Foi uma das marcas indeléveis do período em que Marta Temido foi ministra da Saúde. Entre 2019 e 2021, três dos quatro hospitais do SNS que eram geridos em regime de Parceria Público Privada (PPP) voltaram à gestão pública. Todos (Braga, Vila Franca de Xira e Loures) viram a qualidade do serviço prestado piorar, dizem médicos, administradores hospitalares, presidentes de Câmara e e as próprias populações.
A principal consequência do fim da PPP nestes hospitais foi a saída de profissionais de saúde, nomeadamente médicos — alguns com décadas de experiência. Obrigados a trabalhar 40 horas semanais (em vez de 35) e sem os incentivos financeiros (nomeadamente baseados no desempenho) que eram atribuídos pela gestão privada, centenas de profissionais abandonaram os três hospitais, ingressando, sobretudo, no privado.
Sem autonomia e amarrados às regras da contratação pública, as três unidades hospitalares, que servem em conjunto cerca de 800 mil pessoas (quase 10% da população nacional) viram sair dezenas de profissionais, alguns em áreas críticas, numa altura em que o país saía de uma pandemia e em que o SNS tentava (e tenta ainda) recuperar a atividade assistencial adiada durante esse período, a que soma a cada vez maior procura por cuidados de saúde.
Administradores hospitalares: “As PPP da Saúde foram proveitosas”
Os problemas no setor da Saúde têm marcado, pelo menos, o último ano: entre os encerramentos de serviços de urgências (inesperados, primeiro, e de forma organizada — ainda que com constrangimentos para as populações — num segundo momento), a carência de profissionais em várias especialidades e os protestos de médicos que fizeram antecipar o “pior mês de sempre” no SNS. E esses problemas vão certamente marcar a corrida até às legislativas de 10 de março.
Nesse contexto, quase três anos depois do fim do contrato da última PPP a ser desmantelada (a do Hospital de Vila Franca de Xira), fazemos um balanço da experiência das três PPP que terminaram nos últimos anos — neste momento, só o Hospital de Cascais é gerido por uma empresa privada, a Ribera Salud.
“As PPP da Saúde foram proveitosas. Durante alguns anos, traduziram-se em redução de custos para o Estado e numa prestação de cuidados que foi [considerada] boa pelas populações, com bons níveis de serviço”, diz ao Observador o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Depois, “o serviço piorou claramente”, admite Xavier Barreto.
Uma opinião secundada pelo professor universitário Pedro Pita Barros, especialista em Economia da Saúde. “As PPP de gestão clínica dos hospitais foram bons contratos para o setor público, dados os valores que na altura foram apresentados pelos concorrentes e que foram cumpridos e acompanhados, na parte financeira e na parte de qualidade de serviço”, sublinha.
Aos hospitais novos (construídos de raiz e bem equipados) somou-se a atração de profissionais de saúde diferenciados nas mais diversas áreas, atraídos por uma boa organização e por incentivos financeiros. Um cocktail que levou à melhoria da qualidade do serviço prestado às populações, mesmo num período em que Portugal atravessava uma crise financeira — com a intervenção da troika — e em que o orçamento do SNS sofreu cortes.
Inaugurado em janeiro de 2012, poucos meses depois do pedido de assistência externa, o Hospital Beatriz Ângelo foi desde início gerido, em regime de PPP, pelo grupo Luz Saúde, que investiu quase 80 milhões de euros na construção da unidade hospitalar. Firmada por um período de dez anos, a PPP terminou em janeiro de 2022, sem que as partes tenham chegado a um acordo para renovação ou prorrogação do contrato de gestão.
Hospital de Loures perdeu dezenas de médicos depois da reversão da PPP
Em Loures, a quebra na qualidade assistencial foi significativa, com a unidade hospitalar a ver sair dezenas de médicos e de outros profissionais. Só entre 2022 e 2023, 24 especialistas em Medicina Interna (a especialidade basilar dos hospitais), e que equivaliam a dois terços do quadro, abandonaram o Beatriz Ângelo, numa situação que a Ordem dos Médicos classificou como “gravíssima”. “Quando a PPP terminou [no início de 2022], muitos médicos foram embora. E os que ficaram, tiveram de absorver mais trabalho”, diz ao Observador um dos internistas que deixaram a instituição, e que conta com mais de 30 anos de experiência.
