Houve protestos (mais que esperados) dos lesados à porta do tribunal; teve (como já se admitia) a presença em tribunal do principal arguido do caso GES/BES, Ricardo Salgado; e também deu para ouvir (de forma mais surpreendente) um dos advogados dos lesados do banco admitir as suas dúvidas e reservas sobre a eventual condenação de uma pessoa diagnosticada com Alzheimer. Com muita agitação mediática, o país assistiu ao primeiro dia de julgamento de um dos maiores casos da justiça em Portugal.

Apareceram 12, faltaram outros três arguidos. Na primeira sessão do julgamento, no Tribunal Central Criminal de Lisboa, Isabel Almeida, Cláudia Faria e António Soares não compareceram na sala de audiências, mas deverão estar presentes na próxima quinta-feira para a respetiva identificação. À exceção destes três, os restantes arguidos — há ainda três empresas neste processo, a Rioforte, a ESI e a Eurofin — preencheram a primeira fila de cadeiras da sala de audiência, pela ordem que consta na acusação. Ricardo Salgado era, por essa razão, o primeiro arguido da fila. Ao longo do dia (Salgado não esteve presente mais de meia hora na sala), não foi trocada uma única palavra entre aqueles que eram o alvo de todas as atenções.

Arguido Amílcar Morais Pires durante a identificação perante o coletivo de juízes

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

Arguido João Martins Pereira durante a identificação perante o coletivo de juízes

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Francisco Machado da Cruz durante a identificação perante o coletivo de juízes

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

Arguido Manuel Fernando Espírito Santo durante a identificação perante o coletivo de juízes

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

Além do nome, idade, morada e profissão, nenhum quis prestar declarações — pelo menos, não nesta fase inicial. Esta quarta-feira será ouvido o seu depoimento, mas gravado.

Ricardo Salgado no tribunal, outra vez, e os protestos dos lesados

O que aconteceu esta terça-feira foi uma espécie de repetição daquilo que já tinha acontecido durante o julgamento do caso EDP, em fevereiro, quando Ricardo Salgado e Manuel Pinho, ex-ministro da Economia, foram condenados. Tal como aconteceu no início do ano, também esta terça-feira o ex-banqueiro chegou ao Campus da Justiça acompanhado por Maria João Salgado, a sua mulher, que nunca lhe largou a mão.

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O antigo presidente do Banco Espírito Santo demorou exatamente dez minutos para percorrer cerca de 100 metros entre a entrada no Campus da Justiça e a porta do tribunal. Pelo caminho, ainda foi interrompido por um dos lesados do BES, mas que, ao contrário do grupo que estava em protesto alguns metros mais atrás, defendeu o ex-banqueiro. “Onde está a provisão?”, questionou o homem, numa referência à salvaguarda financeira que a instituição foi obrigada a criar quando havia já receios de que não tivesse capacidade para reembolsar aos clientes o valor da dívida que lhes tinha sido vendida. E acrescentou os votos: “Tenha muita saúde.”

Ricardo Salgado na sala de audiência, no momento em que fez a identificação perante o coletivo de juízes, acompanhado pela sua mulher

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

Já dentro da sala de audiência, Salgado foi o primeiro a fazer a identificação. Levantou-se com a ajuda de Maria João Salgado, que o acompanhou até à cadeira que estava mesmo à frente do coletivo de juízes presidido por Helena Susano. Mas não conseguiu responder com clareza às cerca de dez perguntas que a juíza lhe fez. Errou no nome da mãe e disse não se lembrar da rua onde vive.

“- A sua profissão, qual era?

– Banqueiro.

– Onde vive?

— Vivo….

– Em Lisboa ou Cascais?

– Cascais?

– E sabe a rua?

– Agora não me lembro.”

