É um dos empresários mais ricos de Portugal, segundo as contas da Forbes, e só no dia do IPO (admissão de uma empresa em bolsa) da Farfetch, conseguiu encaixar uma fortuna superior a mil milhões de dólares. Aos 45 anos, José Neves já não é só dono daquela que foi a primeira startup portuguesa a tornar-se um unicórnio (empresa avaliada em mais de mil milhões de dólares), é dono da plataforma de comércio de moda de luxo que desde setembro está cotada na bolsa de Nova Iorque. Ao Observador, à margem do encerramento da segunda edição do “Dream Assembly” — programa de aceleração de startups que lançou no ano passado em parceria com a Burberry e Stella McCartney — falou das contas da empresa, da estreia em bolsa e da fundação à qual vai doar dois terços de tudo o que tem..
Num rooftop londrino, de ténis e t-shirt preta, José Neves explicou porque é que a duplicação dos prejuízos da empresa para 109 milhões de euros, no primeiro trimestre do ano, não o preocupa: “Seremos lucrativos quando quisermos ser lucrativos. Porque, neste momento, estamos a crescer a 50%, não há muitas empresas — são muito poucas, talvez uma ou duas no mundo — com 2 mil milhões [de dólares] de equivalente a vendas (que é o nosso GMV), mais de 500 milhões [de dólares] de receitas previstas para este ano, a crescer 50% ao ano. A nossa aposta neste momento não é na rentabilidade imediata, é em conquistar quota de mercado”.
Com um olho posto em novas áreas de negócio e outro em mercados como a China e o Médio Oriente, o empreendedor não descura o mercado nacional, ainda que a sede da empresa não esteja em Portugal. Através da Fundação José Neves, lançada por si, vai doar dois terços de tudo o que tem, no decorrer da vida, para ajudar Portugal a abraçar a nova economia digital. “Temos de apostar sobretudo na educação, porque penso que a iliteracia digital vai ser o novo analfabetismo. E com isto não estou a dizer que toda a gente devia aprender a programar, não é nada disso, acho que devíamos ter psicólogos que percebem de digital, sociólogos que percebem de digital, antropólogos que percebem de digital, todas estas disciplinas podem ser aplicadas a uma nova economia”, acrescentou. Com mais de 2 mil pessoas a trabalhar nos centros que a empresa tem no país, não tem dúvidas: “Se tivesse de começar tudo de novo, fazia exatamente igual… Acho que foi uma aposta certeira”.
José Neves. O “faz-tudo” que deu “o que tinha e o que não tinha” para lançar a Farfetch
Em setembro, faz um ano que a Farfetch foi admitida na bolsa de Nova Iorque e passou a estar numa fase completamente diferente. Quais têm sido os principais desafios desde essa altura?
Não é tão diferente assim. Penso que as empresas, estejam em bolsa ou não, são negócios, não é? São negócios, são equipas, são empresas que têm de viver com um sentido forte de missão, de cultura, de valores… Ao contrário do que as pessoas pensam, as empresas fora de bolsa têm de ter disciplina financeira tal como as que estão em bolsa, principalmente quando têm investidores, como era o nosso caso. Eu tenho — como é público — 15% da Farfetch, mas já tinha investidores que tinham 85% da empresa. E, portanto, a responsabilidade para com esses investidores existe, está lá. Acho que há um mito muito grande de que as empresas mudam depois de irem para a bolsa. Penso que algumas das empresas mais inovadoras do mundo estão em bolsa. Se pensarmos na Apple, na Netflix, no Google, Facebook, Amazon… São empresas que continuam a revolucionar o mundo e estão em bolsa.
Sem dúvida que foi uma aprendizagem muito grande. Aprendi o que é lançar uma empresa na bolsa em Nova Iorque, o que é fazer conferências de investidores, é a minha primeira vez. Do ponto de vista pessoal e profissional, foi um ano alucinante, mas super positivo. De resto, é olhar para os próximos 10 anos da Farfetch e construir o futuro que todos queremos na empresa.
Falou de disciplina financeira e a verdade é que agora há um maior escrutínio das contas. Ainda há pouco tempo saíram os últimos resultados da Farfetch, com prejuízos a duplicar (para 109 milhões de euros).
A nível de crescimento batemos todas as expectativas, crescemos 44%, 50% com ajuste cambial, e em termos de rentabilidade, ao nível do rácio que interessa aos investidores (o EBITDA), foi acima das expectativas. Se olhar para os ratings dos analistas, não descemos em nenhum rating [avaliação] de nenhum analista. A Goldman Sachs tem um rating da Farfetch de 40 dólares, não tocou no rating.