O médico ouvido pelo Observador, e que pediu para não ser identificado, não tem dúvidas de que a perda de profissionais foi determinante para que o serviço prestado tenha “piorado”. “Quando saíram do Beatriz Ângelo, alguns foram para a Luz Saúde, alguns foram para outros privados. O serviço piorou porque o trabalho é o mesmo e cada vez há menos pessoas. As pessoas vão-se sentindo cansadas e vão saindo”, sublinha o internista, garantindo que a perda de médicos experientes continua e está a depauperar a qualidade do hospital.
“O Estado tem dificuldade em acompanhar o pagamento [oferecido nas PPP]”, explica o médico, justificando, desta forma, a saída massiva de médicos depois de a unidade ter assumido a forma de Entidade Pública Empresarial (EPE), sob a esfera da gestão pública. “Há especialidades, como o caso da Cirurgia, que ainda têm possibilidade de fazer SIGIC [cirurgias adicionais]. No caso da Medicina Interna, isso não existe. Não há tarefas adicionais, é ver doentes de manhã à noite”, lembra o internista, o que impede, realça, que estes médicos consigam obter algum rendimento extra.
“Antigamente, era mais difícil um especialista de Medicina Interna ter saída [fora do SNS], mas neste momento os privados precisam de internistas“, disse à Lusa, em julho, o presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, que esteve de visita ao hospital. Paulo Simões alertava ainda para o facto de que os especialistas “acabam por trabalhar todos os dias mais horas do que as que deveriam e não são remunerados”, o que leva muitos a procurarem alternativas fora do SNS.
Hospital de Loures perdeu 24 especialistas de medicina interna
Mas não foi só a Medicina Interna a ser afetada. O fim da gestão privada do Hospital Beatriz Ângelo também diminuiu a capacidade de resposta noutra especialidade de grande importância para o funcionamento de um hospital: a Anestesiologia. O exôdo de especialistas começou no outono de 2021 — quando já corria o rumor (depois confirmado) de que o hospital voltaria à gestão pública — e acentuou-se a partir do início de 2022, com a saída de pelo menos 12 especialistas. No final desse ano, a própria presidente do Conselho de Administração do Hospital de Loures, Rosário Sepúlveda, admitia que “a saída de profissionais condiciona a resposta”, e apontou o exemplo da Anestesiologia como crítico.
“A grande carência é na Anestesiologia. Já nem conheci parte dos médicos dessa especialidade, cerca de um terço saiu antes da transição. Isto tem um impacto transversal a todo o hospital, uma vez que a Anestesiologia não é só bloco operatório, é também consultas, meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT), etc. A falta de anestesistas tem um grande impacto”, dizia a responsável, ao jornal especializado SaúdeOnline.
Em contraciclo, Hospital de Loures demora a recuperar indicadores assistenciais da PPP
Ao Observador, o Hospital Beatriz Ângelo garante que “a carência de profissionais está sinalizada junto das entidades tutelares, desde janeiro de 2022, aquando da transmissão do hospital para a esfera pública e foi reforçada por diversas vezes em momentos subsequentes”. Mas o reforço de profissionais nunca se concretizou. No entanto, o Hospital de Loures ressalva que a carência de profissionais não impediu a recuperação da atividade assistencial ao longo dos dois últimos anos de atividade, já sob gestão pública. “A adversidade resultante da carência de recursos humanos em diferentes categorias e especialidades não impediu a referida recuperação assistencial”, refere o hospital. Ainda assim, o cenário no Hospital de Loures é diferente do verificado noutros hospitais.
Depois do ano excecional de 2020 (em que a pandemia adiou milhares de procedimentos hospitalares), o número de consultas no Hospital de Loures aumentou em 2021 para cerca de 262 mil, segundo o Portal da Transparência do SNS. Contudo, ao contrário do que aconteceu em praticamente todas as unidades hospitalares do SNS (em que o número de consultas voltou aumentar), baixou para as 236 mil em 2022 — precisamente o ano do regresso à gestão pública. Em 2023, e apesar de só existirem dados até novembro, é expectável que o valor do total do ano fiquei muito próximo do de 2022, denotando a incapacidade do hospital em crescer neste indicador. No que diz respeito às cirurgias programadas, a realidade é semelhante: depois do aumento para cerca de 11.500 intervenções em 2021, registou-se uma quebra em 2022 (para 9.863), em contraciclo com o SNS. Em 2023, o hospital fala num aumento de 14% em relação ao ano anterior.
