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Minaretes de Meca em contraluz. Meca terá sido o local de nascimento de Maomé.
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Minaretes de Meca em contraluz. Meca terá sido o local de nascimento de Maomé.

ROSLAN RAHMAN/AFP/Getty Images

Minaretes de Meca em contraluz. Meca terá sido o local de nascimento de Maomé.

ROSLAN RAHMAN/AFP/Getty Images

O primeiro muçulmano: a história de Maomé

É um dos homens mais importantes da história das religiões, mas ninguém sabe onde está a verdade e a lenda na vida de Maomé. Lesley Hazleton dá-nos muitas pistas num livro de que publicamos um extrato

Pré-publicação do primeiro capítulo e de parte do segundo de “O primeiro muçulmano: a história de Maomé”, de Lesley Hazleton:

Se não estivesse sozinho de vigília na montanha, poderia dizer‑se que nada nele denotava algo de invulgar. As fontes mais antigas descrevem‑no com uma imprecisão irritante para aqueles que precisam de imagens. «Não era alto nem baixo», dizem. «Nem moreno nem louro.» «Nem magro nem robusto.» Porém, aqui e ali, há pormenores específicos que se insinuam, e quando o fazem são surpreendentes. Um homem que passa noite após noite em meditação solitária deveria ser certamente uma figura magra e ascética; contudo, longe de ser pálido e débil, ele tinha as faces bochechudas e coradas, e a pele rosada. Era senhor de uma sólida constituição e de um volumoso tórax, uma das possíveis razões para a sua característica forma de andar, sempre «inclinando‑se ligeiramente para a frente, como se se apressasse em direção a alguma coisa». E devia padecer de torcicolo, porque as pessoas recordariam mais tarde que virava o corpo todo e não apenas a cabeça quando se voltava para as olhar.

O único sentido em que podia ser convencionalmente considerado um homem bonito prendia‑se com o seu perfil: o nariz adunco de falcão, há muito considerado um sinal de nobreza no Médio Oriente.

Exteriormente, poderia concluir‑se que era um vulgar habitante de Meca. Filho de um homem que nunca vira, aos quarenta anos já tinha subido na vida muito mais do que alguma vez pensara. A criança nascida como um forasteiro na sociedade em que vivia tinha finalmente sido aceite e, contra todas as probabilidades, usufruía de uma vida próspera. Era um agente comercial abastado e respeitado pelos seus pares, com um casamento feliz.

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Não sendo um dos chefes da sua próspera cidade, era precisamente por isso que as pessoas confiavam nele para defender os seus interesses.

Viam‑no como um homem que não zelava apenas pelos seus interesses, um homem capaz de ponderar uma oferta ou um litígio com base nos respetivos méritos e de agir em conformidade. Tinha encontrado um nicho seguro no mundo e, chegado à meia‑idade, adquirira todo o direito a recostar‑se e gozar a sua ascensão à respeitabilidade. Mas então que fazia ele ali sozinho, numa das montanhas que cercam a cidade adormecida lá em baixo? Por que razão um homem bem casado se isolaria assim, velando toda a noite em meditação?

A sua roupa, porventura, fornecia um indício. Por essa altura, ele podia certamente dar‑se ao luxo de usar as elaboradas sedas bordadas dos ricos, mas o seu vestuário era modesto. As sandálias eram usadas, com as correias de couro crestadas pelo sol mais pálidas do que os pés. A túnica singela estaria puída se não tivesse sido remendada com tanto cuidado, e mal lhe servia para se proteger do frio noturno em pleno deserto. Contudo, havia algo no modo como ele se destacava na encosta da montanha que tornava o frio irrelevante. 

Ligeiramente curvado para diante, como que inclinando‑se contra o vento, a sua postura parecia a de alguém que existia em diagonal com a terra.

Definitivamente, lá de cima, um homem via o mundo de uma maneira diferente. Podia encontrar paz no silêncio, tendo por única companhia o sussurro do vento sobre a rocha, longe das inimizades e mexericos da cidade com as suas discussões sobre dinheiro e poder. Ali, um homem não passava de uma mera partícula na paisagem montanhosa, com o espírito livre para pensar e refletir, e por fim com o espírito livre para parar de pensar e refletir e submeter‑se à imensidão.

