Estiveram juntos na campanha a Loures em plena polémica com comunidade cigana. Um incentivou o outro, sem sucesso, a entrar na corrida à sucessão de Passos Coelho. O plano falhado para derrubar Rui Rio motivou uma cisão. Um criou um partido que se tornou a terceira força política. O outro perdeu e ganhou eleições internas, herdou um PSD em crise, mas vai sonhando em derrotar o PS em 2026 – ou antes, já no virar da curva de 2024. André Ventura e Luís Montenegro vivem na dupla circunstância de serem adversários políticos depois de terem sido aliados no passado; no futuro, terão, muito provavelmente, de forjar um acordo se quiserem chegar ao poder. E é aí que os problemas começam.
A existir, a aliança pode ter um preço demasiado alto para ambos. Luís Montenegro tem consciência de que, algum dia, terá de travar o crescimento do Chega, sob pena de acelerar a sangria eleitoral e a perda de relevância política que o PSD vai enfrentando desde 2015. O dilema que se coloca é que caminho seguir: adotar o Chega como aliado natural na expectativa de que o sistema o absorva e esvazie o discurso de contestação; ou ostracizar o Chega na esperança de que o eleitorado perceba que é inútil votar em Ventura.
O líder do Chega tem um dilema semelhante. Ventura sabe que, a menos que consiga efetivamente entrar e, mais do que isso, condicionar um eventual governo de direita, como agora veio exigir com clareza, será sempre visto como um idiota útil para alianças que não produzem resultados – como se queixam que aconteceu nos Açores — e só favorecem o PSD. Em contrapartida, ficar fora da solução à direita e permanecer acantonando na barricada do protesto trará um grande desgaste a médio e longo prazo.
Seja como for, e depois de uma convenção em que o Chega apareceu perfeitamente articulado quanto a apoiar um eventual governo de direita – ou pastas ministeriais, ou nada feito –, a bola política e mediática está do lado de Luís Montenegro: até quando é que o PSD vai continuar a fazer do Chega um tema tabu. Entre dirigentes sociais-democratas ouvidos pelo Observador, a resposta é uma: até ao momento certo.
Maioria de Costa é vacina contra Ventura
Na direção do PSD, pelo menos na linha dominante — aquela que é personificada por Luís Montenegro — a convicção é a de que alimentar o debate em torno de alianças e coligações com Chega não serve os objetivos do partido. O caminho até ao poder deve ser encarado como uma maratona e qualquer passo precipitado pode deitar por terra a estratégia do PSD. O único aspeto mais consensual está no preço a pagar pelo apoio de Ventura: é impossível, a esta distância, imaginar um cenário em que o Chega entre num governo liderado pelo PSD.
De resto, e apesar das juras de Ventura, a ideia mantém-se: se os sociais-democratas vencerem eleições sem maioria absoluta, e se a soma de PSD e IL não for suficiente para governar, o Chega será encostado à parede e terá de decidir se permite a Montenegro governar ou se fica com o ónus de perpetuar o PS no poder – cenário que Ventura já desmontou várias vezes, dizendo que o seu apoio não está à venda nem mesmo nessas circunstâncias. A esta altura do campeonato, o PSD está disposto a pagar para ver se o bluff de Ventura tem fundamento. Mas ainda falta muito jogo pela frente.
Seja como for, ninguém, nem mesmo os que toleram a ideia de alianças com o Chega, ignora a dimensão que o partido de André Ventura está a tomar. Nem tão pouco se ignora que é aquele partido quem mais está a capitalizar com a crise do Governo – na última sondagem da CNN/TVI, a tal que deu o PSD à frente nas intenções de voto pela primeira vez desde 2017, o PSD crescia apenas 0,2 pontos percentuais, ao passo que o Chega subia mais de cinco pontos percentuais em relação ao último estudo de opinião da Pitagórica.
Ainda assim, a ordem é para relativizar: essa é a fotografia deste momento particular; no futuro, acredita-se na São Caetano, não será assim. E essencialmente por um motivo: o peso verdadeiro do voto útil à direita sentir-se-á quando as legislativas estiverem ao virar da esquina – e, nessa altura, o PSD carregará no discurso de que um voto no Chega é um voto desperdiçado.
