A maré cheia reduz a praia — do Burgau, em Vila do Bispo — a poucos metros de areia seca onde se amontoam dezenas de banhistas, pernas fletidas junto ao corpo para não ocuparem muito espaço. Outros sentam-se no paredão que separa a areia molhada da estreita estrada onde só passa um carro de cada vez, enquanto esperam que a água se afaste. Além dos que aproveitam o calor para mergulhar, há um grupo que começa a concentrar-se no meio da praia que resta, pé dentro de água.
Primeiro são cinco, depois dez. “É aqui a fila?”. Chegam aos 20 quando a buzina começa a ouvir-se ao fundo. O som atrai outros tantos, olhos fixos numa rampa mais ao fundo. “Eu vi-o primeiro, portanto sou o primeiro”, brinca um banhista que se aproxima do grupo desalinhado. Há quem já esteja habituado àquela coreografia e quem a veja pela primeira vez. “Ah, são as bolas de berlim”, diz uma senhora quando vê a carrinha de André Carmo aproximar-se e estacionar com as rodas traseiras no areal, naquela altura ainda molhado.
São 16h30 e o único vendedor naquela praia chegou, abriu a porta da carrinha, enterrou o cartaz e o boneco que o acompanha na areia. “Eia, cheira bem.” São já 30 as pessoas que se alinham. “Dad, look at that queue!” [Pai, olha para aquela fila!], aponta uma criança, dos seus cinco anos. O fenómeno atrai turistas, portugueses e estrangeiros, que filmam a fila que já vai longa, tiram selfies. André Carmo teve de pedir à fábrica com que trabalha para lhe fazerem mais bolas e está a vender mais este agosto do que no ano passado, julho foi mais ou menos igual. O preço, que subiu 20 cêntimos na normal ou com creme (para 2 euros) e 30 cêntimos nos restantes sabores (são 20 — para 2,5 euros), não parece afastar os interessados.
Como Jorge Madeira, que não foi para a fila, mas pediu a uma familiar para ir por ele. “Uma senhora disse-me ontem que ficou uma hora à espera”, conta a jovem. Na última semana, Jorge comeu quatro ou cinco bolas de berlim, não se recorda bem. O preço “já está a puxar um bocado”, e já o fez pensar duas vezes, mas ao Observador diz que isso não lhe limitou o consumo, pelo menos para já. “Normalmente não como e na praia tem outro sabor. Agora só para o ano.”
André Carmo tem o monopólio naquela praia, onde a Câmara de Vila do Bispo só atribui uma licença para a venda (que lhe custa à volta de 100 euros por ano). Mais acima, um minimercado também comercializa a iguaria, a um euro, e também a esgota. Mas é na carrinha de André que há fila. Durante duas horas e meia, não pára um segundo, tem sempre quem atender. Só viria a parar pelas 19h00, já o mar vai longe, quando o último cliente leva a última bola. Teve de dizer que não aos esfomeados que adiaram a compra, mas regra geral, os oito anos de experiência já o levam a estimar bem quanto vai vender para não produzir a mais nem a menos.
“As minhas bolas de berlim, em si, não são muito diferentes das outras, tem tudo a ver com a forma como as trato”, diz. Às bolas e aos clientes. André refere que o produto se diferencia porque os recheios, comprados ou feitos por ele, dependendo do sabor, são postos na hora, o que torna a bola mais fresca. Neste caso, o segredo não está na massa, embora tenha aprimorado a receita do sogro para a tornar menos oleosa. Está também na marca que criou, a Olhábolinha, que é hoje uma marca registada.
É que na carrinha, André tem mais do que bolas de berlim: tem meias com a sua caricatura para vender (um grupo de ingleses comprou-lhe várias naquele dia para oferecerem no Natal), tem ímans para o frigorífico, ora com o nome da praia, ora com a sua marca. Um cliente já lhe pediu que replicasse a t-shirt que usa, outros já vieram de longe para lhe fazer uma encomenda e já foi longe para levar encomendas (daí a dias vai a Sevilha entregar 300 bolas para um casamento, a pedido de um espanhol que conheceu na praia). Recebe poemas de clientes, tem emojis personalizados para o WhatsApp, carimba os braços ou as pernas dos fregueses com a palavra “Burgau” ou o chavão “hoje não faço dieta”. “As crianças adoram.” E distribui cartões em que à décima bola comprada, oferece uma. “Não estou cá para ser milionário, estou cá para ter pessoas a falarem bem das bolas. E todos os anos vêm mais pessoas”, afirma. Só lamenta que no Instagram não esteja a conseguir descolar dos seis mil seguidores.