Olhando melhor, talvez fosse possível detetar no canto dos olhos a sombra da solidão, algo que ali ficou do forasteiro que ele tinha sido outrora, como se vivesse perseguido pela consciência de que tudo o que se esforçara tanto por alcançar lhe podia ser retirado a qualquer momento. Talvez se vislumbrasse na sua boca um laivo dessa mesma mistura de vulnerabilidade e determinação, com os lábios grossos ligeiramente abertos como se sussurrassem à escuridão. E então talvez ocorresse perguntar porque é que o bem‑estar não lhe bastava. Seria o ter custado tanto a alcançar que o impedia de aceitá‑lo como um dado adquirido, nunca certo do seu direito a usufruir dele? Mas então o que o faria aceitar? O que procurava? Seria uma certa paz dentro de si? Ou seria algo mais: um vislumbre, talvez apenas uma sugestão de algo maior? Uma coisa é certa: segundo o relato do próprio, Maomé não estava de todo preparado para a dimensão do que iria viver nessa noite do ano 610.

Um ser humano depara‑se com o divino: para o racionalista, não é assunto que envolva factos, antes uma ficção ilusória. Portanto, se Maomé se tivesse comportado como seria de esperar após o primeiro encontro no monte Hira, faria sentido chamar à história isso mesmo: uma fábula criada pela devoção e pela fé. Porém, Maomé não o fez.

Não flutuou montanha abaixo como se caminhasse no ar. Não desceu a gritar «aleluia» e «louvado seja o Senhor». Não irradiou luz e alegria. Não houve coros angelicais nem música dos céus. Não houve exaltação, ou êxtase, ou uma aura dourada à sua volta. Nenhuma compreensão do seu papel absoluto, predestinado e inquestionável enquanto mensageiro de Deus. Nem sequer o Alcorão foi revelado por inteiro, mas apenas alguns breves versículos. Resumindo, Maomé não fez nenhuma das coisas que podem parecer essenciais à lenda de um homem que acabava de fazer o impossível, cruzando a fronteira entre este mundo e outro: nenhuma das coisas que tornariam fácil denunciá‑lo, denegrir toda a história como uma invenção, uma fachada para algo tão mundano como um delírio ou a ambição pessoal.

Pelo contrário, ele estava convencido de que aquilo com que se deparara não era real. Na melhor das hipóteses, seria uma alucinação: uma ilusão ótica ou auditiva, ou a sua própria mente a confundi‑lo. Na pior, estaria possuído, tomado por um maléfico jinn, um espírito determinado a enganá‑lo, quiçá a tirar‑lhe a vida. Na verdade, estava tão certo de que só podia estar majnun, literalmente possuído por um jinn, que, quando deu por si ainda vivo, a sua primeira reação tinha sido acabar com aquilo sozinho, saltar da ravina mais alta e fugir ao terror do que tinha vivido, pondo termo de uma vez à vida.

Portanto, o homem que correu pelo monte Hira abaixo não tremia de alegria, mas de um medo absoluto, primordial. O que o dominava não era a certeza, mas a dúvida.

Só estava certo de uma coisa: o que quer que aquilo fosse, não se destinava a ele. Não a um homem de meia‑idade que, quando muito, esperava um simples momento de graça e não aquele fardo ofuscante da revelação. Se já não temia pela vida, temia certamente pela sua sanidade mental, dolorosamente consciente de que tantas noites de meditação solitária podiam tê‑lo enlouquecido.

O que quer que tenha acontecido no cimo do monte Hira, a pura humanidade da reação de Maomé pode ser o argumento mais forte a favor da sua realidade histórica. Tenham as palavras que ouviu vindo de dentro ou de fora de si, é ponto assente que Maomé as viveu, e com uma força que iria despedaçar o seu sentido de identidade e o seu mundo. O terror era a única reação sã. O terror e a negação. E, se agora achamos essa reação inesperada, até chocante, isso é apenas reflexo de como fomos enganados pela imagem estereotipada de uma bem‑aventurança extática plena de misticismo.

Pondo de lado por instantes semelhantes noções preconcebidas, compreende‑se que o terror de Maomé se refere à experiência real. Soa indubitavelmente a humano — demasiado humano para alguns, como os teólogos muçulmanos conservadores que defendem que o relato da sua tentativa de suicídio não devia sequer ser referido, embora conste das mais antigas biografias islâmicas.