O que aconteceu foi que o valor pago em ações aos colaboradores foi ajustado à performance da Farfetch na bolsa. Como as ações no fecho daquele trimestre tinham subido bastante, o valor contabilizado de share-based payments foi superior ao esperado. Portanto, se for ver, grande parte dos resultados negativos vem deste share-based payments, são as opções, as ações. Não é dinheiro que saiu da empresa para fornecedores, é a nossa compensação [para os colaboradores]. Temos um esquema que se chama “Farfetch for all”, no qual todos os funcionários da Farfetch, desde a nossa rececionista até ao nosso CFO, são acionistas da empresa — essas ações estão atribuídas e, ao subirem e descerem, vão impactar a linha final dos resultados. Isso não alterou em nada a forma como o mercado viu. É claro que as pessoas vão ver a última linha do comunicado de imprensa e vêm o dobro do ano passado, mas não tem nada a ver.
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Então, não está preocupado?
Não, nada, nada. Se fosse de preocupar os analistas teriam descido o rating. Obviamente, os mercados estão complicados com estas questões macroeconómicas da China e do Trump, mas ao nível daquilo que são [as bases] fundamentais da empresa, estamos a entregar exatamente aquilo que dissemos que íamos entregar.
Já temos uma Farfetch unicórnio (a valer mais de mil milhões de dólares), uma Farfetch cotada na bolsa nova-iorquina. Para quando uma Farfetch lucrativa, sem prejuízos na equação?
Seremos lucrativos quando quisermos ser lucrativos. Porque, neste momento, estamos a crescer a 50%, não há muitas empresas — são muito poucas, talvez uma ou duas no mundo — com 2 mil milhões [de dólares] de equivalente a vendas (que é o nosso GMV), mais de 500 milhões [de dólares] de receitas previstas para este ano, a crescer 50% ao ano. A nossa aposta neste momento não é na rentabilidade imediata, é em conquistar quota de mercado e em continuarmos nesta rampa de crescimento, porque temos meios financeiros para isso, temos zero de dívidas, portanto não temos quaisquer dívidas no balanço. Temos os meios financeiros para isso e é isso que os nossos investidores querem que façamos, que é crescer. Se nós quiséssemos crescer um pouquinho menos, imediatamente… E é isso que cria confiança nos investidores. Eles veem através das contas da empresa que é uma aposta deliberada que estamos a fazer no crescimento.
Ou seja, se fossem menos ambiciosos e quisessem crescer menos a Farfetch já seria lucrativa?
Claro, obviamente.
Ainda pensa que é preciso explicar às pessoas que a lógica do investimento em capital de risco é diferente da de outras empresas, de outras áreas?
Penso que é uma conversa que podemos sempre ter. Se pensarmos na Amazon, foi uma empresa que apresentou lucros oito anos depois de ser cotada em bolsa, se formos a ver os casos do Facebook, Netflix, Google, etc, isto é um padrão que os investidores já viram… Portanto, os investidores são bem claros no que querem que a nossa estratégia seja: não são eles que definem a estratégia, somos nós, obviamente, mas são bem claros no apoio a essa estratégia e é isso que nós prometemos e que estamos a executar.
Falou em crescer e têm lançado várias áreas de negócio, como a da revenda de malas. Para onde é que a Farfetch pode crescer mais?
Acho que há tantas áreas de crescimento. Temos primeiro os mercados internacionais, a China, onde fizemos um investimento tremendo: temos 300 colaboradores na China em três escritórios: Xangai, Hong Kong e Pequim. É o nosso segundo maior mercado já, está com um crescimento super acelerado, mas estamos a falar de um mercado gigantesco. Somos uma gota num oceano. O mercado do Médio Oriente, que lançámos há um ano e no qual fizemos um investimento imenso com uma equipa local, um escritório local, o site em árabe com serviço para todos os países da região. Esse crescimento internacional vai continuar a ser um dos vetores de crescimento da empresa e depois novas categorias, obviamente, adquirimos a Stadium Goods [por 250 milhões de dólares], estamos na categoria de revenda de sapatilhas. A questão das malas está ligada à sustentabilidade, mas que para nós também é uma oportunidade de negócio. Existem muitas áreas, muito por fazer… Quer a expansão de categorias, quer a expansão de mercados, quer no negócio principal, porque somos uma empresa com 2 mil milhões de vendas num mercado de 300 mil milhões. Portanto, temos muito por crescer.
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Ser CEO da Farfetch há cinco anos e ser agora, em 2019, é completamente diferente. O que é mais difícil hoje?