Quantas bolas vende por dia? “Isso não interessa, nem a minha namorada sabe”, responde. O certo é que a carrinha chega cheia à tarde e da mesma forma chegou de manhã. É um negócio exigente e “ninguém enriquece em dois meses”, frisa.
Mas, segundo vendedores e fabricantes com quem o Observador conversou nos últimos dias, no Algarve e na costa alentejana, é um negócio que dá para fazer um generoso pé de meia, dependendo da dimensão do vendedor/fabricante ou da negociação entre ambos. Se no Burgau, a bola oscila entre os 2 e os 2,5, em Monte Gordo está nos 2 euros, porque a maioria dos vendedores na praia ou fabricantes assim o decidiu. Três praias ao lado, porém, já está a 1,8 euros. Noutros locais do Algarve, segundo relatos que chegaram ao Observador, há praias onde ainda é possível comprar por 1,5.
No Carvalhal e na Comporta, em Grândola e Alcácer do Sal, já pode chegar, respetivamente, aos 2,5 no areal, segundo testemunhou o Observador, ou 3,5 euros, de acordo com relatos. Um empresário da zona, também ele vendedor ambulante e que dá emprego a outros vendedores, diz que pode chegar a ganhar mais de 54 mil euros por temporada, já descontados os salários (também eles generosos, garante, não os indicando), outros custos e investimentos. “É um pé de meia”, que quer investir para reabilitar o “negócio dos barcos” do sogro e implementar noutras ideias turísticas na zona. Para alguns, a bola de berlim é ouro.
A bola está cara? “Poupa-se noutras coisas”
João Urbano, 58 anos, tem outro tipo de estratégia de fidelização. Os 30 anos em que pisa a praia de Monte Gordo e carrega as cestas ao ombro e os versos com piada que vai cantando — “bolinhas da ti Maria / roubadas de noite p’ra vender dia”; “dindindin olhá bola de berlim / p’ra comer até ao fim” — garantem-lhe clientes fiéis. Antes das 10h30, ainda João — conhecido como João do Telemóvel — espera o carregamento da fábrica para a qual trabalha, já duas famílias o circundam, cada uma com dois tupperwares num saco. Uma prepara-se para seguir para Guimarães, outra para Leiria e à espera deles têm familiares e amigos a quem prometeram um carregamento doce.
“Se calhar a bola é igual às outras, mas a gente afeiçoou-se ao João”, afirma Paula, da família de Guimarães, que já o conhece há uns 10 anos. Apesar do aumento do preço, de 1,70 para 2 euros, a família — que faz praia a vários quilómetros de distância e vai ali de propósito para a bola — não reduziu o consumo. “Poupa-se noutras coisas. Ontem viemos cá duas vezes porque não o vimos de manhã.”
Da família de Leiria, é Carla quem fica encarregada de escolher e organizar as bolas no tupperware. Há 18 anos que conhecem João, ainda o filho, Duarte, não era nascido. “Olha que ainda cabe aqui uma!”, aponta o marido, Carlos, antes de fechar a caixa. Ao todo, a família leva 12 bolas que pagou a 18 euros. No areal, cada uma seria a 2 euros, mas João fez uma “atençãozinha” e vendeu cada a 1,5 euros por serem clientes de longa data e por não estar na praia, mas numa pequena cabana antes dos passadiços que levam ao areal, forrada a telas térmicas onde organiza os carregamentos que lhes chegam da fábrica e os transpõe para as cestas.
As regras de armazenamento e as licenças para os vendedores
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Segundo a Deco, os vendedores ambulantes têm de ter um título de exercício de atividade. Os produtos vendidos devem vir de estabelecimentos devidamente licenciados que, por sua vez, devem cumprir os requisitos no que respeita à produção, transformação e distribuição.