Além disso, a linha dominante do PSD acredita que as últimas legislativas serviram de lição ao eleitorado. Na altura, com medo que o Rui Rio se aliasse ao Chega, os eleitores voltaram-se para António Costa e deram-lhe uma maioria absoluta; no futuro, e com medo que o PS se perpetue no poder, a pulsão será votar no PSD, o único partido verdadeiramente capaz de oferecer uma alternativa. Mais: votar no PSD fará com Montenegro seja autossuficiente e não precise do Chega para governar.
A estratégia comporta riscos, naturalmente. Além de reconfirmar o crescimento anémico do PSD (uma constante ao longo das 19 sondagens realizadas durante a era Montenegro), a mesma sondagem da CNN/TVI dava conta de outra coisa: 42% dos inquiridos acreditavam que o partido que mais vai crescer em 2023 será o Chega e que o PS, mesmo sendo a força política que mais vai descer, vai continuar liderar no final do ano. Contas feitas, o PSD, de acordo com este estudo de opinião, continuará ensanduichado entre um PS em queda mas dominante e um Chega em crescendo.
Mesmo perante esta perspetiva, a direção do PSD mantém-se agarrada ao mantra: não é como começa; é como acaba. Entre os dirigentes sociais-democratas ouvidos pelo Observador, nesta altura, seria fazer um favor ao Chega riscá-lo das contas porque alimentaria o discurso de vitimização que Ventura usa como combustível; no futuro, quando as coisas forem a doer, o balão Chega será esvaziado.
Apesar das divisões internas, tabu é para manter
Desde que assumiu a presidência do PSD, Luís Montenegro não se desviou um milímetro da estratégia gizada no congresso que o consagrou: manter-se propositadamente ambíguo em relação ao Chega. “Connosco, o PSD não se vai descaracterizar, mas também não será cúmplice da perpetuação do PS no poder”, escreveu na sua moção estratégica.
A frase tem suficiente latitude para se permitir a todas as leituras. Montenegro, de resto, tem resistido, em múltiplas ocasiões, a desfazer o tabu. “As linhas vermelhas com o Chega ficam em casa, ficam no bolso… Não ficam na minha preocupação. Estou focado em fazer oposição ao PS. O Chega não é minha preocupação. Ponto final, parágrafo. Falamos na altura [das legislativas]”, chegou a dizer em entrevista à SIC, visivelmente irritado com a insistência.
No PSD, a expectativa que existe é de que a questão tem e que vai ser resolvida — mas a seu devido tempo. Os dirigentes sociais-democratas sabem que o tema será recuperado a cada entrevista que Montenegro dê e que dominará ciclicamente a agenda mediática sempre que sair uma sondagem, sempre que o PSD der um tropeção ou a cada polémica que o Chega venha a causar. Será preciso gelo nos pulsos e nervos de aço para aguentar o embate, receita-se na São Caetano.
Basta ver o que aconteceu na última Convenção do Chega com Miguel Pinto Luz, escolhido para representar os sociais-democratas para representar institucionalmente o partido naquela reunião magna. Depois de o Observador ter recordado que o vice-presidente tinha defendido, ainda em 2019, que as alianças com o Chega eram possíveis, a presença do número dois de Carlos Carreiras em Santarém foi imediatamente interpretada como uma bênção às aspirações governativas de Ventura.
O facto de Pinto Luz ter sido vaiado pelos militantes do Chega quando comparou o partido de Ventura ao Bloco ou de ter sido acompanhado até à saída com mimos pouco simpáticos não mereceu um único minuto de atenção mediática. Mas a discussão sobre alianças com o Chega ressurgiu em força porque Pinto Luz não foi capaz de as afastar. Numa Convenção em que os sociais-democratas foram o alfa e ómega de todas as intervenções políticas de fundo, a ida de Pinto Luz a Santarém atirou o debate para outro patamar.