Entre os médicos, a perceção é consensual: o serviço prestado a quase 280 mil pessoas (dos concelhos de Loures, Odivelas, Mafra e Sobral de Monte Agraço) piorou. “A qualidade do serviço está bastante pior. O tempo de espera para consultas aumentou, a resposta na Urgência geral e na Pediatria piorou (a urgência pediátrica está agora fechada à noite e aos fins de semana)”, aponta Jorge Roque da Cunha, que, além de presidente do Sindicato Independente dos Médicos, é também médico de família no centro de saúde de Camarate, uma zona na área de influência do Hospital Beatriz Ângelo e para onde a referenciação de doentes não é fácil, sublinha, acrescentando que a unidade hospitalar assistiu a uma saída de médicos de várias especialidades.
Muitas escalas passaram a ser asseguradas com recurso a prestadores de serviço, que têm um menor compromisso com o hospital. Muitos serviços trabalham agora abaixo dos mínimos. “Dantes estavam todos satisfeitos: profissionais e utentes”, recorda Roque da Cunha. “Agora as dificuldades são muitas”, garante. Também o presidente da Câmara Municipal de Loures, o socialista Ricardo Leão assume que os seus munícipes ficaram prejudicados com a reversão da PPP.
“Se comparar o período de hospital público com o que foi a gestão privada, se olharmos para os indicadores e o grau de satisfação dos utentes, a situação piorou e muito, em todos os aspetos. O tempo de espera é muito maior”, diz Ricardo Leão ao Observador. Na origem da decisão de não prolongar o contrato de PPP em Loures terá estado a pandemia, mas também um diferendo que o governo mantinha com o grupo Luz Saúde. Segundo o, à época, secretário de estado da Saúde Lacerda Sales, a pandemia e a burocracia associada ao lançamento do concurso impediram que o mesmo acontecesse em tempo útil.
VIH e Hepatites causaram diferendos, resolvidos em tribunal
“Tenho ouvido dizer que a PPP acabou por uma questão ideológica. E não foi assim. O que a própria Marta Temido me transmitiu foi que, numa altura em que o país se batia com uma pandemia, o governo não teve oportunidade de fazer um novo caderno de encargos. Faltou tempo”, explica o presidente da Câmara Municipal de Loures, que defende que, se o “regresso da PPP for a melhor solução”, vê bom bons olhos esse cenário. “Não tenho nenhuma reserva ideológica. Primeiro estão os munícipes do meu concelho“, salienta o autarca.
No caso do Hospital Beatriz Ângelo, havia (e ainda há) um diferendo entre as duas partes relativo à responsabilidade financeira relacionada com cuidados prestados a doentes com Covid-19 e que terão gerado custos de dezenas de milhões de euros. “O privado entendeu, com legitimidade, que tinha a receber cerca de 40 milhões de euros referentes a cuidados prestados no combate à Covid-19. E o governo respondeu que não havia enquadramento legal para fazer esse pagamento”, lembra Ricardo Leão, que adianta que foi o grupo privado a não aceitar a prorrogação da PPP por mais um ano. Em março de 2023, ficou a saber-se que o diferendo avançava para tribunal arbitral, com a Luz Saúde a reclamar o pagamento de 42 a 45 milhões de euros por custos relacionados com a pandemia e que não estavam previstos no contrato.
Esse é, diz o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, o único risco associado à gestão em regime de PPP: a imprevisibilidade associada a um contrato a vários anos. “Quando fazemos um contrato a 10 anos, é difícil imaginarmos como vamos estar e o que vai acontecer: vai surgir uma pandemia? Vão aparecer novos fármacos ou tratamentos mais caros? Como é que o privado vai conseguir incorporar esse tipo de tecnologia/fármacos e repercuti-los no contrato?”, problematiza Xavier Barreto, explicando que, nos extensos contratos de concessão, tudo fica definido antecipadamente.