As bolas de berlim não têm obrigatoriamente de ser transportadas em caixas refrigeradas, porque geralmente os produtos são comercializados e consumidos em curtos espaços de tempo. “O que deve ser considerado pelo vendedor é quanto tempo circulará pela praia e, se nesse período, consegue vender os bolos sem perderem a frescura”, indica a Deco.
A fiscalização do cumprimento das regras — pelos vendedores ambulantes e pelas pastelarias — é feita pela ASAE.
Já as licenças são fiscalizadas pela Polícia Marítima ou GNR, dependendo do local. O custo dessas licenças depende de Câmara para Câmara e os critérios para a sua atribuição também: há casos em que há licitações, outros em que é por sorteio e outros em que é pela antiguidade. Por exemplo, no Burgau, André Carmo paga cerca de 100 euros por ano; em Monte Gordo, João Urbano paga 320 euros.
João não faz aquele trabalho por necessidade, mas porque, “mal entro na praia, os problemas que possa ter desaparecem”. Faz de pai Natal no inverno e mesmo agora no verão mantém o trabalho no parque de campismo junto à praia de Monte Gordo, gerido pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, onde faz limpezas e arranja “o que for necessário”. Começa a trabalhar às 5 da manhã até interromper para se dedicar à bola de berlim. Se necessário, regressa à hora de almoço. No dia em que o Observador o acompanhou, um cliente do parque ia oferecer-lhe uma “perna de javali”.
Naquela praia, os vários vendedores — segundo João, serão 26 as licenças, pessoais e intransmissíveis, atribuídas pela Câmara — estipularam que a venda só se faz em determinados horários (entre as 12h00 e as 14h00 ninguém vende, nem antes das 10h30). O preço também foi definido pela maioria, embora João considere caro. “Dizem que para o meu fornecedor [é o mesmo de outros vendedores naquela praia] as coisas aumentaram e o fornecedor aumentou também as bolas. Depois chegámos a um acordo, falámos com o patrão e a bola fica a dois euros. Para mim continuava como estava, mas como aumentaram todos, a gente teve de fazer igual”, conta. A procura nem por isso resfriou. “Para mim compram igual. Não sei se é por ser artista da televisão ou do jornal”, brinca. E não deixa os clientes fiéis saírem sem uma, ou duas, rimas. “Bolinhas de berlim/ do chapéu mexicano / quem se vai embora hoje / boa viagem e até para o ano”; “Bolinhas do João / quando forem embora / conduzam com atenção”.
O João do Telemóvel ganhou fama e já vai à televisão
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Este ano, João Urbano já teve clientes famosos, como o Presidente da República, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, ou a ex-ministra da Saúde, Marta Temido, com quem tirou fotografias com os característicos chapéus de palha, que lhe foram oferecidos pelos clientes e o distinguem.
“Não sei se o Presidente da República quer ser mais conhecido ou não. Ele estava daquele lado de lá, porque é que veio para aqui? Sabia que estava cá eu!”, atira João do Telemóvel, assim conhecido porque, diz, foi “a primeira pessoa a ter telemóvel na praia há 30 anos”.
Já na altura tinha olho para o negócio: “Comprei um telefone de plástico que havia na “Casa dos 150″ e metia no bolso. Às vezes fingia que atendia e dizia: Ó Joaquim, traz mais 50 bolas!’. E as pessoas diziam: ‘Este gajo vende muitas’. Quando estive no Goucha, no dia 9 de agosto — dia 9 ou 10? [Olha para um cartaz que mandou fazer com o currículo televisivo] Dia 9 — contei-lhe esta”. João já não é só o João do Telemóvel, também é o João da Televisão.
Embora João trabalhe com uma fábrica que tem vários vendedores naquela praia, é quase uma marca. Mal pisa o pé na areal, ouve da tenda das massagens: “Bom dia, João. São duas de chocolate”. Mais adiante, há outros que o tratam pelo nome e por tu. “Esta senhora vem aqui ainda aquela era deste tamanho”, diz, gesticulando a altura de uma criança, sobre uma banhista que já tem, ela própria, dois filhos. Naquela manhã em que o Observador o acompanhou, vendeu tudo o que cabia nos dois cestos numa hora e meia. A camisola que veste identifica nas costas o bar de praia, que não lhe cobra nada pelos consumos em troca da “publicidade”; as saquetas que levam as bolas foram-lhe feitas gratuitamente por outra marca que nelas anuncia.
