sanções e perder acesso a fundos comunitários, mas o mais provável é ser obrigado a aplicar mais medidas até julho, altura em que se deve reunir o Conselho da União Europeia.
As negociações entre o Governo e a Comissão Europeia estiveram longe de ser pacíficas e o próximo capítulo pode ser histórico. Em Bruxelas, os comissários discutiram, na semana passada, o que fazer em relação a um grupo de países que consideram problemáticos. E Portugal está nesse lote, juntamente com Espanha e Itália (apesar de Itália não estar em situação de défice excessivo).
Os comissários realizaram um debate de orientação sobre o pacote da primavera do semestre europeu, com o vice-presidente da Comissão Europeia para o Euro, Valdis Dombrovskis, a distribuir uma nota aos presentes e a defender uma abordagem semelhante para os dois casos mais críticos – Espanha e Portugal – a fim de evitar queixas de Portugal, depois de, durante as negociações, a Comissão Europeia ter pedido ao Governo português para que as discussões fossem em privado.
A decisão final passou para esta quarta-feira. Os comissários vão voltar a reunir-se para decidir se avançam com sanções inéditas contra um país. De um lado estão os países do centro da Europa – Alemanha, Holanda e Áustria já tinham exigido a Portugal que preparasse um plano B com medidas para aplicar nesta altura – e alguns dos países mais a leste. Mas nem todos os comissários estão de acordo e a decisão está longe de estar fechada.
Do orçamento à ameaça de sanções
Depois de meses a pedir a Portugal uma proposta de orçamento para analisar – que não chegou devido ao calendário eleitoral e à queda do Governo PSD/CDS-PP que se seguiu -, as negociações entre Comissão Europeia e o Governo começaram cedo. Ainda antes de enviado o Esboço do Orçamento para Bruxelas o Governo já estava a fazer concessões na meta do défice, que passaria a ser de 2,6%, em vez dos 2,8% estipulados na altura que os os socialistas chegaram ao Governo.
Depois de enviado o Esboço, as negociações intensificaram-se. O Governo enviou as suas contas à Comissão, mas para Bruxelas os números não batiam certo. As medidas que o Governo apresentava como temporárias eram estruturais nas contas de Bruxelas e as negociações aqueceram em Lisboa. O primeiro passo formal foi dado quando a Comissão Europeia enviou uma carta ao Governo a 26 de janeiro a pedir ao Governo para explicar por que razão os planos para reduzir o défice estrutural ficavam “muito abaixo do ajustamento recomendado pelo Conselho, em julho” do ano anterior.
Depois de um vai e vem entre Comissão e Governo, depois de a Comissão avisar que não ia aceitar as contas do Governo e de o orçamento estar virtualmente chumbado até à primeira hora da madrugada de dia 5 de fevereiro – algo que seria inédito, já que nunca a Comissão mandou um orçamento para trás -, o Governo, já depois de acatar a necessidade de um conjunto de medidas adicionais, aceitou ainda não aplicar a redução da Taxa Social Única para os trabalhadores com vencimentos até 600 euros. Esta medida permitiu ao orçamento português passar no crivo dos comissários, mas com uma espinha encravada.
O orçamento passaria, ou chumbaria, de acordo com um critério legal claro. Se o esforço estrutural exigido fosse inferior a 0,5 pontos percentuais, o orçamento seria chumbado. O recuo na TSU permitiu que fosse aprovado. Mas as diferenças entre a Comissão Europeia e o Governo ficaram à vista. O Governo dizia que o ajustamento estrutural ficava nos 0,3 pontos percentuais. A Comissão avaliava as medidas por baixo, porque não acreditava na sua eficácia (devido à altura do ano em que eram aplicadas as medidas), e contabilizava que o ajustamento ficaria apenas entre 0,1 e 0,2 pontos percentuais.
Logo no primeiro Eurogrupo em que o caso de Portugal foi discutido, após o orçamento, os ministros pressionaram e a Comissão Europeia acedeu a pedir a Portugal que elaborasse um plano B com medidas adicionais para aplicar ainda este ano. Alemanha, Holanda e Áustria foram os países que mais insistiram durante a reunião do Eurogroup Working Group, feita por teleconferência, para que a Comissão o fizesse. Depois desta reunião, que aconteceu no dia de Carnaval, a decisão final foi chutada para a reunião do Eurogrupo e nessa reunião, Mário Centeno aceitou preparar um plano B.