Insistem que Maomé nem por instantes duvidou, e muito menos desesperou. Ao exigirem a perfeição, não podem tolerar a imperfeição humana.

Talvez por isso seja tão difícil perceber quem foi realmente Maomé. A pureza da perfeição contraria a complexidade de uma vida vivida. Para os muçulmanos espalhados pelo mundo, Maomé é o homem ideal, o profeta, o mensageiro de Deus, e, embora no Alcorão ele seja repetidamente citado como tendo dito «sou apenas um de vós» — apenas um homem —, a reverência e o amor não resistem à vontade de o vestir, por assim dizer, de ouro e prata.

Há um sentimento de propriedade em relação a ele, um desejo feroz de o proteger, ainda mais fortalecido numa altura em que o próprio islão se encontra sob intenso escrutínio no Ocidente.

Porém, há consequências involuntárias. De certa forma, idealizar uma pessoa também é desumanizá‑la, e por isso, apesar dos milhões — senão milhares de milhões — de palavras escritas sobre Maomé, pode ser difícil fazer uma ideia real do homem em si. Quanto mais lemos, mais somos levados a ter a sensação de que, embora se saiba muito acerca de Maomé, continuamos sem saber quem ele era. Como se tivesse ficado completamente ocultado pela acumulação de tantas palavras.

Embora sejam muitas vezes magníficas, as lendas que o veneram funcionam porventura como todas as lendas: encobrem mais do que revelam, e Maomé torna‑se mais um símbolo do que um ser humano.

Mesmo com o islão a aproximar‑se rapidamente da cristandade enquanto maior religião do mundo, sabemos realmente muito pouco do homem que, segundo o Alcorão, assume por três vezes ser «o primeiro dos muçulmanos» (Alcorão 6:14.163; 39:12). A sua vida foi sem dúvida uma das que mais consequências tiveram, mas, apesar de todo o poder icónico do seu nome — ou talvez por causa dele —, é uma vida ainda por explorar.

Como é que este homem, que na infância foi marginalizado na sociedade em que vivia («um homem sem importância», chamam‑lhe os detratores no Alcorão 43:31), acabou por revolucionar o seu mundo? Como é que a criança enviada para longe da família amadureceu até redefinir todo o conceito de família e tribo numa unidade muito mais vasta, a umma, ou seja, o povo ou a comunidade do islão? Como é que um mercador conseguiu repensar radicalmente a ideia tanto de Deus como da sociedade, desafiando frontalmente a ordem social e política estabelecida? Como é que o homem escorraçado de Meca transformou o exílio num novo começo vitorioso, para depois ser acolhido de volta como um herói nacional apenas oito anos passados? Como é que, apesar de tantas desvantagens, ele foi bem‑sucedido?
A resposta a semelhantes perguntas exige o exercício do privilégio e do verdadeiro propósito do biógrafo, que não é meramente acompanhar o que sucedeu, mas revelar o significado e a relevância no meio do tumulto de acontecimentos. Significa religar os elementos complexos da vida de Maomé, criando um retrato a três dimensões, não tanto em desacordo com a versão «autorizada», antes expandindo‑a.

Na sua obra The Idea of History, o grande filósofo e historiador britânico R. G. Collingwood sustentou que, para escrever corretamente sobre uma figura histórica, é preciso empatia e imaginação. Com isso, não se referia a inventar histórias por tudo e por nada, mas a pegar no que é conhecido e examiná‑lo no seu pleno contexto espaço-temporal, seguindo os fios da história até que comecem a entrelaçar‑se e a estabelecer uma robusta trança de realidade. Se quisermos compreender a dinâmica do que só pode ser descrito, com considerável contenção, como uma vida notável — uma vida que viria a mudar radicalmente o seu mundo e que continua a moldar o nosso —, temos de conceder a Maomé a realidade integral e vê‑lo por inteiro.

A sua história é uma extraordinária confluência de homem, tempo e cultura, e leva‑nos a uma pergunta enganadoramente simples: porquê ele? Porquê Maomé, no século VII, na Arábia?

Pensar nestes termos é emocionante, mas também pode ser avassalador. Por um lado, tais perguntas conduzem diretamente a um autêntico campo minado de crenças profundamente enraizadas, preconceitos inconscientes e conjeturas culturais. Por outro, permitem‑nos ver claramente Maomé e compreender como levou a cabo a sua viagem, da submissão ao poder, do anonimato à celebridade, da insignificância à significância eterna.

