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PRR. Governo quer reforçar direitos da banca quando dona de obra entra em insolvência

PRR promete alterar primazia no caso de insolvência de promotoras imobiliárias. Governo indica que são empreiteiros, e não famílias, que ficam a perder. Especialista em insolvências estranha decisão.

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Artigo atualizado a 14 de maio, 11h50

O Governo quer garantir que os bancos veem a sua posição reforçada na hora de receber o crédito de promotoras imobiliárias que entram em insolvência. A medida, prevista para 2022, está enunciada de forma incompleta no Plano de Recuperação e Resiliência entregue a Bruxelas, mas, contactado pelo Observador, o executivo assegura que não estão em causa as situações que afetam os compradores de casas, mas sim os empreiteiros. Uma opção que, na opinião de um especialista em insolvências contactado pelo Observador, é “estranha” e poderá ser discriminatória.

O Plano de Recuperação e Resiliência entregue à Comissão Europeia, e divulgado em abril, nada dizia sobre o assunto. Mas agora a medida está prevista nos tais anexos que o Governo só divulgou depois de ter sido noticiado que não eram conhecidos todos os documentos da negociação com Bruxelas.

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Esta é uma de várias medidas planeadas pelo Governo para alterar a forma como se processam as insolvências. No documento entregue em Bruxelas, propõe ainda facilitar o acesso ao exercício de funções de administrador de insolvência, estabelecer como regra a citação eletrónica das empresas, rever o Estatuto dos Funcionários Judiciais ou facilitar aos Administradores de Insolvência a pesquisa, em bases de dados públicas, dos bens de quem entrou nesse tipo de processo.

Governo retira direitos a empreiteiros no confronto com a banca

O dono da obra entra em insolvência e todos ficam em fila de espera para receber o dinheiro que lhes é devido. O que é que acontece? Até aqui, o banco, que emprestou dinheiro para a construção da casa, ficava em segundo plano — nomeadamente face ao consumidor que tivesse contrato-promessa e sinal pago, mas que não tivesse completado a compra —, só que agora o Governo diz querer garantir que os bancos veem a sua posição reforçada. Como? O executivo não explicita a medida no Plano de Recuperação e Resiliência, o que levou os especialistas em insolvências e direito do consumo a lerem a intenção genérica como um reforço do poder da banca face às famílias — a questão que tem gerado mais polémica. Mas, diz agora o Governo, não será esse o caso.

Antes da publicação da notícia, na noite de quarta-feira, o Observador tentou nessa tarde obter esclarecimentos sobre esta questão junto do gabinete de comunicação do Ministério de Justiça, mas não obteve resposta nesse dia. A reação conjunta dos ministérios da Justiça e da Economia surgiu esta quinta-feira, cerca de um dia depois do pedido de esclarecimento, com o Governo a afirmar que não estão em causa as famílias.

“Não há intenção de alterar a regra do código civil segundo a qual o direito do promitente comprador de imóvel ao qual tenha sido entregue o imóvel antes da escritura prevalece sobre a hipoteca a favor do banco"
Ministérios da Justiça e da Economia, em nota conjunta enviada ao Observador

O chamado promitente comprador de imóvel, que assinou contrato-promessa, pagou sinal da casa e começou a habitá-la — mas que ainda não tem escritura (não sendo, por isso, proprietário) —, continuará a ter direito a receber a indemnização pelo fim do negócio, mantendo a primazia sobre o banco que detém a hipoteca. “Não há intenção de alterar a regra do código civil segundo a qual o direito do promitente comprador de imóvel ao qual tenha sido entregue o imóvel antes da escritura prevalece sobre a hipoteca a favor do banco”, afirmam os dois ministérios na nota enviada ao Observador, acrescentando mesmo que essa questão “está bem solucionada pela lei há muito tempo”.

A questão, na verdade, só ficou estabilizada nos tribunais, depois de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2014, que garantiu a primazia às famílias, garantindo a respetiva indemnização antes do banco credor da construção receber a sua parte (já lá vamos).