“No contrato fica plasmado tudo: qual o nível de atividade que o hospital vai ter, qual o custo por cada episódio, etc. Às vezes, o contrato tem dificuldade de acomodar um futuro que é incerto”, realça. Nalgumas PPP, o que se verificou foi um desacordo sobre algumas matérias que não ficaram previstas no contrato: formação de médicos ou terapêuticas para doenças infeciosas (como o VIH ou a Hepatite C) e neurológicas (como a Esclerose Múltipla), patologias que nos últimos anos têm sido combatidas com terapêuticas inovadoras, mais eficazes, mas também mais caras.
Em Braga, faltam luvas e materiais para as cirurgias
Foi o que aconteceu também no Hospital de Braga, o primeiro dos três a voltar à gestão pública (em setembro de 2019). Ao fim de 10 anos, o grupo Mello Saúde deixou a administração da unidade reclamando 33 milhões de euros por tratamentos a doentes com VIH, esclerose múltipla e hepatite C, não previstos no contrato. Mais tarde, em sede de tribunal arbitral, o Estado acabaria por ser condenado a pagar cerca de metade desse valor (16 milhões), referente aos doentes com VIH. Por considerar que a operação foi deficitária, o grupo Mello acabou por recusar a prorrogação do contrato nos mesmos termos do assinado em 2019 e propôs uma revisão do mesmo, que o governo rejeitou antes de ser lançado um novo concurso público, que acabou por não avançar — abrindo portas ao regresso da unidade hospitalar à gestão pública.
Em Braga, a qualidade assistencial do hospital da cidade também baixou depois da reversão da PPP. “São públicas as insuficiências do Hospital de Braga, na área dos recursos humanos e dos materiais”, diz ao Observador o médico Hugo Cadavez, que acompanha de perto a realidade do hospital. “Verificou-se uma saída de médicos sem precedentes. O modelo remuneratório passou a ser o modelo do SNS, que não é atrativo”, realça o especialista, apontando a perda salarial como uma das razões para a saída de médicos do Hospital de Braga para o setor privado, que ganha cada vez maior dimensão na na região Norte. Hugo Cadavez relembra que são frequentes os encerramentos da urgência de Obstetrícia. Estão também a tornar-se banais os longos tempos de espera na urgência geral, por escassez de internistas.
Também preocupantes, diz, são as situações de escassez de material clínico, e de organização, cada vez mais recorrentes. “Não há luvas, porque o hospital diz que estão esgotadas e não compram”, denuncia, criticando a excessiva burocracia associada às compras de material clínico e equipamentos na gestão pública, um problema que atinge com especial impacto as cirurgias. “Com a anterior gestão, quando era necessária uma prótese ou um qualquer equipamento que não estava disponível, havia indicações da administração para procurar esses materiais onde fosse preciso para garantir que as cirurgias se realizavam. Nos últimos tempos, isso já não acontece e cancelam-se as cirurgias. O modelo de compras da administração pública é altamente burocrático”, insurge-se o secretário Regional do Norte do Sindicato Independente dos Médicos.
Falhas de organização que, somadas à escassez de profissionais, também contribuíram para a deterioração dos cuidados prestados à população. “Estes anos ficaram marcados por uma degradação dos níveis de serviço prestados. O hospital ficou exposto aos problemas que grassam nas restantes unidades (com o retirar da autonomia, de poder de decisão, de flexibilidade de contratação) e mostra incapacidade de responder às necessidades”, diz ao Observador o presidente da Câmara Municipal de Braga, Ricardo Rio (eleito pelo PSD).
Finanças só aprovaram metade dos orçamentos dos hospitais e fizeram cortes
Na opinião do presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, o que faz diferença entre a gestão pública e a gestão privada dos hospitais é precisamente a autonomia e as ferramentas de gestão. Muitas vezes, lembra Xavier Barreto, os gestores são os mesmos e até transitam de PPP para as EPE. No entanto, as condições de autonomia com que trabalham são bem diferentes. “Uma PPP pode contratar médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde e pagar-lhes aquilo que acha que valem, com avaliações baseadas no desempenho. [A gestão pública] está limitada a uma tabela rígida em que todos são pagos da mesma forma (independentemente de se esforçarem mais ou menos)”, realça o também gestor hospitalar, a trabalhar atualmente no Hospital de São João.