Invariavelmente, as referências que acompanham a sua vida são duas antigas histórias islâmicas: a extensa biografia escrita em Damasco no século VIII por Ibn Ishaq, na qual todas as posteriores biografias afirmam basear‑se, e a História do islão primitivo escrita em Bagdade em finais do século ix por Al‑Tabari, uma obra mais centrada no plano político e que, traduzida, perfaz trinta e nove magistrais volumes, quatro dos quais dedicados à vida de Maomé.

Estes antigos historiadores são conscienciosos. A sua autoridade reside na capacidade de inclusão que demonstram. Escreveram após os factos, trabalhando a história oral perfeitamente cientes de que tanto o tempo como a devoção tendem a distorcer a memória, desfocando a linha divisória entre o que foi e o que devia ter sido.

Se erraram, mais do que por uma questão de bom senso, foi deliberadamente em busca de rigor. Ao lê‑los, sente‑se que estão conscientes da ténue fronteira entre a sua responsabilidade para com a História, por um lado, e a tradição, por outro. Este frágil exercício de equilíbrio entre História e fé alia‑se à sua constatação do caráter elusivo do facto definitivo — uma qualidade tão enganadora no hiperdocumentado mundo de hoje como na tradição oral daquele tempo. Portanto, em vez de aspirarem à omnisciência, eles incluíram relatos contraditórios e deixaram a decisão aos leitores, embora manifestassem os seus pontos de vista. Ao longo da obra de Ibn Ishaq, por exemplo, há frases como «diz‑se que» e «segundo me disseram». Na verdade, quando vários relatos de testemunhas oculares parecem contradizer‑se, ele muitas vezes resume a questão com «qual estará correto, só Deus sabe ao certo» — uma declaração que mais se aproxima de um desesperado «sabe Deus!».
Talvez só sobre Jesus se tenha escrito tanto, embora a sua vida permaneça igualmente misteriosa. Porém, graças aos esforços de grupos de eruditos como o Seminário sobre Jesus, de Robert Funk2, novos estudos exploraram, nas últimas décadas, mais além dos relatos literais dos Evangelhos, para criarem não só um retrato mais humano dele, mas também uma compreensão mais profunda do seu impacto. Mais do que o alcance teológico, esses eruditos investigaram os domínios da História, da ciência política, da religião comparada e da psicologia, destacando a relevância política radical da mensagem de Jesus. Olhando‑o no contexto do seu tempo, não o tornaram menos relevante para o nosso, pelo contrário.

Os paralelos entre Maomé e Jesus são impressionantes. Ambos eram movidos por um forte sentido de justiça social; ambos enfatizaram o acesso direto ao divino; ambos desafiaram as estruturas do poder estabelecido nas suas épocas. 

Como no caso de Jesus, a teologia e a História viajam lado a lado em qualquer relato da vida de Maomé, às vezes tão próximas como os carris do comboio, outras largamente divergentes. Os contos sobre milagres abundam, empolando a tradição sagrada construída por quem gosta do que devia ter acontecido mesmo que não tenha acontecido. Apesar de o Alcorão repudiá‑lo com insistência (por exemplo, 17:90–97), parece existir uma necessidade muito humana do miraculoso, e de a teologia exigir fé no improvável — no impossível — como teste de dedicação.

Por conseguinte, a tradição islâmica conservadora sustenta que Maomé estava destinado desde o princípio a ser o mensageiro de Deus. Mas, se assim for, não há nenhuma história da sua vida, que passa a estar intimamente ligada à inevitável demonstração da vontade divina, logo, desprovida de qualquer conflito ou tensão. Para alguns crentes devotos, isso é mais do que suficiente; a excecionalidade inata do profeta é um dado adquirido e qualquer biografia é irrelevante. Porém, para muitos outros, o que é emocionante não é o miraculoso, mas o humanamente possível. A vida de Maomé é uma daquelas raras existências que são mais impressionantes na realidade do que na lenda.

Com efeito, quanto menos se invoca o miraculoso, mais extraordinária se torna a sua vida. O que emerge é algo mais grandioso, precisamente porque é humano, a ponto de a sua vida real se revelar digna da palavra lendária.