A Comissão já tinha o prazo estabelecido. Assim que saíssem os dados finais do Eurostat sobre o défice de 2015, assim que Portugal enviasse a Bruxelas o seu Programa de Estabilidade (ainda em abril) e que Bruxelas publicasse as suas previsões da primavera, no início de maio, a Comissão iria avaliar finalmente, de forma qualitativa, o esforço de Portugal. Os técnicos da Comissão estavam convictos, desde fevereiro, que o Governo não tinha ideia dos novos poderes que o Procedimento por Défice Excessivo revisto dava à Comissão. Do lado do Ministério das Finanças já se sabia que maio seria um mês difícil, mesmo com uma execução orçamental melhor que a esperada.
Com a publicação dos números de 2015 e com a revisão das projeções para 2016, a situação de Portugal complicava-se. O défice do ano passado foi de 4,4% devido aos gastos do Estado para resolver o Banif, longe dos 2,7% prometidos pelo anterior Governo, e o défice estrutural agravou-se em vez de reduzir.
Pecados do passado podem custar milhões no futuro
A Comissão Europeia e o FMI a avisarem que a meta do défice não será alcançada não é um filme só deste ano. Em 2015, foram feitos vários avisos a partir de Bruxelas e de Washington em relação aos riscos associados ao défice. Maria Luís Albuquerque, então ministra das Finanças, ia dizendo que a Comissão se enganava muitas vezes nas previsões e que no final seriam as suas contas que estariam certas.
No entanto, ao falhar a meta do défice e ao agravar o saldo estrutural, as contas do ano passado deixaram Portugal numa situação de fragilidade única. Portugal é o único país que devia ter acabado com o défice excessivo o ano passado e não o fez. Espanha só tinha de o fazer no final deste ano.
Acresce que, nas previsões revistas, a Comissão Europeia espera que o saldo estrutural se tenha agravado em 2015 e que isso aconteça novamente este ano e em 2017, três anos seguidos de aumento, quando deveria haver pelo menos uma redução de 0,5% do PIB por ano — o acordado com o Conselho da União Europeia, em julho do ano passado, foi de um ajustamento mínimo de 0,6% do PIB este ano.
Quando, em 2009, foi aberto um novo Procedimento por Défice Excessivo a Portugal, o acordo foi que o défice caísse para menos de 3% logo em 2013. Com a crise e o resgate, e já com a troika em Portugal, por duas vezes a Comissão aceitou dar mais tempo a Portugal, um ano de cada vez – na quinta e na sétima revisões do programa -, tendo assim Portugal até 2015 para acabar com esse défice acima de 3%. Espanha teve um prazo semelhante até 2013, mas recebeu uma extensão por três anos, levando o caso até 2016.
Que sanções?
O que vai estar em cima da mesa dos comissários é se Portugal e Espanha tomaram ou não medidas eficazes. Portugal já está abrangido pela vertente corretiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), e se os comissários considerarem que essas medidas não foram tomadas, o próximo passo podem ser sanções.
Para o caso dos países da zona euro, que estejam sob a vertente corretiva do PEC, as sanções podem passar por uma multa de 0,2% do PIB, cerca de 370 milhões de euros. Esta multa começaria por ser um depósito, sem render juros, a entregar ao Mecanismo Europeu de Estabilidade — e que só poderia ser recuperada ao final de dois anos.
Depois da proposta da Comissão, a sanção pecuniária avança. Mas pode haver um volte face. Dez dias depois de a proposta ser feita, o Conselho pode reunir-se para a chumbar por maioria qualificada. A sanção ainda pode ser cancelada ou reduzida se, durante os dez dias seguintes à proposta, acontecerem uma de duas coisas: a Comissão considerar que existem razões económicas excecionais, ou se houver um pedido do Estado-membro em causa, com explicações que o justifiquem.
Voltemos ao cenário em que a sanção é aplicada. Esse depósito pode ser convertido em multa, caso o Conselho considere que país não tomou medidas eficazes para reduzir o défice. Aí, a Comissão tem 20 dias para recomendar ao Conselho a aplicação de uma multa de 0,2% do PIB desse país, no ano anterior.