De resto, a dificuldade em gerir o tema começa dentro da própria direção do PSD. Miguel Pinto Luz nunca descartou alianças com o Chega; Paulo Rangel, primeiro vice do partido, disse e repetiu várias vezes que nunca quererá contar com Ventura para nada. António Leitão Amaro, em linha com Montenegro, recusa falar sobre o tema, tendo dito repetidamente que o “foco” é e deve ser sempre o PSD.
Mas a direção do PSD não é uma ilha. Luís Marques Mendes, que, apesar de muito próximo de Montenegro, tem-se desdobrado em avisos à navegação social-democrata, pôs as coisas nestes termos: “A ideia ambígua de que, se ganhar eleições, o PSD pode fazer um acordo com o Chega, só beneficia o partido de Ventura. Há direita, dá um sinal de que votar num partido ou noutro é irrelevante, retirando assim voto útil no PSD. Ao centro, impede o PSD de conquistar eleitores moderados. O PSD tem vantagem em fazer o que fez a IL: ‘cortar’ com o Chega”, afirmou o antigo líder social-democrata no seu habitual espaço de comentário na SIC.
A dissonância entre figuras que orbitam em torno da linha que atualmente dirige o PSD é evidente. Pedro Passos Coelho e Miguel Relvas nunca deram sinais de concordar com a tese do cordão sanitário em torno do Chega, bem pelo contrário. Miguel Poiares Maduro, Jorge Moreira da Silva e José Eduardo Martins, por exemplo, são terminantemente contra qualquer aliança. E mesmo entre os pesos pesados do aparelho social-democrata, como José Manuel Fernandes, a resposta é inequívoca: “O PSD não deve fazer nenhum acordo com o Chega”, atalhou o eurodeputado, numa entrevista que será publicada esta quinta-feira.
De todo em todo, Montenegro, se ainda for líder do PSD nas próximas eleições legislativas (formalmente, o mandato é de dois anos e termina em 2024), terá de tomar uma decisão com os dados que a aritmética eleitoral ditar: governa ou não com o apoio de Ventura e a que custo. Curiosamente, não fosse a ação (ou inação, neste caso) de Montenegro e o fenómeno Chega talvez nunca tivesse existido.
De Algueirão para Loures
A verdade é que foi uma estranha conjugação de astros que fez com que os dois, Luís Montenegro e André Ventura, estivessem nesta situação particular: foram aliados circunstanciais, romperam por causa de Rui Rio (embora fossem críticos daquela liderança), tornaram-se adversários políticos e, no futuro, podem voltar a ser aliados. Para perceber o percurso comum de ambos é preciso recuar até julho de 2017.
Ventura era um perfeito desconhecido para a maioria dos militantes do PSD e irrelevante na vida interna social-democrata. Foi uma criatura política do antigo deputado Sérgio Azevedo, que, quando procurava ganhar a JSD/Lisboa, viu naquele jovem de Algueirão uma oportunidade para quebrar a adversária Ana Sofia Bettencourt, influente no aparelho do partido em Sintra.
Pouco depois, André Ventura desapareceu do mapa partidário. Saiu para Erasmus, voltou, concluiu o curso, ingressou na carreira académica e apostou as fichas todas no comentário televisivo, sobre futebol e crime. Os dois, Sérgio Azevedo e Ventura, encontrar-se-iam anos mais tarde, em ambiente académico. Ventura pediu-lhe para voltar à vida do PSD e Sérgio Azevedo fez-lhe a vontade: com Carlos Eduardo Reis, hoje deputado e um dos homens mais influentes do aparelho social-democrata, fizeram uma lista ao Conselho Nacional, e ficaram em terceiro lugar.
Ventura continuaria a ser uma figura intermitente na vida interna do PSD. Até que, em 2017, chegou a oportunidade perfeita para brilhar. A estrutura do PSD de Loures não se entendia em relação ao candidato que devia indicar à Câmara e Ventura, que queria ser candidato a Sintra, entrou na equação. E é aí que começa a verdadeira ascensão política do homem que se tornaria líder do Chega.