A sua história segue o curso clássico do que Joseph Campbell, em The Hero with a Thousand Faces, designou «o trajeto do herói», desde os inícios pouco auspiciosos até à plenitude do êxito. Mas tal trajeto nunca é fácil: implica luta, perigo e conflito, tanto no íntimo de quem o percorre como em relação aos outros. Por isso, suprimir os aspetos mais controversos da vida de Maomé não o beneficia de modo nenhum; pelo contrário, se quisermos atribuir‑lhe a vitalidade e a complexidade de um homem pleno, precisamos de vê‑lo por inteiro. Isso significa adotar o que pode ser designado como uma postura agnóstica, deixando de fora a devoção e a reverência, por um lado, e o estereótipo e o moralismo, por outro, sem falar da entediante cortina de circunspeção que fica no meio. Significa encontrar a autêntica narrativa humana de um homem que navega entre idealismo e pragmatismo, fé e política, não‑violência e violência, exposto às armadilhas do aplauso bem como aos perigos da rejeição.

O ponto crucial da sua vida é, sem dúvida, aquela noite no monte Hira. Foi então que ele acedeu ao que muitos entendem como o seu destino, e é por isso que os muçulmanos lhe chamam laylat al‑qadr, a Noite do Poder (Alcorão 97:1–5).

Foi certamente nesse momento que ele entrou na História, embora também essa palavra possa ser enganadora, pois implica que a história de Maomé pertence ao passado, quando de facto continua a ter tal impacto, que deve ser vista à luz tanto dos acontecimentos atuais como da História. O que aconteceu «nessa altura» é parte integrante do que ainda está a acontecer, um fator dominante na vasta e muitas vezes aterradora arena em que a política e a religião se intercetam.

Contudo, para começar a compreender este homem que lutou com o anjo no alto da montanha e desceu traumatizado pelo encontro, é preciso perguntar não só o que aconteceu naquela noite no monte Hira e ao que isso levaria posteriormente, mas também o que o levou até lá. Sobretudo porque, apesar das lendas, os sinais não eram promissores desde o início.

De facto, qualquer observador objetivo podia ter concluído que Maomé era um candidato muito pouco provável à função de profeta, já que, fossem quais fossem as estrelas sob as quais nasceu, pareciam tudo menos auspiciosas.

Para quem acredita em presságios, Maomé ter nascido órfão não é um bom sinal. A maior parte dos biógrafos menospreza tal circunstância, passando rapidamente adiante como se se tratasse de um equívoco do destino sobre o qual não vale a pena insistir. Contudo, a orfandade de Maomé carrega o peso psicológico que muitas vezes determina a História. Sobretudo porque, a crer na lenda do seu nascimento, ele esteve quase para não nascer. Horas antes de ser concebido, o seu avô quase matou o seu pai. E, embora o pai tivesse sido poupado apenas o tempo suficiente para desempenhar o seu papel singular, morreria depois longe de casa, sem sequer saber que tinha um filho.

O avô era Abd al‑Muttalib, venerável chefe da tribo dominante coraixita e figura central na breve mas espetacular tradição de Meca. Ainda jovem, tinha cavado o poço de Zamzam, uma nascente de água potável precisamente junto ao santuário da Caaba, que atraía peregrinos de toda a Arábia. Tanto quanto todos se lembravam, sempre tinham circulado rumores sobre a existência da nascente. Alguns diziam que fora descoberta pela primeira vez por Hagar depois de dar à luz Ismael e logo aproveitada por Abraão, para depois ser abandonada e tapada ao longo de séculos, ficando a sua localização esquecida até Abd al‑Muttalib a redescobrir. Alegadamente, ocorreram coisas milagrosas de toda a espécie quando ele abriu o poço. Segundo algumas narrativas, uma cobra guardava o acesso com tanta ferocidade, que ninguém ousava aproximar‑se, até que uma águia gigante desceu em voo picado e a capturou, levando‑a. Outros insistiam que tinha sido encontrada uma grande quantidade de tesouros na nascente, desde espadas refinadamente fundidas e cravejadas de joias até gazelas em tamanho natural feitas de ouro maciço. Mas o relato de longe mais chocante é assombrosamente familiar para quem conhece a história bíblica do quase sacrifício do filho de Abraão.

