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Pré-publicação. As confissões de Elena Ferrante

A 29 de novembro é editado "Escombros", livro de 2003 que agora é traduzido para português. É um conjunto de escritos pessoais da autora italiana cuja verdadeira identidade continua desconhecida.

Escombros foi publicado originalmente em 2003, como La frantumaglia no título original italiano. É um conjunto de textos que revela mais sobre o processo criativo de Elena Ferrante, que leva o leitor até às origens da escrita da autora. Ferrante desfia memórias pessoais mas também faz uma homenagem aos escritores e às histórias que a inspiraram.

O livro surge mais de dez anos depois do primeiro romance assinado pela italiana, Um Amor Estranho (L’amore molesto), editado em 1992. E serviu também para revelações sobre as angústias de Ferrante sobre a adaptação desse mesmo livro ao cinema (num filme de 1995 realizado por Mario Martone). Naturalmente, Escombros não tem qualquer revelação sobre a identidade de Elena Ferrante mas é uma abordagem rara ao íntimo da autora que ganhou projeção internacional com a tradução para várias línguas da tetralogia A Amiga Genial (e com o desconhecimento total da verdadeira identidade da autora, apesar das várias teorias que cão surgindo).

Neste excerto que o Observador publica antes da edição do livro (Escombros às lojas no próximo dia 29), Elena Ferrante escreve uma carta com a sua reação ao prémio Procida, Isola di Arturo — Elsa Morante, que distinguiu o seu primeiro livro. A autora acabaria por não ir receber o prémio.

escombros

“Escombros”, de Elena Ferrante (Relógio D’Água)

“Cara Sandra,

Esta história do prémio está a perturbar‑me muito. Devo dizer‑te que aquilo que me faz mais confusão não é o meu livro ter sido premiado, mas o prémio ter o nome de Elsa Morante. A fim de escrever algumas linhas de agradecimento, que fossem acima de tudo uma respeitosa homenagem a uma escritora que muito amei, pus‑me à procura, nos livros dela, de passagens adequadas à circunstância. Descobri que a ansiedade nos prega partidas desagradáveis. Folheei, folheei, e não encontrei uma única palavra que servisse para aquilo que pretendo, quando na realidade me recordava nitidamente de muitas. Será necessário refletir sobre como e quando é que as palavras fogem dos livros, e os livros acabam por parecer túmulos vazios.

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O que foi que me impediu de ver, neste caso? Procurava uma passagem claramente feminina sobre a figura materna, mas as vozes narradoras masculinas inventadas por Elsa Morante toldaram‑me a vista. Sabia bem que essas passagens existiam, todavia, para encontrá‑las teria de me inserir de novo na impressão causada pela primeira leitura, quando fora capaz de sentir as vozes masculinas como um disfarce de vozes e sentimentos femininos. Porém, para conseguir algo desse género, a pior coisa que se pode fazer é ler com a pressa de encontrar um passo para citar. Os livros são organismos complexos, as linhas que nos perturbaram profundamente constituem o momento mais intenso de um terramoto nosso, de leitores, que o texto iniciou desde as primeiras páginas; ou se encontra logo a falha geológica, e nos tornamos a própria falha, ou então já não encontramos as palavras que nos pareceram escritas para nós, e, se as encontrarmos, parecem‑nos banais, não mais do que um lugar‑comum.

l'amore

A capa da edição original italiana do primeiro livro de Elena Ferrante, “L’Amore Molesto”

Por fim recorri à citação que conhecem, queria usá‑la como epígrafe em Um Estranho Amor; mas é difícil de usar, porque ao lê‑la hoje parece, justamente, óbvia, nada mais que uma passagem irónica sobre a desmaterialização do corpo da mãe por ação do macho meridional. Por isso, caso vos pareça necessário citar aquele passo para tornar mais compreensível a leitura do meu texto de agradecimento, transcrevo abaixo a página por inteiro. Elsa Morante resume livremente aquilo que a sua personagem, Giuditta, dirá ao filho, comentando os modos de siciliano que o rapaz usou para marcar o fim, depois de uma feia humilhação, da experiência teatral da mãe, e o regresso dela a uma aparência menos perturbante.

Giuditta agarrou‑lhe uma mão e cobriu‑a de beijos. Naquele momento (disse‑lhe em seguida), ele tivera precisamente uma atitude de siciliano, daqueles sicilianos severos, honrados, sempre atentos às suas irmãs, para que não saiam sozinhas à noite, para que não alimentem esperanças aos apaixonados, para que não usem bâton! E, para os quais, mãe significa duas coisas: velha e santa. A cor apropriada para as roupas das mães é o preto, ou, quando muito, o cinzento e o castanho. Os seus vestidos são informes, pois ninguém, a começar pelas costureiras das mães, vai pensar que uma mãe tem um corpo de mulher. Quantos anos têm é um mistério sem importância, uma vez que a sua única idade é a velhice. Essa velhice informe tem olhos santos que choram, não por si mas pelos filhos; tem lábios santos que recitam orações, não por si mas pelos filhos. E ai daquele que pronuncie em vão, diante desses filhos, o santo nome das suas mães! Ai dele! É uma ofensa mortal!

Recomendo‑vos que leiam este trecho sem ênfases, em voz nor‑ mal, sem tentarem fazer os tons declamativos dos maus atores. Aquele que o ler deverá apenas sublinhar, ligeiramente, informes, costureiras das mães, corpo de mulher, mistério sem importância.