O apoio de Passos e a bênção de Montenegro
A entrevista de André Ventura, então pouco mais do que uma cara conhecida da televisão e transformado em candidato do PSD/CDS para cumprir calendário em Loures, tinha caído com estrondo. “Os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado”, titulava o jornal i.
As reações não tardaram e afetaram a própria coligação: o CDS retirou o apoio à candidatura e Assunção Cristas diria mais tarde que “jamais deixaria que o CDS pudesse ser associado ao racismo”. Pedro Passos Coelho, depois de chamar Ventura para uma reunião, teve um entendimento diferente – a candidatura era mesmo para manter. E era preciso dar um sinal político forte.
Interna e externamente, Passos estava a ser pressionado para se demarcar de Ventura e deixar cair o candidato. O então líder social-democrata resistiu sempre, mas era difícil encontrar figuras nacionais dispostas a aparecer ao lado de Ventura. O escolhido para cumprir essa missão foi Luís Montenegro, então líder da bancada parlamentar do PSD.
O social-democrata fez questão de aparecer ao lado do candidato numa ação de campanha e Ventura — que até tem um romance publicado em 2008 cujo protagonista é um homem chamado “Luís Montenegro”, toxicodependente, seropositivo e vencedor da Volta a Espanha — nunca esqueceria o gesto. Até aí, os dois não tinham sequer cumplicidade política. Montenegro e Ventura estiveram sempre em barricadas diferentes, sendo que este último era irrelevante no PSD. Além disso, estavam em fases distintas de afirmação política: Montenegro era líder parlamentar; Ventura era um polémico comentador televisivo com aspirações políticas.
A “traição”
A partir dessas eleições autárquicas, que resultaram na saída de Pedro Passos Coelho, Ventura, insuflado pela exposição mediática que recebera, não mais deixou de tentar lançar Luís Montenegro para a presidência do PSD. Desafiou-o a entrar na corrida contra Rui Rio logo em 2017 e, mais tarde, tentou criar um movimento para apear Rio, cujo ponto de lança seria Montenegro. O agora líder social-democrata resistiu sempre ao canto da sereia e Ventura decidiu sair do PSD por entre acusações de “traição”. O nome do movimento: “Chega de Rui Rio”.
Até hoje, as versões são contraditórias. Os mais próximos de Ventura garantem que estava tudo articulado com Montenegro e que este último roeu a corda à 25ª hora. No momento em que decidiu desfiliar-se do PSD, em outubro de 2018, e apesar de nunca o nomear, os ataques foram direitinhos para Montenegro.
“Fui traído, apunhalado pelas costas e enganado. Para a história ficarão aqueles que desde o início me apoiaram e incentivaram e depois vieram publicamente demarcar-se; ficarão também as atitudes daqueles que, chamados à responsabilidade, dela fugiram e preferiram remeter-se calculistamente a um futuro não muito distante, onde as previsíveis derrotas eleitorais tornarão tudo mais fácil”, escreveu Ventura. Acabava o “Chega de Rui Rio”, movimento que nasceu no interior do PSD, e nascia o partido “Chega”.
Os mais próximos de Luís Montenegro negam até hoje que tenha existido qualquer articulação com Ventura para derrubar Rui Rio, quanto mais uma “facada nas costas”. “É mentira”, corta um social-democrata que acompanhou de perto essa fase da vida interna do PSD. A verdade é que existe uma coincidência temporal: a 5 de outubro de 2018, Montenegro dizia ao Expresso que não concordava, não patrocinava e nem se deixava condicionar por qualquer iniciativa que visasse destituir Rui Rio “intempestivamente”; três dias depois, Ventura anunciava a saída do partido.
Os dois terão oportunidade para ajustar contas num futuro próximo. No passado, a existência de um inimigo comum — Rui Rio — não foi cimento suficiente para segurar uma aliança. No futuro próximo, António Costa (ou quem lhe suceder) pode fazer as vezes do antigo líder do PSD. Resta saber se, desta vez, haverá margem e vontade para entendimentos mais sólidos.