Tendo sido ele a redescobrir Zamzam, Abd al‑Muttalib proclamou que o lucrativo monopólio da venda de água aos peregrinos pertencia ao seu clã, os hachemitas, uma das quatro famílias alargadas que primeiro se agruparam para formar a tribo coraixita. Evidentemente, havia outras nascentes em Meca, mas nenhuma tinha uma localização tão central, uma água tão boa ou uma lenda tão poderosa. Por isso, ninguém se espantou quando os outros chefes de clãs coraixitas desafiaram a reivindicação de Abd al‑Muttalib sobre o controlo da água, questionando desse modo tanto os seus motivos como a sua honra. O que de facto espantou as pessoas foi a sua reação, ao silenciar os detratores com um juramento aterrador.

Jurou que, se tivesse dez filhos que sobrevivessem até à maturidade para o proteger e erguer bem alto a honra dos hachemitas, sacrificaria um deles mesmo ali junto à nascente, no recinto aberto que rodeia a Caaba.

O juramento fez que os críticos se calassem, intimidados. A ideia do sacrifício humano era aterradora, tanto mais que a prática tinha certamente cessado com a lenda ancestral de Abraão e Ismael. Não seria por isso que se dizia que a única coisa existente no interior proibido da Caaba eram os cornos do bode que tomara o lugar de Ismael naquele ato primordial de sacrifício? Além disso, não havia dúvidas de que conseguir criar dez filhos seria um extraordinário sinal de favorecimento divino.

Independentemente do número de esposas que um homem tivesse, a frequência de mortalidade infantil e de óbitos maternos durante o parto tornava quase impossível tal abundância de descendentes.

Contudo, pelo ano 570, dez filhos de Abd al‑Muttalib tinham realmente sobrevivido. E, segundo Ibn Ishaq, em enorme esplendor. «Não havia nenhuns mais destacados e imponentes do que eles, nem de mais nobre perfil, com narizes tão compridos, que o nariz bebia antes dos lábios», escreveria o historiador, celebrando a característica facial mais admirada numa sociedade que desprezava narizes arrebitados, considerando‑os tão efeminados como a pele pálida dos gregos bizantinos, ironicamente chamados amarelos.

Chegara o momento de Abd al‑Muttalib cumprir o juramento. A palavra de um homem era sagrada, e ele tinha dado a sua. Se quisesse continuar a viver de cabeça erguida, não tinha outra opção. A única questão era decidir qual filho sacrificar e, sendo essa uma escolha impossível para qualquer pai, a tradição iria decidir por ele. Pediria conselho ao ícone totémico da tribo coraixita: a pedra sagrada de Hubal, que se erguia ao lado da Caaba e funcionava como uma espécie de pedra de consagração. Aos seus pés, faziam‑se juras e selavam‑se negócios, enquanto à sua sombra se solenizavam juramentos tanto de amizade como de vingança. E, quando era preciso tomar decisões difíceis ou resolver disputas intrincadas, a pedra servia de oráculo. Abordada da maneira certa, Hubal manifestava a vontade de Deus — de Al‑Lah, «o sublime», o grandioso senhor do santuário, tão remoto e misterioso que só podia ser consultado através de intermediários.

Para que não restasse qualquer dúvida de que se tratava de assuntos de vida ou morte, Hubal falava através de flechas. Cada uma tinha inscrita uma opção adequada ao respetivo caso. Se fosse uma questão de quando agir, por exemplo, podiam ser usadas três flechas, com as inscrições «agora», «mais tarde» e «nunca», ou com expressões temporais específicas como «hoje», «daqui a sete dias» ou «daqui a um mês». A seguir, faziam‑se invocações e oferecia‑se um sacrifício — uma cabra ou até um camelo —, e por fim o guardião sacerdotal da pedra pegava no feixe de flechas, equilibrava‑as no chão com as pontas voltadas para cima e depois, num procedimento bastante semelhante ao usado pelos antigos Chineses, que consultavam o I Ching usando caules de milefólio, deixava‑as cair. A sentença final seria a inscrição na flecha que caísse a apontar mais diretamente para Hubal.

Desta vez, havia dez flechas, cada uma inscrita com o nome de um dos dez filhos. Toda a cidade se reuniu para assistir à cerimónia, simultaneamente excitada e horrorizada com o que estava em causa.

