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Nas últimas semanas, o célebre perfil de Twitter @DarthPutinKGB — uma conhecida conta-paródia que se dedica a fazer pouco do presidente russo e que, em 2016, chegou a ser suspensa temporariamente pela rede social — voltou a ganhar grande destaque na internet.
Diariamente, a conta publica tweets irónicos sobre Putin e a ofensiva russa contra a Ucrânia, troçando da falta de estratégia das forças russas, da censura à informação praticada pelo Kremlin e do falseamento da narrativa oficial sobre a guerra por parte de Moscovo: “Destruímos 656 dos cerca de 30 drones ucranianos e 150% dos tanques deles”, lê-se numa publicação. Mas o principal alvo da ironia daquela página é o falhanço das tropas russas em cumprir os objetivos inicialmente delineados por Putin quando lançou a guerra contra a Ucrânia. Todos os dias, a conta-paródia saúda os seus mais de 260 mil seguidores com uma piada que já se tornou comum entre os ucranianos desde o início da guerra: “Dia 35 da minha guerra de três dias”, lê-se na publicação desta quarta-feira.
De facto, todos os dados disponíveis parecem apontar no mesmo sentido: Vladimir Putin tinha planeado uma operação rápida na Ucrânia, provavelmente de 15 dias no total, já contando com toda a preparação para uma fase de combate de três ou quatro dias.
A ideia parecia simples: capturar tranquilamente a região oriental da Ucrânia, incluindo Donbass (uma região russófona e tradicionalmente mais próxima de Moscovo), libertando-a de um alegado jugo nazi representado pelo governo de Kiev; chegar à capital em poucos dias e fazer capitular o regime de Volodymyr Zelensky (cuja aproximação ao Ocidente por via da União Europeia e da NATO se afigura como uma suposta ameaça existencial para a Rússia); e promover no país a instalação de um regime pró-russo, à maneira da Bielorrússia. Ao fim de 36 dias de uma guerra de três dias, fica claro que os planos de Putin saíram furados e que a ofensiva militar aparenta estar num impasse.
Por um lado, a competência e organização do exército russo foram manifestamente insuficientes para cumprir a missão inicial. Por outro lado, Moscovo subestimou largamente aquilo que viria a ser a resistência do exército e do povo ucranianos à invasão. Putin esperava tomar o controlo do país em poucos dias, ser recebido na Ucrânia como o libertador de um país subjugado pelos “nazis”, recuperar a antiga influência russa sobre o leste europeu e repelir a presença ocidental da região.
Um mês depois da invasão, a guerra aparenta estar num impasse. A Rússia controla, efetivamente, algumas partes da Ucrânia, sobretudo nas faixas fronteiriças a norte, leste e sul, e cercou ou tomou o controlo de algumas cidades importantes, como Kharkiv, Kherson, Mariupol, Sumy ou Chernihiv. A tomada da capital, Kiev, continua por acontecer: há várias semanas que as tropas russas se encontravam a alguns quilómetros da cidade, sem conseguir avanços significativos à exceção dos ataques levados a cabo com artilharia pesada de longo alcance e até sofrendo duras perdas às mãos da contraofensiva ucraniana.
Depois de o plano A ter falhado em toda a linha, a Rússia passou ao plano B: bombardear indiscriminadamente, destruir cidades e criar uma crise humanitária que leve o próprio povo ucraniano a preferir a capitulação do seu governo. Dados atualizados esta semana pela ONU davam conta da saída da Ucrânia de mais de 4 milhões de refugiados desde o início da guerra. Em Mariupol, a cidade mais massacrada pelo cerco russo (por ser um ponto estratégico que permitirá à Rússia unir a Crimeia, Donbass e o seu próprio território), estima-se que já tenham morrido 5 mil civis desde o início do cerco.
Ao fim de um mês de guerra falhada, a Rússia parece começar a assumir o falhanço da operação militar. O objetivo final já não aparenta ser a tomada de Kiev e a capitulação do regime de Zelensky, o apelo à “desnazificação” está a sair do vocabulário negocial russo e os esforços de guerra estão a concentrar-se na região de Donbass. Aliás, é já Moscovo a assumir que está a reduzir a presença militar em Kiev.