São então os empreiteiros “perante o qual o promotor imobiliário tenha dívidas” — e não as famílias — que perdem prevalência relativamente à banca. É algo que “não está previsto expressamente na lei, mas que nos últimos anos tem vindo a suceder na prática e por via de decisões judiciais”, acrescenta a nota do Governo. “Tem sido invocado pelo empreiteiro o direito de retenção pelo imóvel, que prevaleceria sobre a hipoteca registada anteriormente”. O Governo quer, por isso, “esclarecer por via legislativa, para dar segurança a todas as partes, o que prevalece entre estas duas posições: a do empreiteiro ou a do credor hipotecário”.

“Decisão estranha” que pode ser discriminatória

Os especialistas contactados pelo Observador — que num primeiro momento leram a medida no Plano de Recuperação e Resiliência como uma perda de direitos das famílias — veem problemas na resposta agora dada pelos ministérios da Justiça e da Economia.

A decisão é "estranha", porque "simplesmente retirar o direito de retenção aos empreiteiros" é "juridicamente insustentável e incongruente com o que diz o PRR, que fala, clara e genericamente, em rever a preferência do direito de retenção em confronto com a hipoteca". E a alternativa seria "criar uma espécie de direito de retenção de segunda para os empreiteiros, que passaria, então, a não prevalecer face à hipoteca"
Paulo Valério, advogado e diretor executivo da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação

O diretor executivo da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação, Paulo Valério, diz mesmo ser uma “decisão estranha”. Por um lado, “simplesmente retirar o direito de retenção aos empreiteiros” é “juridicamente insustentável e incongruente com o que diz o PRR, que fala, clara e genericamente, em rever a preferência do direito de retenção em confronto com a hipoteca”. Por outro lado, a alternativa seria “criar uma espécie de direito de retenção de segunda para os empreiteiros, que passaria, então, a não prevalecer face à hipoteca”, o que também não lhe parece correto.

Sandra Passinhas, professora de Direito da Faculdade de Coimbra e presidente da associação Omnibus, de defesa do consumidor, diz concordar com Paulo Valério, embora acredite que o legislador, quando redigir o texto, “não se referirá em especial aos empreiteiros, sob pena de discriminação inaceitável”.

Neste momento, explica ainda a jurista, “a lei não prevê expressamente que o empreiteiro tenha direito de retenção relativamente ao dono da obra (o promotor imobiliário), mas a jurisprudência tem aceitado pacificamente que esse direito existe”. E é também por isso que Paulo Valério diz não perceber a necessidade da mudança. O advogado dá como exemplo um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre esta matéria, em 2018, que mostra como a questão tem sido muito pacífica na Justiça.

“Reconhece-se hoje, sem oposição relevante, que o empreiteiro goza do direito de retenção sobre a obra em construção ou já construída, quer para garantia das despesas efetuadas na coisa quer ainda para garantia do próprio preço”, escreveu o tribunal, acrescentando que “o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta esteja registada anteriormente”.

O empreiteiro tem primazia sobre o banco "não apenas porque o seu direito de crédito deriva da celebração de um contrato, mas porque se verifica que a sua atividade sobre a coisa produziu nela uma melhoria objetiva, uma mais valia, no sentido do aumento do seu valor, da sua conservação, ou ainda do impedimento da diminuição do seu valor”
Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 2018

E porquê essa preferência a favor do empreiteiro no acórdão do tribunal? “Justifica-se não apenas porque o seu direito de crédito deriva da celebração de um contrato, mas porque se verifica que a sua atividade sobre a coisa produziu nela uma melhoria objetiva, uma mais valia, no sentido do aumento do seu valor, da sua conservação, ou ainda do impedimento da diminuição do seu valor”, explicou então o Tribunal da Relação.

Frase do Plano de Recuperação surpreendeu os especialistas

A questão surgiu depois de o Governo ter inscrito no Plano de Recuperação e Resiliência a intenção de “reforço da posição do credor hipotecário (mortgage lender/creditor)” — ou seja, dos bancos que emprestaram dinheiro para a construção —, através da “revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca”, o que foi interpretado por estes especialistas em insolvências e direito do consumidor como uma intenção de dar primazia à banca sobre as famílias, como referimos acima.