A juíza continuou a questionar, mas não obteve resposta: “O senhor dr. quer que este julgamento — estamos num julgamento — seja feito na sua presença ou sem estar presente?”, quis saber Helena Susano. “O senhor dr. quer estar cá?”, insistiu a presidente do coletivo de juízes, para ouvir pouco mais que uma resposta vaga de Salgado: não sabia. Nessa altura, Francisco Proença de Carvalho, advogado que representa Salgado, interrompeu e pediu a palavra para dizer que o seu cliente, fruto do diagnóstico da doença de Alzheimer, não tinha condições para responder a mais perguntas.

A juíza consentiu que o julgamento continuasse na ausência do ex-banqueiro e Salgado saiu da sala com a ajuda de Maria João Salgado. Mas, ao contrário do que aconteceu à chegada, o antigo homem do Grupo Espírito Santo — o “big boss” da instituição, nas palavras do Ministério Público — deixou o tribunal pela garagem e não voltou a ser visto em público.

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As exposições iniciais dos advogados, as perícias (mais uma vez) e as defesas de Salgado

O diagnóstico da doença de Alzheimer de Ricardo Salgado continua a ser um tema — tal como já tinha sido durante o processo EDP. No caso do GES/BES, porém, o coletivo de juízes nunca validou os pedidos da defesa para que fosse realizada uma perícia médica. Neste ponto, a defesa de Salgado disse mesmo que “o tribunal está obrigado a realizar uma perícia — sob pena de nulidade”. O advogado Adriano Squilacce sublinhou o argumento de que Ricardo Salgado “não consegue compreender o significado deste processo, muito menos prestar declarações” e acusou o tribunal de recusar as “inúmeras” perícias pedidas pela defesa.

“Este tribunal tem de verificar se o arguido tem ou não condições” para continuar a ser julgado e este é um caso, acrescentou ainda Adriano Squilacce, que “posiciona Portugal para ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.

Mas ainda antes de os advogados que defendem os 18 arguidos deste processo terem a palavra, falaram os advogados que estão a representar os assistentes — como é o caso dos lesados ou das massas insolventes. Se, por um lado, Nuno Silva Vieira, advogado que representa mais de 1300 lesados, considerou que “o foco principal deve ser a reparação das vítimas”, Ricardo Sá Fernandes, que representa também alguns lesados, expôs algumas dúvidas em relação à própria posição de Ricardo Salgado neste julgamento, tendo em conta a doença que lhe foi diagnosticada.

“Tenho as maiores reservas de que um homem nas circunstâncias em que está possa vir a ser objeto de um juízo que leve a uma condenação criminal, porque isso pressupõe uma pessoa que se possa defender”, disse Sá Fernandes. E acrescentou: “Ninguém poderia admitir que um homem como este pudesse cumprir pena de prisão. Sinto a obrigação de dizer que tenho as maiores dúvidas de que um homem possa ser julgado no âmbito criminal.”

Na mesma linha de Sá Fernandes, também Henrique Prior, advogado de outro assistente do processo, disse entender que o “julgamento deve suspender-se até que seja nomeado um curador provisório” para Ricardo Salgado.

A governação “autocrática” de Salgado

A par dos advogados, que ainda vão continuar a fazer as respetivas exposições introdutórias esta quarta-feira, também o Ministério Público teve uma palavra inicial. Aliás, a procuradora Carla Dias foi mesmo a primeira a falar e, tal como na acusação, fez de Ricardo Salgado a figura principal da sua intervenção.

Procuradora Carla Dias fez a exposição inicial. Ao seu lado tem os procuradores Sofia Gaspar e César Caniço

Em 15 minutos, o Ministério Público citou partes da acusação que tem mais de quatro mil páginas e voltou a defender que “o governo do GES foi assumido de forma autocrática por Ricardo Salgado”.

“O GES apresentou-se imune às sucessivas crises financeiras. Mas pelo menos desde 2009, a ESI [Espírito Santo International] estava insolvente, como foi do conhecimento de um núcleo muito restrito de pessoas”, disse a procuradora Carla Dias, que tem ao seu lado a procuradora Sofia Gaspar e o procurador César Caniço. “Ricardo Salgado logrou apropriar-se de património de terceiros no âmbito do negócio financeiro do GES.”