As dificuldades são como a vida… Passamos por várias fases da nossa vida e, pessoalmente, não acho que consigamos dizer que uma fase é mais difícil que outra, há dias melhores, dias piores. Para mim, o mais importante é desenvolvermo-nos como profissionais, como seres humanos, e que estejamos sempre a aprender. É isso que continuo a aprender todos os dias. Dizem que os IPO são stressantes, é óbvio que são, há muita pressão. Mas também é uma oportunidade única. Nós temos de ser gratos pelas oportunidades que temos. Tenho uma gratidão enorme por estar no negócio em que sempre quis estar.
Sempre quis ter uma empresa de tecnologia, tenho uma empresa de tecnologia, sempre quis estar no negócio da moda, num cruzamento entre tecnologia e moda e revolucionar um setor e uma arte que eu amo, a moda, e é isso que estou a fazer. Sempre quis trabalhar com um grupo de gente fantástica, genial, revolucionária e inovadora e consegui. Portanto, acho que temos de celebrar essas prendas que caem assim do céu aos trambolhões e não nos queixarmos muito das dificuldades do dia a dia, porque essas somos nós que pedimos, somos nós que as chamamos, porque quem tem responsabilidades também tem problemas.
Já cumpriu com todos estes objetivos. O que é que lhe falta fazer ainda?
Falta fazer muito. A plataforma está criada, é o capítulo 1 da nossa plataforma, falta criar o capítulo 2 nos próximos 10 anos. Há muito por fazer… Se perguntar a qualquer engenheiro da Farfetch, eles vão dizer-lhe que temos milhares, literalmente milhares… Nós temos mais de 120 equipas de engenharia, todas elas com múltiplos projetos, portanto, nós vemos oportunidades em muitas áreas de negócio. Nos dados, por exemplo. Na nossa plataforma de dados e de data science, machine learning, inteligência artificial, na qual vamos fazer uma aposta muito grande… Inovação, da qual faz parte a “Dream Assembly”, a Sustentabilidade, que é um programa que lançámos este anos, novos mercados, expansão nos mercados em que apenas acabámos de começar, é uma lista que nunca mais acaba.
Algum plano específico para Portugal?
Vamos construir o campus do Porto e queremos que seja um dos edifícios mais sustentáveis da Europa. Com certeza, aderindo aos procedimentos mais conhecidos mas com um enfoque muito grande em sermos inovadores na sustentabilidade, penso que vamos continuar a apostar no país, em Portugal. Já temos mais de 2 mil colaboradores em Portugal, é mais de metade do universo da Farfetch. Se tivesse de começar tudo de novo, fazia exatamente igual… Acho que foi uma aposta certeira. A nível pessoal, lancei uma fundação em Portugal à qual me comprometi em doar dois terços de tudo o que tenho, no decorrer da minha vida, precisamente para ajudar Portugal a abraçar esta nova economia digital, formar mais quadros.
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Como se chama a fundação?
Tem um nome muito original, chama-se Fundação José Neves. [risos] Depois de ter estado durante 20 e tal anos a criar nomes para marcas, resolvi usar o meu. E vai dedicar-se a apoiar uma geração para tornar Portugal numa economia do conhecimento. Nós não temos recursos naturais, muito poucos, temos algum turismo, mas realmente temos de apostar para vencer as batalhas do emprego e do desenvolvimento humano, temos de apostar sobretudo na educação, porque penso que a iliteracia digital vai ser o novo analfabetismo. E com isto não estou a dizer que toda a gente devia aprender a programar, não é nada disso, acho que devíamos ter psicólogos que percebem de digital, sociólogos que percebem de digital, antropólogos que percebem de digital, todas estas disciplinas podem ser aplicadas a uma nova economia, mas sem dúvida que, antes de tudo, precisamos de muitos engenheiros, de muitos cientistas de dados e as universidades não conseguem ter mãos a medir, não conseguem ter o output necessário. A Fundação vai intervir nessa área, na área da educação e das competências digitais, numa série de iniciativas que depois vamos anunciar mais para o final do ano.
Isto é para devolver à comunidade alguma coisa? Agora que já está nesta fase da sua vida sente necessidade de contribuir, de dar algo ao país?
Sem dúvida. Penso que o “Dream Assembly” foi a forma de o fazer na Farfetch, ou seja, como é que nós podemos retribuir a startups que estão agora a começar a jornada que nós começámos há 10 anos, contribuir com aquilo que aprendemos, com a nossa rede de contactos, com boutiques, com marcas, a nossa logística, a nossa experiência internacional, ou seja, com tudo o que sabemos. Eles têm portas abertas em Lisboa, no Porto, em Londres, falam com toda a gente da empresa, com uma série de mentores em todas as áreas, mas também é mútuo, é muito interessante, porque o que nós recebemos em troca, além de ideias e de inovação é uma energia e um empreendedorismo que é interessante que a gente ao longo do tempo vai perdendo e depois vemos esta juventude, esta malta que está a criar empresas agora e que crê que vai conseguir mudar o mundo. E isso é extremamente inspirador.