Do lado da Ucrânia, embora Zelensky mantenha que a integridade territorial e a soberania nacional são linhas vermelhas que Kiev não está disposta a cruzar, já surge um sinal de cedência: a disponibilidade para aceitar um estatuto de neutralidade que dê à Rússia as garantias de segurança exigidas por Moscovo. Neste momento, é certo que a guerra atual não é a guerra de há um mês. Já não está em causa a capitulação do regime de Kiev e a tomada total da Ucrânia, mas uma disputa territorial no leste do país. Moscovo já gastou muito mais recursos do que esperava com esta ofensiva militar — a NATO estima que a Rússia já tenha perdido entre 7 mil e 15 mil soldados, incluindo quase uma dezena de generais — e não tem capacidade para mais avanços territoriais. Significa isto que a guerra se está a aproximar do fim? Que cenários se podem antecipar para os próximos dias, semanas e meses?
A perspetiva de uma guerra a aproximar-se do fim tem ganhado força nos últimos dias. Do lado ucraniano, há a confiança de que a Rússia não tenha recursos para continuar a ofensiva e que, por isso, o fim da guerra possa estar por dias. Do lado russo, segundo o governo ucraniano, começa a correr a ideia de fazer coincidir o fim da guerra com as comemorações de 9 de maio, feriado nacional russo que comemora a vitória soviética sobre os nazis em 1945. Contudo, especialistas ouvidos pelo Observador duvidam de ambas as retóricas, atribuindo-lhes um significado essencialmente simbólico e de galvanização do apoio popular, e antecipam uma guerra com potencial para se estender longamente no tempo, uma vez que nem estão esgotados os recursos militares nem estão verdadeiramente lançadas as bases para uma negociação efetivamente capaz de atingir um acordo de paz. O que é certo, dizem os especialistas, é que a guerra na Ucrânia já mudou de figura.
Ucrânia pode ser para Putin o que a Península Ibérica foi para Napoleão
“Há cerca de uma semana, a campanha russa chegou àquilo a que, em teoria militar, se chama um ponto de culminação. Isso significa, essencialmente, que chegaram tão longe quanto podiam com a logística e os recursos que tinham”, diz ao Observador o académico Frank Ledwidge, antigo combatente britânico que interveio nas guerras dos Balcãs, do Iraque e do Afeganistão, especialista em estratégia militar, autor de vários livros sobre a arte da guerra e professor de história e estratégia militar na Universidade de Portsmouth. “Ficaram sem vapor.”
Para Ledwidge, há poucas dúvidas de que os russos falharam em toda a linha inicialmente definida. “Chegaram tão longe quanto podiam. Não conseguem fazer mais avanços”, diz. “Falharam no planeamento. Os pressupostos de planeamento foram, no mínimo, inadequados. Basearam-se em informações pobres ou, pelo menos, aplicaram mal as informações que tinham. Também estão a enfrentar uma oposição que é muito mais forte do que toda a gente esperava. Todos o sabem.”
A opinião de que a ofensiva russa falhou e de que isso está a obrigar a redefinir o curso da guerra é partilhada por Thomas Graham, responsável pelo programa de estudos da Rússia, Leste da Europa e Eurásia da Universidade de Yale, antigo conselheiro do presidente George W. Bush para os assuntos russos, ex-diplomata norte-americano em Moscovo e investigador do think tank Council on Foreign Relations. “Como sabemos, esta operação militar não avançou como os russos antecipavam. Eles acharam que seria muito curta, que já teria terminado, que terminaria em três, quatro dias, uma semana no máximo”, lembra Graham, em entrevista ao Observador. “Neste momento, estamos a entrar no segundo mês do conflito e a resistência ucraniana tem sido muito mais forte do que qualquer um antecipara quando o conflito começou.”
“O que vimos ao longo das últimas semanas tem sido uma mudança das táticas russas, que estão a ser muito mais brutais, atacando infraestruturas civis, não se preocupando com as baixas civis. Claramente, os russos estão a tentar aterrorizar a população ucraniana, na esperança de que o governo de Zelensky capitule perante as exigências russas. Algo que os ucranianos, claramente, não estão preparados para fazer”, continua Graham.
Para o antigo conselheiro de George W. Bush, a ofensiva militar russa foi mal preparada desde o início e estava destinada a falhar. “Além da forte resistência ucraniana”, diz Graham, também “as falhas das forças armadas russas” contribuíram para que Moscovo não conseguisse cumprir os seus objetivos militares no prazo definido e se visse obrigado a recuar, quer militarmente quer diplomaticamente. “Isto era uma operação de grande escala e, claramente, a Rússia não treinou para uma coisa destas. Havia problemas logísticos tremendos, forças a ficarem sem combustível que lhes permitisse continuar, não havia coordenação nas frentes de combate”, afirma o especialista. “Era uma operação militar demasiado grande, com ataques militares no norte, no leste e no sul, muito mal coordenados.”
