Luís Montenegro continua com tudo em aberto em relação ao sucessor ou sucessora de Lucília Gago à frente da Procuradoria-Geral da República. A intenção de Marcelo Rebelo de Sousa era iniciar o processo de ponderação esta quinta-feira, no encontro habitual entre Presidente da República e primeiro-ministro. Todavia, e apesar de faltar exatamente um mês para o fim do mandato de Lucília Gago, continuam sem existir avanços substanciais nesse processo.
Segundo apurou o Observador, no encontro desta quinta-feira, Luís Montenegro não deu qualquer indicação de ter um ou mais candidatos para ocupar o cargo. Marcelo Rebelo de Sousa, que já deu sinais em público e em privado de que quer ser envolvido com seriedade na tomada de decisão, ficou praticamente na mesma: o primeiro-ministro terá apenas sinalizado que tem todos os cenários em aberto, sem acrescentar muito mais.
Tudo o resto são, portanto, apenas hipóteses que vão sendo colocadas ou que já se colocaram no passado. Num momento particularmente delicado da relação entre Ministério Público e poder político, Marcelo Rebelo de Sousa tem resistido em traçar publicamente um perfil sobre o próximo Procurador-Geral da República. Nos corredores, há quem admita que o sucessor de Lucília Gago não surja diretamente a partir das duas magistraturas (judicial ou do Ministério Público), o que seria, para dizer o mínimo, muito disruptivo.
No entanto, por muito interessante que essa solução fosse do ponto de vista teórico, o Presidente da República dificilmente aceitaria que o cargo fosse entregue a um advogado de carreira, a um professor de Direito ou a um senador. Se for essa a pretensão de Montenegro, é muito provável que venha a esbarrar na trave e volte para trás. Belém está pouco disponível para grandes experimentalismos num momento tão sensível.
Sobra, então, a possibilidade mais real: o sucessor de Lucília Gago deverá vir da magistratura do Ministério Público ou da magistratura judicial, sendo que, dos poucos sinais que o núcleo duro do Governo vai dando, é de que estará mais inclinado para escolher alguém de dentro do Ministério Público para pegar no barco. Mas nada é garantido.
Nesse caso, Marcelo Rebelo de Sousa queria alguém com grande autoridade, necessariamente mais velho (a geração mais nova não estará ainda preparada) e, preferencialmente, com boas relações com o sindicato representativo do sector — tal como tinha Joana Marques Vidal. Se Luís Montenegro optar por este caminho, é provável que tenha acolhimento por parte do Presidente da República.
Sendo certo uma coisa: não será fácil encontrar figuras que sejam absolutamente pacíficas na corporação e fora dela. O que levanta, novamente, a questão que mais tem preocupado Belém: quanto mais tempo demorar Montenegro a definir e a partilhar um perfil com o Presidente da República, mais difícil será afinar agulhas. Seria um acaso cósmico, uma improbabilidade estatística, que, sem falar com Marcelo Rebelo de Sousa, Montenegro acertasse exatamente no perfil que o Presidente da República vai pensando para o cargo.
Com a agravante de que, em poucas semanas, será preciso convencer alguém a aceitar um cargo de enorme desgaste e exposição pública. No passado, nomeadamente na escolha para membros de Governo, Luís Montenegro levou negas e teve de encontrar soluções criativas precisamente por fazer convites muito em cima do prazo; agora, se mantiver o registo, pode ter de enfrentar um problema tão ou mais grave. Fora de hipótese para Marcelo está a ideia de Lucília Gago ficar para lá do fim de mandato.
O calendário aperta, o desconforto aumenta
Por tudo isto — e essa tem sido uma preocupação permanente de Marcelo Rebelo de Sousa — começa a faltar tempo para conduzir o processo de forma ponderada. Luís Montenegro, que tem por hábito revelar determinadas decisões no último segundo (veja-se a indicação de Maria Luís Albuquerque para comissária europeia), está a demorar a apontar um conjunto de personalidades que podem ocupar o cargo ou, no mínimo, um perfil de candidato ou candidata.