Inicialmente, confrontado com esta frase no PRR — que não tem qualquer referência ao comprador ou a qualquer outro agente nesse “confronto” com a banca —, o diretor da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação disse não ter dúvidas de que, “ao contrário do que acontece agora, em que há uma proteção das famílias”, seriam as instituições financeiras a receber proteção. Em conversa com o Observador, o advogado afirmou que seria necessário “ter algum cuidado quando se mudam as regras do jogo” e que o Governo propunha “reabrir a ferida para fazer favor aos bancos”, que têm estado “revoltados” com as constantes decisões contrárias neste tipo de casos.

Também Sandra Passinhas disse então que seria necessário “ter muito cuidado” nas alterações que o Governo se prepara para fazer, “porque em geral as pessoas são sérias”. Em declarações ao Observador, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra lembrava que “a compra de casa é o grande negócio de vida dos portugueses” e que, por isso, “perder o sinal pago faz perigar a posição dessas pessoas”.

“Academicamente percebo as preocupações dos bancos, mas o regime [legal] terá sempre de acautelar as pessoas”, defendeu Sandra Passinhas, avisando que esta é uma questão muito controversa. “O acórdão do Supremo Tribunal foi muito criticado, não foi por unanimidade”, com vários juízes conselheiros a apresentarem voto de vencido relativamente a diversos aspetos da decisão.

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Sandra Passinhas explicou ainda que, para outro tipo de negócios, ganha primazia a “garantia real mais antiga”, mas, neste caso, não se aplica a regra geral da antiguidade. A discrepância, explica a académica, decorre de uma alteração legislativa feita em 1986, num contexto em que havia inflação muito elevada, a rondar os 13% — chegou a ser mais do dobro dois anos antes —, decorrente da instabilidade macroeconómica que se vivia então.

“Os construtores assinavam o contrato-promessa, mas entretanto a casa valorizava e compensava-lhes mais devolver o sinal em dobro do que cumprir o contrato”. A professora de Coimbra sublinhou, aliás, que são raros na Europa os casos em que há a figura legal do direito de retenção: “Só existe na Alemanha e mesmo aí tem outras especificidades”.

Famílias ficam a salvo de medida que seria “favor à banca”

Não é claro quantos portugueses passaram por situações (resolvidas ou não na justiça) em que, numa situação de insolvência da promotora imobiliária, tiveram de disputar com os bancos o crédito relativo ao sinal que pagaram pela casa, mas há exemplos concretos, que até já transitaram em julgado.

É o caso de António Ribeiro Saraiva, que, com cerca de 70 anos, celebrou um contrato-promessa para compra de duas frações com a Sociedade Construções Soicreba. Deu 108 mil euros de sinal pela casa que em que viria a habitar com o agregado familiar e um espaço para arrumos. Só que, em plena crise do resgate da Troika, a construtora entraria em processo de insolvência e a escritura de compra e venda daquela casa não chegaria a ser outorgada, apesar das tentativas do (quase) proprietário. E agora? Quem é que está na linha da frente para receber o crédito da empresa falida? O consumidor ou o banco que detém a hipoteca?

O Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia reconheceu, numa primeira instância, que o crédito de António Ribeiro Saraiva tem primazia sobre a credora hipotecária, a Caixa Geral de Depósitos. Mas a questão não é pacífica e, numa segunda instância, o Tribunal da Relação do Porto daria razão ao banco público.

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O tira-teimas chegaria em 2014, com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça — que conta os detalhes desta história — e em que o presidente do tribunal determina que se proceda “a julgamento ampliado com vista a uniformização de jurisprudência”. É este acórdão, portanto, que tem, desde então, servido de bitola para todos os casos similares que se seguiram, dando razão ao comprador — que tem direito de retenção —, em detrimento do banco.

Ou seja, se estivermos perante a compra de casa por parte de um particular; se esse consumidor já estiver a viver nessa fração depois da assinatura de um contrato-promessa e tiver pago o sinal; se houver insolvência do empreiteiro antes de realizada a escritura; e, na sequência disto tudo, o administrador de insolvência decidir anular o negócio, então, o comprador da casa tem direito a uma indemnização — o sinal que tinha sido pago, mas devolvido a dobrar —, como manda o código civil.

A questão é que não é o único a ter direito. E o que a jurisprudência do Supremo Tribunal estabelece é que é a família — e não o banco (que tinha financiado o construtor) — que fica com a primeira fatia. Na hora de distribuir os “despojos” da dona da obra, o sinal pago tem mesmo de ser devolvido ao comprador. E o banco fica com o que sobrar. Uma questão que, como o Supremo Tribunal indica no acórdão, ganha especial relevância em tempos de crise, em que há normalmente muitas falências.