O estratega militar Frank Ledwidge explica que estes fatores levaram a guerra russa a uma pausa operacional. “Na prática, os russos vão ter de entrar na defensiva operacional, o que significa que não podem capturar mais território, mas têm de aguentar aquele que já têm, o que apresenta os seus próprios desafios e dificuldades”, afirma Ledwidge. “Em partes do nordeste da Ucrânia, e também em algumas partes do sul, há relatos de que as forças ucranianas estão a recuperar o controlo de algumas cidades e vilas. Não sabemos se é verdade, mas seguramente faz sentido que a Ucrânia agora esteja a contra-atacar, não apenas para recuperar o território, mas também para manter os russos na defensiva.”
Ao contrário do que acontece noutras guerras mais bem planeadas, a pausa operacional a que os russos foram sujeitos não foi pensada antecipadamente, mas imposta a Moscovo. “Podemos chamar-lhe pausa operacional ou ponto de culminação, mas tiveram de parar. É muito comum em operações como esta. Aconteceu na invasão norte-americana do Iraque, em 2003. Houve uma pausa operacional, mas foi planeada. Precisavam de parar para uma recuperação logística”, diz Ledwidge. “Mas esta não foi planeada. Foi imposta aos russos. Eles pararam para reavaliar. Simplesmente, não podiam avançar mais ou seriam derrotados.”
Ambos os especialistas ouvidos pelo Observador acreditam que o principal responsável pelo falhanço das tropas russas é o próprio Vladimir Putin, que acreditava genuinamente nos objetivos inicialmente traçados: tomar Kiev em poucos dias, “desnazificar” a Ucrânia e repelir a presença ocidental do país.
“Houve informações erradas ou as informações que havia foram aplicadas de forma errada”, diz Frank Ledwidge, referindo-se aos dados recolhidos pelos serviços secretos russos na preparação da invasão da Ucrânia. “Até é possível que houvesse boas informações, mas Putin vive num ambiente informativo fechado. Só as notícias que se alinham com os seus conceitos é que são permitidas”, acrescenta o especialista, sublinhando que “isso não é incomum, até na cultura militar britânica”, já que o país voltou “ao Afeganistão várias vezes”, embora “por razões menos sinistras”.
“É muito comum que, num ambiente informativo fechado, só ouçamos aquilo que queremos ouvir. Não sabemos se a informação era boa ou não, mas sabemos que a aplicação foi má. O plano deles era uma operação de 15 dias, com um período de combate de três ou quatro dias sem uma resistência eficaz. Ambos estes pressupostos principais estavam catastroficamente errados”, salienta Ledwidge.
Thomas Graham concorda. “Penso que é claro que Vladimir Putin não tinha informações corretas sobre a força com que os ucranianos iriam resistir. Pensava que isto seria uma operação fácil, que as tropas russas seriam saudadas como libertadoras porque não queriam continuar sob o governo neonazi de Kiev. Não percebeu a resistência que teria. Não percebeu o quão popular é o governo de Kiev, apesar de algumas críticas antes do início do conflito. Não antecipou a unidade do Ocidente nas sanções, que foram uma grande surpresa. O Kremlin sabia que o Ocidente estava a planear fortes sanções, mas não calculou que houvesse união suficiente na ação do Ocidente”, diz o académico de Yale. “Finalmente, os russos não calcularam bem a força do seu próprio exército.”
Além de tudo o que correu mal para os russos, é preciso perceber também o que os ucranianos fizeram bem. No entender de Frank Ledwidge, as forças especiais ucranianas, com as suas operações de sabotagem atrás das linhas russas, estão a ter um papel fundamental na derrota das tropas de Moscovo. “Não podemos ter dúvidas de que, atrás das linhas russas, as forças especiais ucranianas estão a dificultar a logística russa. Ouvimos falar dos tanques, dos veículos blindados e por aí fora, mas o principal alvo deles são os camiões de combustível”, diz Ledwidge, reiterando que a Ucrânia “tem uma presença pesada atrás das linhas russas para continuar a fazer sangrar os russos”.
O estratega e especialista em história militar compara a guerra na Ucrânia com as invasões francesas de Portugal no século XIX e diz que a Ucrânia poderá mesmo vir a ser para a Rússia o que a Península Ibérica foi para Napoleão. “Creio que a Ucrânia será a ‘úlcera sangrenta’ para os russos se não houver um acordo. Continuarão a sangrar os seus recursos, o seu dinheiro, a sua credibilidade, as suas pessoas”, diz Ledwidge ao Observador, explicando que a origem da expressão é “a Guerra Peninsular contra Napoleão, que via a Península Ibérica como a ‘úlcera sangrenta’. Portugal esteve muito envolvido, com o seu exército, entre 1807 e 1814. A Guerra Peninsular acabou com os recursos de Napoleão, que não pôde manter a campanha russa e outras por causa dessa falta de recursos. É interessante a influência de uma insurgência, uma resistência nacional. A melhor analogia histórica com o que está a acontecer agora é a Guerra Peninsular contra Napoleão, incluindo nos aspetos económicos.”