Isso é o feedback que tenho das minhas equipas, do Cipriano, que está comigo há 25 anos e que começou a Farfetch desde o dia 1 é ótimo sentarmo-nos com estas startups e ver o mundo com os olhos completamente novos e frescos e isso também nos inspira. Há aqui uma troca, não somos só nós a retribuir às startups, mas também recebemos delas essa energia muito especial. E as ideias.
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E além da “Dream Assembly”, pensam em investir em mais projetos, lançar um fundo de investimento, comprar startups?
Temos feito alguns investimentos, comprámos algumas startups, somos muito exigentes nesses critérios. Literalmente vemos centenas de planos de negócio e de startups e temos uma equipa que está constantemente no mercado, não temos uma estratégia de conhecimento inorgânico, é absolutamente orgânico, mas se aparecerem boas oportunidades é óbvio que as vamos agarrar.
Naquele dia do IPO, em que viu a bandeira de Portugal na bolsa de Nova Iorque, o que é que o marcou mais?
É um dia memorável. Primeiro, acho que foi uma jornada pessoal importante, foi a primeira vez que lancei uma empresa em bolsa, ainda para mais nos EUA, na bolsa de Nova Iorque, que é bastante emblemática. Mas, para mim, estar ali com as 14 pessoas que estavam no pódio, quando tocámos a campainha, que começaram a empresa comigo, alguns desde o início, outros ao longo da jornada, com transmissão em direto para todos os escritórios da Farfetch. Também convidámos as boutiques a estar presentes no evento, tivemos boutiques que vieram, para mim foi uma vitória coletiva. Foi realmente uma vitória coletiva e um sentimento de que poderíamos estar também a inspirar outras empresas em Portugal, mas também pelo mundo fora. Acontece com muito trabalho, muito suor, um bocadinho de inspiração, mas é possível atingirmos os objetivos, mesmo quando eles parecem inimagináveis no início.
Têm diversificado a vossa área de negócio com tudo isto de que já falámos. Tem receio de que o mercado da moda de luxo se esgote? É possível?
Não, acho que não. A moda é um fenómeno cultural, tal como o cinema, a música ou a arquitetura. Em qualquer civilização, a moda foi sempre uma forma de o ser humano navegar entre dois desejos universais — o de pertencer e o de se individualizar. E isso é inerente à natureza humana, portanto, nós podemos pertencer a uma comunidade, temos de ser aceites primeiro na nossa família, depois na nossa escola, depois uma tribo — seja a dos surfistas, a dos góticos, não sei –, mas nesse grupo queremos ser aceites como indivíduos, como nós próprios. E a moda navega essas duas tensões humanas que por vezes estão em conflito, esses dois desejos universais.
Penso que vai ser sempre uma expressão cultural e que o mercado vai mudar, com certeza, existe uma expectativa do consumidor de que as empresas têm de ser muito mais sustentáveis, têm de produzir menos e ajustar melhor a oferta e a procura, para haver menos desperdício, tem de produzir coisas de maior qualidade para durarem mais, têm de reciclar as coisas que produzem e temos nós próprios de criar uma economia circular e isso vai impactar o setor, porque o setor não está feito para isso, mas penso que isso é positivo. Em relação à moda como cultura se tornar menos importante, vejo o contrário. Vemos países como a China em que há uma explosão de interesse pela moda precisamente porque é um país extremamente coletivista, com uma identidade muito forte, em que as pessoas querem ser individuais… Portanto, eu penso que faz parte da natureza humana.
Agora que a Farfetch é uma empresa cotada, qual é a pior coisa que poderia acontecer?
Não penso nessas coisas. Acho que existem coisas perigosas e que existem riscos. Riscos todos temos de correr, porque quem não arrisca não petisca. Numas vezes acertamos, noutras falhamos. Perigos? Não há perigos. Nós não estamos a salvar vidas nem a colocar as nossas vidas em risco, portanto, nisso, tenho uma atitude muito tranquila e também em relação à minha equipa. Temos uma equipa fortíssima, uma cultura de valores muito, muito forte. E o ser humano tem uma grande capacidade de adaptação. Se nós tivermos uma boa equipa com uma boa cultura e uns bons valores, o que vier aí, de uma forma ou de outra, com mais ou menos obstáculos, vamos ultrapassar.
*O Observador viajou até Londres a convite da Farfetch.