Na próxima semana, Marcelo Rebelo de Sousa estará em Las Palmas para participar na XVII Cimeira da COTEC Europa. Na outra semana, Luís Montenegro estará em Nova Iorque, de 23 a 26 deste mês, para participar na 79.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. O que significa que os encontros habituais entre os dois, sempre à quinta-feira, terão de ser adaptados às respetivas agendas oficiais. Tudo somado, começa de facto a faltar tempo (um tempo que Marcelo considera indispensável) para conduzir o processo.
A alternativa — Montenegro limitar-se a comunicar a personalidade que entende ter condições para suceder a Lucília Gago — não é aceitável para o Presidente da República. Por muito que seja esse o perfil de Montenegro (solitário na tomada de decisões), Marcelo Rebelo de Sousa faz mesmo questão de ser envolvido na escolha — é ele quem tem a competência de nomear o Procurador-Geral da República. Será Marcelo a ter sempre a última palavra.
De resto, a forma como Montenegro tem gerido todo o processo tem causado alguma apreensão em Belém. No processo anterior, que resultou, precisamente, na escolha de Lucília Gago, António Costa foi tratando com Marcelo ao longo de sensivelmente um ano, partilhando uma ideia de perfil, até os dois acertarem a posição final. Francisca Van Dunem, então ministra da Justiça, teve um papel preponderante na escolha, sendo que era próxima de Lucília Gago — no conjunto de nomes que Costa tinha em cima da mesa, Gago seria mesmo a favorita da ministra.
Agora, segundo os (poucos) sinais que Luís Montenegro vai dando, a grande preocupação do primeiro-ministro é acertar na ideia de perfil, primeiro, e depois encontrar na figura que melhor se encaixa nesse perfil. O social-democrata quer ter mesmo a certeza de que fez a escolha certa, ainda que a metodologia possa levantar algumas reservas em Belém: de tanto imaginar e ponderar, pode chegar a um momento em que se encontra, não a pessoa a certa para o cargo, mas a menos má.
As pistas da ministra
O desfecho, apesar de tudo, não foi particularmente positivo. A relação entre Joana Marques Vidal e o Governo de António Costa não era muito feliz — Vidal só reportava ao Presidente da República, o que terá causado alguns dissabores em São Bento. Lucília Gago foi escolhida, em parte, para normalizar a relação entre a Procuradoria e o governo. Enquanto Van Dunem foi ministra as coisas foram correndo. A partir da saída da então ministra da Justiça, tudo se foi deteriorando até terminar como terminou — o que não deixa de ser uma grande ironia.
Seria importante, por isso, ponderar seriamente esta decisão. Mas os dois — Presidente e primeiro-ministro — continuam em páginas diferentes. A forma encontrada por Montenegro para gerir a informação e o diálogo com Belém tem sido manifestamente diferente da de António Costa. Até à reunião desta quinta-feira, o primeiro-ministro continua sem abrir o jogo e Marcelo Rebelo de Sousa está muito longe de saber o que vai na cabeça de Montenegro — não existe, ao que apurou o Observador, uma ideia fechada em relação ao perfil do próximo Procurador-Geral da República.
Com tantas diferenças, a única semelhança que parece existir é a influência do Ministério da Justiça na definição do cargo: se, em 2019, Van Dunem foi determinante na escolha de Lucília Gago, existe a convicção de que Rita Júdice, atual ministra da Justiça, terá muita influência junto de Luís Montenegro no processo de decisão. Em entrevista ao Observador, ainda em junho, Rita Júdice deixou várias pistas sobre o perfil do sucessor ou sucessora de Lucília Gago e uma certeza: é preciso “pôr ordem na casa”.
A entrevista da ministra causou muita controvérsia, com alguns partidos, em particular o Chega, a acusarem o Governo de estar a tentar condicionar o Ministério Público. Sem entrar em grandes detalhes, Rita Júdice sugeriu que a Procuradoria-Geral da República deve ser entregue a alguém que, com “boa capacidade de liderança e de comunicação”, seja capaz de devolver a “confiança” no Ministério Público e de marcar uma “nova era” na corporação.
“Todos concordamos que é preciso que algo mude no MP no sentido da perceção da credibilidade dessa magistratura, porque está muito vulnerável a algumas críticas. Justas ou injustas, a verdade é que o Ministério Público está exposto a muitas críticas e o novo procurador-geral tem que pôr ordem na casa, por assim dizer”, rematava então a ministra.