João, que paga todos os anos à Câmara uma licença de 320 euros para poder vender na praia, não quer referir quanto ganha, nem quantas bolas de berlim vende. Diz apenas que os lucros que consegue a cada dia são divididos a metade com a fábrica para a qual trabalha. Neste caso, a percentagem é definida por esse fornecedor, mas noutros casos pode haver lugar a negociação. O poder negocial pode depender da dimensão do fabricante e do vendedor ou do volume de vendas. Há, depois, casos como o de André Carmo, da praia do Burgau, em que a lógica é diferente.
André, que passou a receita da bola de berlim do sogro, com adaptações, à fábrica que produz só para ele, compra todas as bolas de berlim “normais”, sem creme. Estima que uma bola custe 30 cêntimos a produzir à sua panificadora (o preço pode depender da escala), que lhe vende a um preço superior (não quis especificar). Face ao último ano, o preço a que compra a bola subiu 15 cêntimos. Esse valor repercutiu no preço final com um extra: por exemplo, no caso da bola normal ou com creme, está a ganhar mais cinco cêntimos por bola, dado que o preço ao público subiu 20 cêntimos; nos restantes estará a ganhar mais, dependendo do recheio.
É que os recheios são comprado à parte por si, o que encarece o produto. Há recheios mais e menos caros — um balde de recheio de pistácio de 5 quilos custa-lhe 120 euros; por dois baldes de Nutella pagará à volta de 30 euros e o preço deverá subir. Em média, estima que a sua margem de lucro seja de 50 cêntimos por bola. “Para outros há de ser maior porque não vão buscá-las, não gastam combustível.” Além do investimento que diz fazer na marca. O empresário garante que não diminuiu o tamanho da bola.
André, que no resto do ano vive das roulotes de streetfood que detém e é dono do bar de uma escola, garante que não olha para a concorrência, nem define os preços consoante os outros. “Há uns anos, quando 80% das praias vendia a 1 euro e meio eu vendia mais baixo, não se justificava ainda esse preço. Depois comecei a pensar: ‘Então eu tenho uma fama do caraças, será que compram mais a mim por ser um euro ou eu é que estou a ser parvo? E passei a 1,5.”
O empresário, para quem vender bolas de berlim na praia é considerado férias, admite, também, que há “ganância” entre vendedores, que embora possam ter tido algum aumento dos custos, subiram o preço final acima disso. Fabricantes e vendedores ouvidos pelo Observador divergem na atribuição de responsabilidade pela subida dos preços.
Segundo os dados do INE relativos à inflação média dos últimos 12 meses, em julho deste ano, os preços dos produtos alimentares tinham subido 2,89% face ao mesmo mês do ano anterior. Especificamente os da categoria “açúcar, confeitaria, mel e outros produtos à base de açúcar” escalaram 8,15%. Num dos casos com que o Observador se deparou, numa bola a 2,5 euros cujo preço subiu 30 cêntimos num ano, trata-se de um aumento percentual superior, de 13,6%. Ou numa de 2 euros que antes era 1,8 são mais 11%.
Durante a crise inflacionista de 2022/2023, produtos como o açúcar ou os ovos encareceram muito. Os dados do INE mostram que em julho de 2023, face a julho de 2022, os produtos alimentares subiram 16% e na categoria do “açúcar, confeitaria, mel e outros produtos à base de açúcar” o crescimento tinha sido de 14,6%.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os preços das bolas de berlim.
Quem leva a margem?
São 6h45 da manhã, mas Felismina já está atrasada para a primeira leva de bolas de berlim do dia. Ao todo serão três, quatro ou cinco, consoante o dia e a procura. Aos 75 anos, já não aguenta muito tempo em pé, mas a primeira hora tem de ser, ainda que a custo. Junta os ingredientes na gigante batedeira, depois pesa e equilibra os montinhos de massa para outra máquina fazer as formas das bolas que irão a fritar. Há 55 anos que faz bolas de berlim e foi das primeiras pessoas a vendê-las na praia, aos 20 anos. Na altura, o processo era muito diferente: as bolas eram mais pequenas e feitas num fogão em casa. O creme só apareceu mais tarde. Amândio, o filho, conta que o creme de ovos ganhou gás para aproveitar as sobras: às bolas que não se vendiam num dia, era colocado o creme para que parecessem mais frescas no dia seguinte.