Ao fim de um mês, guerra mudou de figura e objetivo já não é Kiev
Os analistas auscultados pelo Observador concordam, também, que a guerra na Ucrânia já mudou de figura em relação àquilo que era nos primeiros dias da invasão. A partir do momento em que ficou claro que a Rússia seria incapaz de cumprir o seu próprio objetivo de controlar a Ucrânia em poucos dias, decapitando o regime de Zelensky e implementando ali um governo pró-Moscovo, a guerra tornou-se mais sangrenta, mais prolongada no tempo e mais imprevisível. E os objetivos também mudaram. Por tudo isto, torna-se mais difícil especular sobre quando — e como — poderá terminar o conflito.
“Os russos podem ainda querer capturar Kiev em algum momento, mas é claro que capturar Kiev não é, neste momento, um objetivo primário. Diria que foi um objetivo primário quando lançaram a operação, pensaram que estariam em Kiev e que conseguiriam depor o governo. Claramente, isso não aconteceu. Os últimos relatos indicam que estão a criar posições defensivas em torno de Kiev, enquanto deslocam forças para o leste, para lidar com o problema em Donetsk e Lugansk”, diz Thomas Graham, salientando que o objetivo de Moscovo é, agora, “construir uma faixa de território entre Donbass e a Crimeia”.
A cidade de Mariupol, o lugar mais massacrado pelos russos durante toda a guerra, “é o foco do conflito neste momento, porque é a última cidade no caminho que a Rússia vai ter de ocupar se quiser construir essa faixa”.
Frank Ledwidge aponta no mesmo sentido: “Putin redefiniu os objetivos daquilo a que ele chamou operação militar especial, o que, essencialmente, significou que eles não conseguiram atingir os seus principais objetivos, que eram, de acordo com Putin, a ‘desnazificação’, o que significa a destruição do governo ucraniano, e a ‘desmilitarização’, ou seja, fazer o mesmo ao exército ucraniano. Não o conseguiram fazer. O objetivo mínimo é, agora, a zona a que os ucranianos chamam zona de Operações das Forças Conjuntas, ou seja, a área de Donbass.”
“Se isto não for uma armadilha e os russos se focarem mesmo naquela área, então o que não vamos ver é uma tentativa de capturar Kiev e a enorme batalha que isso iria significar — e que os russos iriam certamente perder”, acrescenta Ledwidge. “Também não vamos ver o mesmo a acontecer em lugares como Kharkiv e outras cidades na parte oriental do país que ainda não foram capturadas. Vamos ver um foco em Donbass, o que também representa dificuldades para as forças ucranianas lá.”
Questionado sobre o recente ataque russo a Lviv, cidade na parte ocidental da Ucrânia, a poucos quilómetros da fronteira com a Polónia, Frank Ledwidge diz que esses ataques “não são muito significativos, no sentido em que não se podem interpretar estrategicamente” no âmbito do avanço russo sobre território ucraniano. “São uma mensagem para o Ocidente de que os russos conseguem atingir as linhas de abastecimento”, mas também um aviso de que uma cidade antiga e histórica ocidental pode vir a ser alvo da fúria de Moscovo. Além disso, o analista considera que o ataque foi também uma provocação aos EUA, porque o presidente Joe Biden se encontrava de visita à Polónia naquela altura — mas não é expectável que aquele tipo de ataques continue.
Ataques a Lviv não causaram mortes. Rockets terão sido disparados a partir da Crimeira
Se o objetivo primordial de capturar a Ucrânia na totalidade em poucos dias falhou redondamente e Kiev já não é o alvo central dos russos, que desfecho poderá, então, vir a ter esta guerra?
O que passa pela cabeça de Putin “é tão opaco que é difícil discernir quais são os objetivos finais” do líder russo, reconhece Frank Ledwidge. O estratega antecipa que, embora as tropas russas reduzam a sua presença na maioria das cidades ucranianas para se focarem na região de Donbass, não é expectável o fim total das operações militares noutros lugares. “Vamos ver muitos bombardeamentos em Kiev e noutras cidades, mas isso vai ser para manter as forças ucranianas ali, porque os russos não se podem dar ao luxo de haver reforços ucranianos em Donbass.”