Se o país não tomar medidas para corrigir o défice de forma repetida, pode ser alvo de mais uma multa de 0,2% do PIB, a que acresce uma componente variável, que não é clara nas regras orçamentais europeias. Estas multas serão anuais enquanto o défice não for corrigido.
A própria forma de avaliação da adoção de medidas eficazes é complexa. Para que a resposta seja positiva é preciso que a variação anual do saldo estrutural esteja em linha com o recomendado, que esteja feita a quantificação das medidas tomadas e, por último, que exista uma análise abrangente da Comissão Europeia.
No entanto, as sanções não são apenas pecuniárias. A Comissão pode fazer outras exigências:
- os países que recebem fundos europeus do Fundo de Coesão podem ver esse financiamento suspenso;
- a Comissão pode exigir mais informações, a determinar pelo Conselho da União Europeia, antes de Portugal ir ao mercado para emitir dívida pública;
- o Banco Europeu de Investimento pode reconsiderar os empréstimos ao Estado-membro em causa.
Há ainda outra medida que pode vir a ser aplicada — e a que Portugal estaria sujeito se tivesse pedido um programa cautelar. Ao abrigo das novas regras orçamentais europeias, os Estados-membros podem ser sujeitos a vigilância reforçada quando sofrerem desequilíbrios macroeconómicos, ou financeiros, significativos.
Na prática, esta vigilância seria reforçada para além daquela que já é aplicada ao abrigo do Procedimento por Défice Excessivo. À semelhança do que acontecia com a troika, Portugal poderia ser alvo de visitas regulares da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu a cada seis meses, ou mesmo a cada três meses. Ao abrigo desse acompanhamento, a Comissão pode concluir que um Estado-membro tem de tomar mais medidas, mas apenas se a instabilidade financeira do país puder ter consequências na estabilidade financeira da zona euro.
Está tudo decidido? Não.
A decisão do colégio de comissários é agora política e não técnica. Tecnicamente, Portugal está em violação do pacto, mas os comissários podem não tomar essa decisão, como não o fizeram no passado com outros países, como França e Itália.
No ano passado, a Comissão exigiu a França e Itália que tomassem mais medidas. Os dois países acederam ao pedido e acabaram por não ser sujeitos a sanções. Entre a decisão desta quarta-feira, caso ela venha nesse sentido, e a ratificação no Eurogrupo — pelo Conselho Europeu e pelo Conselho da União Europeia (que pode acontecer apenas em julho) — Portugal pode avançar com mais medidas para corrigir o caminho deste ano e dos anos seguintes.
Para isto, o Governo precisava que a Comissão Europeia olhasse para o lado no que diz respeito às transgressões do ano passado (quando ainda estavam PSD e CDS-PP no poder) e que Bruxelas acreditasse nas contas deste ano e que chegassem para o esforço exigido.
A favor do Governo, na defesa de Portugal, está o fraco crescimento económico do primeiro trimestre (uma das principais razões que permite dar mais tempo aos países para reduzir o défice) e a previsão da própria Comissão Europeia para o défice deste ano — 2,7%, já fora do procedimento por défices excessivos. Contra, está o facto de, no ano passado, o Governo PSD/CDS-PP ter projetado chegar a esse valor, mas o défice ter ficado aquém e o saldo estrutural ter aumentado — e aumentar novamente nas contas da Comissão este ano e no próximo.
Além das metas do défice e do défice estrutural, há mais recomendações do Conselho do ano passado, que a Comissão considera que não foram cumpridas por Portugal, como é o caso da reforma duradoura do sistema de pensões e o aumento do salário mínimo nacional, que é mal visto em Bruxelas.
Para a Comissão Europeia permitir a Portugal passar ao lado das sanções é um preciso um voto de confiança nas contas do Governo. Mas a falta de medidas detalhadas, que ancorassem os objetivos orçamentais que o Governo pretende alcançar nos próximos anos, não ajuda. Estas medidas, que o Conselho das Finanças Públicas e a UTAO têm alertado que podem constituir riscos importantes, também não são consideradas nas contas da Comissão Europeia.