E aqui vai também a minha carta para o júri do prémio, espero que se perceba que as palavras de Elsa Morante não estão de modo nenhum gastas.

Peço‑vos uma vez mais desculpa pelas maçadas que vos dou.

Elena

[…]

Caro presidente, caros jurados,

De Elsa Morante, cujos livros muito amo, tenho muitas palavras na cabeça. Antes de vos escrever fui procurar algumas, para nelas me apoiar e delas retirar consistência. Nos lugares onde me recordava que elas estavam, encontrei muito poucas. Muitas delas tinham‑se escondido. Outras, embora não estivesse à procura delas, ao folhear os livros reconheci‑as, e seduziram‑me mais do que aquelas que procurava. As palavras fazem viagens imprevisíveis na cabeça de quem as lê. Entre outras, procurava palavras sobre a figura materna, tão central na obra de Morante, e fiz uma busca em Menzogna e sortilegio, A Ilha de Arturo, La storia e Aracoeli. Por fim encontrei algumas em Lo scialle andaluso, ao fim e ao cabo talvez aquelas que eu procurava.

A expressão é: «cortar na casaca». Pensava que escondesse um significado maldoso: uma agressão maliciosa, um ato violento que destrói as roupas e põe escabrosamente a nu; ou, pior ainda, uma arte mágica capaz de te dar forma ao corpo de maneira obscena. Hoje esse significado já não me parece maldoso nem escabroso. Pelo contrário, até me seduz a relação entre cortar, vestir, dizer. 

Os senhores certamente conhecem‑nas melhor do que eu, é escusado que vo‑las transcreva. Dizem como é que os filhos imaginam as mães: num estado de eterna velhice, com olhos santos, com lábios santos, vestidas de preto ou de cinzento ou, no máximo, de castanho. A princípio, a autora fala de filhos determinados: «aqueles sicilianos severos, honrados, sempre atentos às suas irmãs». Mas, poucas frases depois, põe de parte a Sicília e passa — parece‑me — a uma imagem materna menos local. Isso acontece com o aparecimento do adjetivo informe. Os vestidos das mães são informes, e a idade única que têm, a velhice, também é informe, «visto que», escreve Elsa Morante, «ninguém, a começar pelas costureiras das mães, vai pensar que uma mãe tem um corpo de mulher».

Parece‑me muito significativo esse «ninguém vai pensar». Quer dizer que o informe é tão poderoso, ao condicionar a palavra «mãe», que o pensamento de filhos e filhas, quando imagina o corpo para o qual essa palavra devia remeter, não consegue atribuir‑lhe as formas que lhe pertencem, senão com repulsa. Nem as costureiras das mães o conseguem, apesar de serem criaturas femininas, filhas, mães. Aliás, por hábito, e de modo irrefletido, talham para a mãe roupas que apagam a mulher, como se esta fosse lepra para aquela. Fazem‑no, e dessa forma os anos que as mães têm transformam‑se num mistério sem importância, e a velhice passa a ser a sua única idade.

Só agora, enquanto escrevo, pensei de modo consciente nessas «costureiras das mães». Mas atraem‑me muito, sobretudo se as associar a uma expressão que desde pequena me despertou curiosidade. A expressão é: «cortar na casaca». Pensava que escondesse um significado maldoso: uma agressão maliciosa, um ato violento que destrói as roupas e põe escabrosamente a nu; ou, pior ainda, uma arte mágica capaz de te dar forma ao corpo de maneira obscena. Hoje esse significado já não me parece maldoso nem escabroso. Pelo contrário, até me seduz a relação entre cortar, vestir, dizer. E acho fascinante que essa relação tenha dado origem a uma metáfora da maledicência. Se as costureiras das mães aprendessem a talhar‑lhes as roupas desnudando‑as, ou se lhas ajustassem de modo que recuperassem o corpo de mulher que têm, que tiveram, vestindo‑as, despiam‑nas, e os seus corpos, a sua idade, deixariam de ser um mistério sem importância.

[trailer de “L’Amore Molesto”]

https://www.youtube.com/watch?v=WhRKxj6BXPs

Quando Elsa Morante falava das mães e das suas costureiras, talvez estivesse também a falar da necessidade de reencontrar os seus verdadeiros vestidos e de fazer em pedaços os costumes que pesam sobre a palavra mãe. Ou talvez não. De qualquer modo, recordo outras imagens suas (por exemplo, a referência a um «sudário materno», definido como «tecedura de amor fresco sobre o corpo da lepra»), às quais seria bom abandonarem‑se, para depois ressurgirem como costureiras novas, prontas a combater o erro do Informe.

[Nota: A autora não foi receber o prémio «primeira obra», atribuído a Um Estranho Amor pelo júri da 6.ª edição do prémio Procida, Isola di Arturo — Elsa Morante (1992). Em vez disso, enviou à editora a carta aos jurados acima transcrita, que foi lida durante a cerimónia de entrega do prémio. O texto foi publicado nos “Cahiers Elsa Morante”, com organização de Jean‑Noël Schifano e Tjuna Notarbartolo, Edizioni Scientifiche Italiane, 1993, sendo aqui publicado com ligeiras alterações. O texto de Elsa Morante acima citado encontra‑se em “Lo scialle andaluso”, Einaudi, 1985, pp. 207‑208.]”

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