“Os hospitais têm tido problemas relacionados essencialmente com a falta de recursos humanos. No dia em que a gestão passou para o Estado, muitos profissionais que recebiam incentivos rescindiram imediatamente os contratos. Deixou de ser competitivo e optaram por ir para o setor privado”, adianta Xavier Barreto. Para os substituir, os hospitais enfrentavam duas grandes dificuldades: por um lado, ofereciam condições muito menos atrativas, e, por outro, tinham de passar por um crivo apertado de autorizações governativas. “Quando quer contratar um profissional, uma PPP não vai pedir autorização ao Ministério das Finanças”, explica o representantes dos gestores hospitalares, vincando a diferença para os hospitais sob gestão pública.
Para além disso, o código de contratação pública limita a ação dos hospitais EPE na compra de materiais ou equipamentos. “As PPP não têm de seguir o código de contratação pública, podem negociar com fornecedores de uma forma muito mais livre. Têm autonomia, o que faz toda a diferença”, realça. Xavier Barreto considera “absurdo” dizer-se que as PPP prestam um melhor serviço que os hospitais públicos só pelo facto de estarem sob gestão privada. A diferença está, reforça, na capacidade e autonomia de gestão.
Governo ensaiou autonomia para os hospitais públicos em 2023 mas foi “ilusório” e “nada aconteceu”
“Pode vir o melhor gestor do mundo, que não tem qualquer hipótese [de ter sucesso] no quadro das atuais regras orçamentais”, lamenta o presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão.
O governo ainda ensaiou a concessão de autonomia aos hospitais sob gestão pública, mas a intenção falhou em toda a linha. No final de 2022, o Ministério da Saúde pediu aos hospitais que entregassem as suas propostas de Planos de Atividade e Orçamento, instrumentos que deveriam conceder autonomia às unidades para contratar profissionais e fazer investimentos ao longo de 2023. No entanto, a meio do ano, apenas metade desses planos estava aprovada, e com cortes significativos.
“Criou-se uma expectativa de que iriam ser aprovados de Atividade e Orçamento, dando autonomia aos hospitais, mas nada aconteceu. Parte dos hospitais tiveram os planos aprovados a meio do ano, com exceção da parte relativa a recursos humanos e investimentos — que é aquilo que realmente interessa. É uma coisa ilusória. Outros planos foram aprovados em Dezembro”, sublinha Xavier Barreto, que teme que, em 2024, a situação se revista de ainda “maior incerteza”. “O ministro das Finanças está em gestão, os Planos mudaram de nome (agora são planos de Desenvolvimento organizacional) e temos toda a incerteza relacionada com a formação do novo governo. Não sabemos se o modelo de governação do SNS (ULS e Direção Executiva) se vai manter ou não. Até lá, os hospitais estão quase em gestão corrente, é dramático”, afirma.
Voltando ao Hospital de Braga, o presidente da câmara da cidade garante que as verbas transferidas anualmente para a unidade são maiores do que os encargos que o Estado tinha com a PPP. Isto num quadro em que o serviço se degradou. Ao Observador, fonte oficial do Hospital de Braga disse que a unidade hospitalar não tem comentários a fazer sobre o processo de reversão da PPP. Apesar disso, a atividade assistencial tem acelerado. O hospital sublinha que, face a 2019, se registou um aumento expressivo do número de consultas realizadas: mais 50 mil. No ano passado, foi também batido o recorde de cirurgias, num total de 43.396, mais 38% face a 2019, o último ano sob gestão privada.
Ricardo Rio critica a decisão “ideológica do PS, que, a determinada altura, ficou refém dos partidos à sua esquerda” e espera que, num “novo contexto político”, o hospital possa voltar à gestão privada. Xavier Barreto explica que as PPP permitiram ganhos significativos em relação aos custos da gestão em regime EPE. “No que diz respeito ao custo, para cada PPP foi feito um concurso, o que se traduziu em reduções de preço face ao preço público comparado”, explica o gestor, que trabalhava no setor privado quando foi lançado o concurso para a concessão da gestão do hospital de Braga. “Recordo-me bem do processo de Braga. A proposta que ganhou estabeleceu, face ao preço público, uma redução de custos de 25 a 30%”, lembra o presidente da APAH.