À medida que se aproximava o momento decisivo, o rumor de antecipação cresceu até um clamor rouco, para logo dar lugar a um silêncio abrupto quando o guardião largou as flechas. Todos se empurraram para chegar mais perto, ansiosos por serem os primeiros a ouvir que nome estava na flecha apontada à enorme pedra, e quando o nome foi anunciado um sobressalto de horror agitou a multidão. Com a inevitabilidade de uma tragédia grega, a flecha apontada a Hubal era a que tinha marcado com o nome de Abdullah, o filho mais novo e preferido de Abd al‑Muttalib.

Se a barba do pai não fosse já branca da idade, teria encanecido naquele instante. Mas ele não tinha escolha. Não era só a sua honra que estava em jogo, mas também a do seu clã, os hachemitas.

Os outros filhos mantiveram‑se impassíveis enquanto o pai se preparava para matar o seu irmão. No fim de contas, não lhes cabia questionar o pai e, além disso, cada um deles provavelmente suspirou de alívio por a escolha não ter recaído em si.

Se ainda esperavam de Hubal alguma súbita intervenção de última hora, ela não ocorreu. Só caíram na realidade quando Abd al‑Muttalib já tinha ordenado a Abdullah que se ajoelhasse à sua frente e pegado na faca. Talvez não fosse aquilo que Hubal queria, atreveram‑se finalmente a alvitrar. Talvez a sua vontade fosse demasiado subtil para qualquer um deles conseguir apreendê‑la. Não se perdia nada em consultar um kahin — título árabe equivalente ao hebraico cohen —, um dos muitos oráculos sacerdotais que podiam entrar em transes espirituais e compreender os mistérios dos seus prenúncios. Assim sendo, quem melhor do que um dos mais venerados de toda a Arábia?

A mulher, tão famosa que era conhecida simplesmente como kahina, a secerdotisa, não vivia em Meca mas no oásis de Medina, mais de trezentos quilómetros a norte. A distância por si só significava que Medina, para todos os efeitos, era outro país, o que constituía logo à partida uma garantia de objetividade. Os espíritos que falavam através dela eram de outra gente — não coraixitas, mas da tribo Khazraj. Dado que só os espíritos podiam realmente compreender‑se uns aos outros, talvez os dela lançassem uma nova luz sobre a sentença de Hubal, libertando desse modo Abd al‑Muttalib do terrível juramento.

«Se a kahina te ordenar que sacrifiques o Abdullah, assim farás», convenceram‑no os filhos. «Mas, se ela ordenar alguma coisa que te desobrigue, terás justificação para aceitar.»

Pai e filhos selaram então os camelos mais velozes e em sete dias chegaram a Medina, levando ofertas para a kahina e os seus espíritos. Observaram ansiosamente enquanto os olhos dela tremulavam e se cerravam, e viram‑na entrar em transe; aguardaram enquanto o seu corpo tremia e se agitava com a força do encontro invisível; sustiveram a respiração enquanto murmúrios incompreensíveis e gemidos inumanos se escapavam dos seus lábios. E depois instalou‑se o longo e tenso silêncio quando ela por fim se imobilizou. Os olhos abriram‑se e lentamente voltaram a focar este mundo em vez de outro, e por fim ela recuperou a faculdade humana da fala. Contudo, não com as esperadas palavras de sageza, mas com uma pergunta estranhamente prática: qual era o montante habitualmente pago pelos habitantes de Meca como indemnização por tirar a vida a alguém?

Dez camelos, responderam‑lhe, e ela acenou com a cabeça como se já soubesse.

«Voltem para o vosso país», disse, «ponham o rapaz e dez camelos defronte da vossa pedra sagrada e voltem a lançar as flechas. Se caírem pela segunda vez contra o jovem, acrescentem à caução mais dez camelos e lancem de novo as flechas. Se caírem contra ele pela terceira vez, então acrescentem mais dez camelos e lancem ainda outra vez.

«Continuem a acrescentar camelos dessa forma até o vosso deus estar satisfeito e aceitar os camelos em lugar do jovem». Eles fizeram o que ela tinha dito, acrescentando dez camelos de cada vez que o lançamento das flechas se voltava contra Abdullah. O oráculo pronunciou‑se repetidamente contra ele, só aceitando por fim a substituição quando foram oferecidos cem camelos — um número extraordinário que deixou toda a cidade em alvoroço, não só com as notícias da salvação de Abdullah, mas também com a ideia de que a vida dele valia dez vezes mais do que a de qualquer outro homem.