É esta relação de forças entre comprador da casa e credor da hipoteca, estabilizada desde esse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que os especialistas achavam que o Governo iria alterar depois de escrever, sem mais, que iria rever o regime de preferência do direito de retenção para reforçar os direitos da banca.

O anexo em que esta medida está inscrita, dedicado à justiça económica e ao ambiente de negócios, dedica-lhe apenas duas linhas numa alínea e, além desse parágrafo, é ainda possível perceber, noutra tabela em anexo ao PRR, que o Governo conta pôr em marcha a medida até ao quarto trimestre de 2022, depois da necessária alteração ao Código Civil. Nesses documentos, o Governo não revela detalhes nem aponta razões, mas agora, em resposta ao pedido de esclarecimento do Observador, indica que não estão em causa os compradores da casa, mas os empreiteiros.

O que o Governo propôs a Bruxelas para agilizar insolvências

Além desta alteração, o Governo indica no documento anexo ao PRR uma bateria de outras medidas pensadas para melhorar a justiça económica e o ambiente de negócios, com várias delas a incidirem sobre insolvências e a ação executiva, o que motivará o Governo a rever o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), para agilizar estes processos.

Os Administradores de Insolvência vão poder pesquisar os bens dos insolventes em “bases de dados públicas dos Registos, da Segurança Social, da Caixa Geral de Aposentações, da Autoridade Tributária e do IGCP-Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública”
Plano de Recuperação e Resiliência entregue pelo Governo em Bruxelas

O executivo pretende ainda reduzir “restrições ao exercício das profissões altamente regulamentadas”, permitindo “o acesso mais facilitado ao exercício de funções de administrador de insolvência”. Com esta medida, o Governo diz querer incentivar “a recuperação precoce de empresas em dificuldades”, assegurando também “um aumento da proporção de desfechos de recuperação ou a transferência do estabelecimento em atividade no caso de liquidação de empresas”, bem como “o aumento da percentagem de recuperação dos créditos pelos credores”.

Nos planos do Ministério da Justiça está igualmente a ideia de “estabelecer como regra a citação eletrónica das pessoas coletivas, designadamente no processo de insolvência” e simplificar o processo de verificação do passivo e graduação de créditos no processo de insolvência. Aqui, o Administrador da Insolvência fica com maiores responsabilidades, “permitindo ao Juiz, em caso de concordância e na falta de impugnações, limitar-se a homologar ambos os documentos, permitindo assim uma tramitação mais ágil”.

O Governo promete ainda avançar com um modelo de assessoria interna aos magistrados, através da revisão do Estatuto dos Funcionários Judiciais, “permitindo a adoção de modelos flexíveis de organização e gestão do trabalho, com formação especializada para magistrados e funcionários judiciais, iniciando-se com um piloto nesta jurisdição (assim como na jurisdição administrativa e fiscal)”.

Bruxelas recebeu também várias propostas de medidas para desmaterializar os processos e tornar mais fácil o acesso a informação. Os Administradores de Insolvência vão, assim, poder pesquisar os bens dos insolventes em “bases de dados públicas dos Registos, da Segurança Social, da Caixa Geral de Aposentações, da Autoridade Tributária e do IGCP-Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública”; haverá “interoperabilidade eletrónica entre os tribunais e Agentes de Execução com vista à realização de penhoras com a Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações”; e uma “Plataforma de suporte aos processos de insolvência e recuperação para cidadãos e empresas”.

Mas não só. O executivo conta criar equipas especializadas de funcionários para contagem de processos; desenvolver secções especializadas do comércio nos Tribunais Superiores; e alargar o quadro de recursos humanos dos Juízos de Comércio, tanto de magistrados como de funcionários judiciais.

No âmbito deste processo, será constituído um Grupo de Trabalho multidisciplinar para definir e acompanhar “ações de intervenção legal, agilização processual, simplificação procedimental e modernização tecnológica nestas áreas processuais”.

Artigo atualizado a 14 de maio, às 11h50, com resposta do Governo e reações dos especialistas

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