Uma das vantagens das PPP, resume Xavier Barreto, é que permitem diminuir o risco financeiro associado à gestão hospitalar. Os hospitais públicos estão cronicamente subfinanciados e “sempre a acumular dívida”, explica. Num regime de PPP, a dívida acumulada durante a gestão privada é da responsabilidade dos gestores, mesmo depois do fim do contrato, o que retira esse “peso” da esfera do Estado.
A somar à perda de qualidade do serviço, o Estado gasta agora mais verbas com os mesmos hospitais, que prestam piores cuidados às populações. Várias análises de entidades públicas independentes concluíram que as várias PPP resultaram em poupanças de centenas de milhões de euros para o erário público. Em 2021, o Tribunal de Contas emitiu um relatório em que destacava que, no momento da assinatura dos contratos (entre 2008 e 2010), os quatro contratos de PPP tinham associada uma poupança prevista aos cofres do Estado de 671 milhões de euros.
Em 2018, por exemplo, “as PPP dos Hospitais de Braga (€2.280), de Loures (€2.815) e de Vila Franca de Xira (€2.859) apresentaram os três mais baixos custos operacionais por doente padrão apurados, posição consistentemente ocupada pela PPP de Braga desde 2013”, salientava o relatório. A somar a isto, a produção anualmente contratada pelo Estado foi inferior à efetivamente realizada — ou seja, os privados garantiram uma atividade assistencial superior à que estavam obrigados.
Para além da poupança total gerada, o tribunal salienta que estes hospitais foram genericamente mais eficientes. “Os hospitais com gestão clínica privada apresentaram, globalmente, indicadores de eficiência económica e operacional superiores à média dos hospitais“, escrevia o TdC, que, no entanto, não identificou diferenças, em relação aos hospitais sob gestão pública nos indicadores de qualidade e eficácia dos cuidados de saúde. Apesar disso, os juízes conselheiros do Tribunal de Contas garantiam que “os utentes dos hospitais geridos em PPP estão protegidos por padrões de qualidade mais exigentes do que os aplicados na monitorização dos hospitais de gestão pública”, uma vez que os contratos de gestão preveem mecanismos de controlo da qualidade dos serviços e monitorização dos resultados obtidos, através de dezenas de parâmetros.
PPP geraram centenas de milhões de poupança e tiveram níveis de excelência clínica
Também a UTAP (Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, do Ministério das Finanças) avaliou positivamente as quatro PPP hospitalares, concluindo, no entanto, que estas geraram poupanças mais baixas (mas, ainda assim, significativas) de 203 milhões de euros. No entanto, a própria UTAP refere diversos valores estimados de poupança por cada uma das PPP. Em 2020, esta entidade referia, numa avaliação intercalar, que a PPP do Hospital Beatriz Ângelo tinha gerado, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2017, uma poupança de 167 milhões de euros. Num período muito semelhante, o Hospital de Vila Franca de Xira permitiu uma poupança aos cofres públicos de 56,5 milhões. Já no Hospital de Braga, em apenas quatro anos (entre 2011 e 2015), o valor poupado pelo Estado foi de praticamente 200 milhões (uma diferença positiva, a nível de custos, de 26% em relação à gestão pública)”.
Em 2019, por exemplo, três hospitais em regime de PPP — Vila Franca de Xira, Braga e Cascais) lideravam a avaliação do Sistema Nacional de Avaliação em Saúde (SINAS) sobre Excelência Clínica, da Entidade Reguladora da Saúde.
Três hospitais PPP ocupam pódio em Excelência Clínica do Sistema Nacional de Avaliação em Saúde
Em Vila Franca de Xira, o serviço prestado piorou de tal forma (desde maio de 2021, quando o hospital da cidade voltou à gestão do Estado) que foi o próprio presidente da Câmara, o socialista Fernando Paulo Ferreira, a pedir a reprivatização da unidade, como escrevia o Público, a propósito de uma reunião que o autarca pediu ao ministro da Saúde Manuel Pizarro. São recorrentes e crescentes as queixas das populações servidas pelo hospital (que abrange uma área onde vivem cerca de 250 mil pessoas) acerca da qualidade dos vários serviços: o tempo de espera nos vários serviços de urgência (geral, pediátrica e obstétrica) aumentou, em resultado da saída de muitos médicos especialistas, o que se reflete também no aumento do tempo de espera para consultas.