Na Altura, no concelho de Vila Real de Santo António, e anos arredores, Felismina já é bem conhecida. A bola à porta da pastelaria é vendida a 1,20 euros, o mesmo preço do que o ano passado. Na praia, fica a 2 euros (Monte Gordo) ou 1,8 na Altura. Tem vendedores próprios (o neto Miguel, que quer ficar com o negócio, é um deles) e também vende para vendedores externos. Porquê valores diferentes se a bola é a mesma? A resposta está na concorrência. Em Monte Gordo, “a maioria decidiu que era 2 euros” e é esse o preço que os vendedores como Miguel (e o João do Telemóvel) praticam. “Se ele vendesse mais barato os outros caíam-lhe em cima”, diz o pai, Amândio. Na Altura, o aumento acordado foi de apenas 10 cêntimos.
Felismina, reformada por invalidez, só trabalha no verão — os rendimentos permitem-lhe viver sem ter de trabalhar no resto do ano. O verão começou mais fraco, diz, mas agora ganha força. Por cada leva, a pastelaria faz 500 bolas de berlim, logo, por dia, pode ultrapassar as 1.500. O número já foi bem superior. É Amândio quem fica responsável pela fritura, em duas fritadeiras onde cabem dezenas de cada vez. “Amândio, tens de te despachar”, grita a esposa, Rosa, perante um primeiro choffer que acaba de chegar para recolher uma encomenda.
Amândio, de 51 anos, já o faz automaticamente: atira-as para o óleo, vira-as quando ganham cor, retira-as do cesto para escorrer o óleo. É quase mecânico. Não poucas vezes, restos de óleo lhe respingam para a pele, mas já nem se apercebe. A barriga está marcada com queimaduras que já não saem, nada que o incomode. “Isto é mais difícil aqui do que vender na praia, é muita responsabilidade. Tem de se dar assistência aos vendedores na praia, não é só fazer e já está. Há dois meses que estou aqui 12 horas por dia sem um dia de descanso”, conta. Este ano, já reduziram a produção — não que não houvesse procura, mas porque o cansaço se começa a apoderar dos corpos. Já chegaram a ter nove carrinhas na rua para distribuição, hoje têm três. Outro exemplo: hoje, usam 15 ou 20 litros de óleo por dia, mas já chegaram a gastar 50 ou 60 litros.
“Isto agora é uma amostra do que fazíamos. E para o ano reduz mais ainda, mas é que reduz mesmo. Vai reduzir para metade. Mesmo que tivesse mais pessoas, não queria. Somos de carne e osso, a minha mãe tem 75 anos.” Além de Amândio, participam no fabrico de cada encomenda a Dona Felismina, a nora e três netos. Um deles, Miguel, o que vende na praia, não devia estar ali. Mas um dos ajudantes está doente e foi preciso substituí-lo.
Amândio reconhece que é lucrativo, mas também dá muito trabalho. “A minha mãe não tinha necessidade de trabalhar, mas continuamos é para as pessoas comerem alguma coisa capaz”, diz, acrescentando que é das poucas fábricas que usa farinha em vez de preparados pré-confecionados. Amândio diz que, ali, a bola de berlim custa “no mínimo dos mínimos” 60 cêntimos a fazer, dependendo do recheio. “Eles [vendedores] pensam que a bola para a gente fica barata, por isso é que as querem comprar baratas”, atira. Felismina acrescenta: “Pode-se fazer mais barata, mas é preciso roubar coisas”. Aos vendedores, cada bola é vendida a 90 cêntimos. Rosa acrescenta: “Os vendedores aumentaram na praia, nós tivemos de aumentar um pouco mais a bola”. “Aumentámos cinco cêntimos”, atira Felismina, por sua vez. “Ou seja, eles ganham 1,10 por bola. Aqui na casa, porque nas outras ganham mais”, conclui Amândio.