Nessa noite, Abd al‑Muttalib festejou. Não precisava de nenhum Freud para lhe recordar a profunda ligação entre eros e tânato, a energia vital e o instinto de morte, e tratou imediatamente de assinalar o novo alento na vida do seu filho preferido, garantindo a sua transmissão. Horas depois de os camelos serem abatidos, presidiu ao casamento de Abdullah e Amina, pai e mãe de Maomé.

Houve quem jurasse ter visto uma chama de luz branca na testa de Abdullah quando ele foi ao encontro da noiva nessa noite e que, quando voltou a aparecer de manhã, ela já lá não estava.

Chama de luz ou não, Maomé foi concebido ou nessa noite ou numa das duas noites seguintes, porque três dias depois Abdullah partiu numa caravana mercantil para Damasco e acabou por morrer em Medina na viagem de regresso, a dez dias de chegar a casa. Se alguém achou tratar‑se de uma ironia do mundo dos espíritos que ele morresse perto da kahina que lhe salvara a vida, ninguém o comentou. Afinal de contas, as penosas pistas de caravanas ao longo de centenas de quilómetros no deserto implicavam regularmente a perda de vidas humanas. Acidentes, infeções, picadas de escorpião, mordeduras de cobras, doenças… esses e outros perigos eram correntes em tais viagens, pelo que a causa exata da morte de Abdullah não está registada. Só nos é dito que foi sepultado numa campa anónima, deixando viúva a noiva e órfão o seu primogénito, ainda no ventre na mãe.

Porém, tal como muitos relatos do nascimento de heróis, este funciona em dois sentidos. A lógica das lendas raramente é benevolente; assim, se esta concede a Maomé um estatuto nobre, é para logo de seguida privá‑lo de tal atributo. A lenda insiste que ele nasceu no centro da sociedade de Meca e que, por via do pai e do avô, profundos laços de sangue o ligavam aos principais acontecimentos que levaram à criação da cidade. Contudo, de igual modo, relega‑o para a marginalidade. Em vez de acrescentar um aspeto miraculoso ao seu nascimento, a lenda dá uma especial atenção ao que bem pode ser o principal aspeto existencial da sua vida: numa sociedade que venerava os pais, Maomé nascera sem pai. E a Meca do século VI não via com bons olhos viúvas ou órfãos.

Nascer sem pai era nascer sem herança, e sem esperança de vir a ter uma. Um filho não podia herdar antes de atingir a maioridade; se o pai morresse antes, tudo o que possuía passava para um parente adulto, que então assumia a responsabilidade pela família enlutada. Numa sociedade tribal tradicional, o sistema tinha funcionado bem. Partindo do princípio de que não havia nada parecido com fortuna pessoal, apenas os bens da tribo, garantia‑se que nenhum membro era abandonado e que todos eram protegidos. Porém, na Meca em era de expansão, recentemente enriquecida pelo comércio das caravanas e pela gestão da peregrinação ao santuário da Caaba, os velhos valores tinham sofrido uma grave erosão. Em poucas décadas, a riqueza concentrara‑se nas mãos de uma minoria. Cada um zelava pelos seus interesses, e um órfão, por bem‑nascido que fosse, era mais um fardo do que uma bênção.
Pelo menos, o género da criança conferia‑lhe alguma proteção. Se Maomé tivesse nascido do sexo feminino, o mais certo era abandonarem‑no no deserto para que os elementos ou os predadores acabassem com ele, ou até sufocarem‑no silenciosamente à nascença, já que a importância concedida aos herdeiros masculinos implicava que o infanticídio feminino fosse tão elevado em Meca como em Constantinopla, Atenas e Roma — uma prática que o Alcorão viria depois a abordar diretamente, condenando‑a repetidamente (6:14.151; 17:31; 60:12; 81:8–9).

Nessas condições, Maomé parecia destinado a ser aquilo que os seus opositores de Meca mais tarde lhe chamariam: «uma pessoa insignificante».

Para mais, esse destino parecia confirmado pela circunstância de ele ter sido criado nos primeiros cinco anos de vida por alguém que a elite coraixita considerava outro tipo de pessoa insignificante: uma ama beduína, longe de Meca e do que se entendia por sociedade civilizada.

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