Apesar de, ao Observador, o hospital salientar o aumento da atividade assistencial em 2023 face a 2022 (mais cerca de 5% nas consultas e cirurgias), a verdade é que os valores de 2022 ficaram muito aquém da produção de 2019, o último ano comparável com a gestão privada do grupo Mello Saúde. Só a título de exemplo, em 2019, o hospital realizou cerca de 10.600 cirurgias, mais 7% do que em 2022; e assegurou cerca de 167 mil consultas, mais 19% do que em 2022, o primeiro ano em regime de EPE.
“O período de gestão privada do Hospital Vila Franca de Xira pautou-se por uma grande melhoria e alargamento dos serviços. A passagem para a gestão pública trouxe – por razões diversas – dificuldades decorrentes da capacidade de decisão por parte da sua administração, que passou a estar vinculada à legislação pública (mais restritiva e, logo, retardando a concretização da vontade desta na resolução de problemas imediatos, que num contexto puramente privado não se colocam)”, refere ao Observador, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
O único hospital que, atualmente, é gerido por uma PPP é o de Cascais. À frente da gestão desde 2008, o grupo Lusíadas decidiu não participar no último concurso lançado para esta PPP, alegando que a proposta apresentada pelo Governo não garantia a sustentabilidade financeira. O Hospital é, desde 1 de janeiro de 2023, gerido pelo grupo espanhol Ribera Salud, o único que se apresentou a concurso.
PSD defende regresso das PPP em casos de “comprovada ineficiência e desigualdade no acesso”
O próximo quadro político, que resultar das eleições de 10 de março, pode vir a reverter a política seguida nos últimos anos relativamente às PPP na Saúde. Caso seja governo, o PSD admite voltar a lançar concursos, sempre que tal seja benéfico para o SNS.
“O Conselho Estratégico Nacional (CEN) do PSD recomendou a opção por novas Parcerias Público-Sociais (PPS) e Parcerias Público-Privadas na Saúde sempre que exista benefício objetivo e mensurável para as pessoas abrangidas e para o SNS. Em particular em relação aos Hospitais do SNS, julgamos que é uma solução preferencial sempre que a alteração do modelo de gestão possa ter impacto positivo na resposta hospitalar com cuidados médicos e cirúrgicos no tempo certo à população, com novos indicadores de qualidade de vida para as pessoas e maior eficiência económica para o SNS”, diz ao Observador o médico Nuno Freitas, coordenador da área da Saúde no Conselho Estratégico Nacional do PSD, acrescentando que “as PPP hospitalares devem ser uma resposta naqueles casos de comprovada ineficiência e forte desigualdade no acesso aos cuidados de saúde”.
Nuno Freitas salienta que as futuras PPP “deverão garantir uma melhoria no acesso às especialidades médicas e cirúrgicas, bem como aos meios complementares de diagnóstico e atividades de ambulatório, com cumprimento dos Tempos Máximos Clinicamente Recomendados (TMRG)”. Para o anestesiologista, “ganhos inferiores a 25% em relação à produção e indicadores obtidos em 2023 não são interessantes”.
“As PPP não são boas automaticamente, como não são más apenas por serem PPP. O rigor de análise não pode ser substituído por dogmas de um ou de outro sentido”, diz Pedro Pita Barros.
Sem concretizar exatamente o caminho que pretende seguir se vencer as eleições de 10 de março, o novo secretário-geral do PS disse — ainda antes de ser eleito líder do partido, mas já depois de o primeiro-ministro António Costa ter apresentado a demissão e de a corrida interna estar lançada — não ter “nenhum complexo ideológico” nem qualquer “preconceito” em relação à gestão privada de um hospital do Estado.
“Não há nenhum preconceito sobre essa matéria, e acho que as experiências de gestão privada em serviços públicos que não podem ser ignoradas por e com a qual devemos aprender”, referiu em dezembro.