E lembra que, aos lucros da pastelaria, é preciso deduzir os custos de combustível, além dos da eletricidade. Com as fritadeiras ligadas grande parte do dia, a conta da luz pode chegar aos seis mil euros por mês. “E amanhã é o último dia para pagar a Segurança Social, não me posso esquecer”, atira. “Só por duas pessoas são 666,81 euros. Isto implica muita despesa que os vendedores na praia não veem”.
Nas praias, o negócio da bola de berlim mudou muito. Se há quem prefira sempre a normal ou com o tradicional creme de ovos, os vendedores e/ou empresários tentam inovar e criar alternativas para encher o olho. André Carmo, com que iniciámos este artigo, tem de medronho e ideias para fazer uma “bola de berlim para maiores de 18 anos”, entre outros planos que quer pôr em prática. Também já estreou a bola de Peta Zetas, de algodão doce e de morango.
Mais a norte, na praia do Carvalhal, em Grândola, Cláudio Fidalgo, que tem uma marca registada (“As bolinhas do Fidalgo”), também tenta inovar — na forma como se apresenta e nos sabores. Cláudio não passa despercebido. Ao ombro tem Blue, uma arara com dois anos que só lhe fugiu uma vez — “Aos seis meses, fui apanhá-lo em cima de uma árvore” — e que vai cumprimentando e chamando a atenção a quem passa. “Olá”, vai dizendo. Em relação aos sabores, tem mais de 32: há de licor beirão, de Moscatel de Setúbal, de bolacha Maria e até de presunto e queijo, cuja autoria reivindica, embora outros também já estejam a vendê-la. A bola com recheio de maçã é vermelha por fora para que faça lembrar, precisamente, uma maçã. A de maracujá é amarelada para ter o mesmo efeito.
Cláudio está a vender, como outros vendedores naquela praia, a bola a 2,5 euros, independentemente do recheio, apesar de achar justo que fosse a dois. Mas a maioria decidiu os 2,5. No bar acima do areal está a 2,5 a simples e a três euros com creme ou Nutella. No ano passado, o preço estava a 2,20 euros no areal, mas o fabricante subiu o preço da bola em cinco cêntimos, os cremes também encareceram.
Não muito longe, na Comporta, está mais cara. Numa concessão nessa praia, pediram-lhe 15 mil euros para poder vender naquele local e com uma condição: a bola tinha de estar a 3,5 euros. “Eu achei uma exorbitância e disse que não.”
O empresário compra cada bola a 45 cêntimos a uma fábrica em Setúbal que só produz para ele, com transporte fica-lhe a cerca de 50 cêntimos. Também é ele que trata do recheio, o que, incluindo a mão de obra, pode encarecer a bola para 65/70 cêntimos. Há ainda o custo das saquetas com o seu logótipo — mandou fazer um milhão por um cêntimo e meio.
Cláudio, que diz ter aumentado o tamanho da bola de berlim, é ele próprio vendedor e tem outros a trabalhar consigo. Por cada bola que eles vendem, fica com 40 cêntimos e os vendedores com o restante. Num verão, diz que pode chegar a ganhar 54 mil euros se vender 1.500 bolas por dia, já após despesas. Já ganhou mais, mas este ano estima que possa ficar abaixo, talvez a metade — o vento não está a ajudar ao negócio, que só começou em meados de julho. É um “pé de meia”, que acumula com o emprego no resto do ano de técnico agrário. Em mente, tem vários planos de investimento turístico na zona, na recuperação do “negócio dos barcos” do sogro ou para garantir ele próprio o fabrico da bola do início ao fim. “Há pessoas que me dizem: ‘Tu ganhas dinheiro nisto e naquilo, tens necessidade?’ Mas é porque gosto.”
O “efeito manada” e os produtos “isco”
“Vimos a fila e quisemos experimentar. Pensámos que devia ser boa.” O grupo de cinco amigos vindos do País Basco prova a bola de berlim da praia do Burgau, a segunda que comem estas férias, e acenam com a cabeça em sentido positivo. À quarta dentada, um deles não está surpreendido: a que comeu no dia anterior tinha mais creme, mas esta massa é melhor. O exemplo deste grupo espelha o que na economia comportamental se apelida como “efeito de manada”, que a praia suscita por ser um ambiente exposto, explica ao Observador, a professora do ISEG e especialista em economia comportamental Sandra Maximiano.
“Não há melhor sítio para seguirmos o que os outros fazem do que a praia. Acabamos por ter vontades que intrinsecamente não teríamos. Há uma pressão grande em relação ao que os outros fazem”, explica, exemplificando com as pranchas de paddle, que se multiplicaram este ano nas praias.
Além disso, os consumidores são confrontados com o que na economia comportamental se apelida como “produtos de isco”, que são apresentados não necessariamente para serem comprados mas para levarem a consumir outros por comparação. Sandra Maximiano sabe de casos em que uma bolacha americana — que à primeira vista, deveria ser mais barata (enche menos, ocupa menos espaço nos cestos térmicos, é mais leve) — pode custar 3 euros e é mais cara do que a bola de berlim. “Olhando para o preço da bolacha americana, a bola de berlim fica a parecer barata e ainda por cima enche mais. Sabemos que a bola de berlim é cara mas compensa face ao outro produto que nos é apresentado e por isso compramos”, acrescenta.
Depois, há explicações do “âmbito racional” da microeconomia que podem ajudar a explicar a subida de preços. Hoje — e ao contrário do que acontecia há uns anos — os vendedores estão obrigados a ter licenças para poderem comercializar os seus produtos, só podendo vender num determinado espaço. Para os vendedores mais pequenos (há fábricas maiores com capacidade para terem vendedores em várias praias), o universo de clientes potencial é limitado, logo, o custo marginal que têm acaba por ser mais alto.
Além disso, trata-se de um produto que se “institucionalizou” culturalmente como um produto para comer na praia. “Até já há colónias de férias que instituem um dia em que os pais dão dinheiro aos filhos para comprarem a bola de berlim”, exemplifica. É como as pipocas no cinema: “O preço é muito caro para o custo de produção, mas há quem não vá ao cinema sem comprar pipocas”. Acresce que “somos enviesados face ao presente”. “Até podemos ter consciência de que não é a decisão mais racional, mas naquele momento momento apetece-nos e estamos a pensar naquilo.”
Outro fator que admite que pode influenciar a procura é o facto de alguns vendedores aceitarem pagamentos por MBWay ou cartão, o que pode potenciar mais consumo. “Há estudos que indicam que gastamos mais dinheiro quando pagamos com cartão do que com dinheiro, sobretudo nos pequenos custos. Temos menos perceção do custo.”
João Cerejeira, professor de economia na Universidade do Minho, diz que o preço a que se chegou parece ser o preço “de equilíbrio”, aquele em que os vendedores estão dispostos a vender e os consumidores a pagar, e que “não podemos dizer se é justo ou não”. “Se fosse mais baixo provavelmente não haveria oferta suficiente, se fosse mais caro ficavam as bolas por vender”, acrescenta.
O encarecimento das bolas segue também o da restauração, acredita. “Porque é que os portugueses estão a achar a bola de berlim mais cara este ano? É tal como a restauração, que acham mais cara”. O preço também dependerá do local em que é vendida. “Na Comporta, veem-se preços muito acima do normal no resto do território, porque é uma procura com um poder de compra maior”, exemplifica. Por isso, admite que pode haver alguma influência a puxar para cima do lado da procura, de portugueses ou estrangeiros com maior poder de compra.
Para o economista, mais do que variações nos custos das matérias-primas, os preços estarão a ser influenciados pelo fator da mão de obra. “É um trabalho difícil, provavelmente havendo restrições na oferta [de mão de obra] o salário das pessoas que estão disponíveis a vender bolas de berlim na praia será maior. E isso acaba por puxar os preços”, diz.
Mas tem a bola de berlim muita margem para subir? João Cerejeira admite que talvez não. “Há notícias de restaurantes com medo de fechar, provavelmente não haverá muito mais margem para subir, a não ser que o turismo continue a crescer muito.” Sandra Maximiano indica, por sua vez, que “há sempre margem para os preços subirem desde que haja procura”. A questão é saber se, e até quando, resistirá muito mais a procura a eventuais novos aumentos de preços, nas filas no Burgau, nos tupperware que chegam a João Urbano, nas carrinhas da Dona Felismina e no extenso areal do Carvalhal.