Os russos “já têm problemas suficientes para lidar com os ucranianos que lá estão”, por isso, “vão continuar as operações de combate”. Porém, “quaisquer reforços deverão ser alocados à região de Donbass e esse será o foco primário”. Ledwidge explica que “isso é normal” e que “há sempre um foco primário, um centro de gravidade da campanha militar”. Inicialmente, diz o especialista, esse centro de gravidade “deveria ser Kiev”, porque a estratégia tem de estar alinhada com as operações no terreno. “A estratégia era a mudança de regime”, logo o foco da operação seria a capital. Porém, a Rússia não o fez. “Havia três operações em separado, que estavam a concorrer entre si. A vantagem para os russos é que estas três operações já não vão concorrer e haverá um foco operacional. Vai ser um desafio para os ucranianos saber como calibrar as suas forças para esse nível.”
Até porque a Rússia, na visão de Ledwidge, não vai abandonar a artilharia pesada, uma das suas grandes vantagens. “O exército russo há perto de um século tem vindo a melhorar a sua artilharia, a que chamam o ‘Deus Vermelho da Guerra’. É um elemento muito importante. Para os russos, é o elemento chave. É onde têm a força. Quer se traduza em armas, mísseis ou qualquer outra coisa, é irrelevante. Eles vão continuar a usar as suas forças”, diz. “Isso também dá à Ucrânia a oportunidade de usar as suas vantagens, que são a agilidade e a manobrabilidade.”
Além das mudanças operacionais no terreno, a alteração dos objetivos centrais russos reflete-se também no plano diplomático, adverte Thomas Graham. Embora o ex-conselheiro de George W. Bush considere que os objetivos diplomáticos de Putin não mudaram de modo significativo, há uma alteração que se reveste de grande importância: o potencial abandono da exigência de “desnazificação” da Ucrânia. “Putin parece estar preparado para negociar com o governo ucraniano tal como ele é hoje constituído e para tentar encontrar algum tipo de solução negociada com eles.”
No entender de Graham, a retirada dessa exigência, que representava uma intenção direta de substituição do regime de Kiev por um outro ideologicamente diferente, “significa que os russos aceitam o parceiro negocial como um governo legítimo”. Isso é, diz o analista, “um passo em frente em relação a onde os russos estavam quando lançaram esta operação a 24 de fevereiro”.
Os desafios de uma negociação de paz entre interesses incompatíveis
Os olhos de todo o mundo voltam-se agora para a Turquia, onde por estes dias têm decorrido as negociações de paz entre as delegações da Rússia e da Ucrânia. São, é certo, negociações preliminares, entre delegações de segunda linha, e um encontro pessoal entre Zelensky e Putin ainda não se afigura no horizonte temporal mais próximo, mas é nas negociações de paz que reside a esperança para o fim do conflito.
Contudo, os especialistas ouvidos pelo Observador alertam para as dificuldades da negociação da paz — e dizem que quaisquer prazos avançados para o fim da guerra são, ainda, muito precoces.
“O que os russos estão a negociar, na sua perspetiva, é a rendição da Ucrânia. Não estão a falar de soluções mutuamente satisfatórias para problemas graves. Nem prometeram que, se obtivessem aquilo que querem das tropas ucranianas, retirariam as suas tropas dos territórios ucranianos ocupados”, diz Thomas Graham ao Observador. “Os objetivos [negociais] não mudaram, mas o horizonte temporal claramente mudou. Se os russos se vão contentar com menos do que as exigências máximas que têm, depende do curso do conflito. Ainda estamos, parece-me, a várias semanas de uma negociação séria.”
O analista diz mesmo que só com uma intervenção séria dos Estados Unidos será possível chegar a uma negociação eficaz. “Não acredito que isto possa ser resolvido com negociações entre os ucranianos e os russos. Os EUA têm, claramente, de estar envolvidos. Algumas das questões levantadas pelos russos em dezembro são, claramente, mais abrangentes do que a Ucrânia. Envolvem a arquitetura de segurança da Europa, e algumas coisas que seria preciso fazer de maneira a resolver o atual conflito só podem ser feitas se forem envolvidas num enquadramento maior da segurança europeia”, explica Graham.
Frank Ledwidge é igualmente cauteloso. “Não gosto de especular. Teria de saber as linhas negociais de ambos os lados”, diz o estratega militar. “Parece-me que os ucranianos acreditam que estão na mó de cima, o que está certo. Mas também têm de aceitar que não vão recuperar todo o seu território pela força num futuro próximo. Por isso, estamos num impasse.”
Os resultados das rondas negociais desta semana parecem promissores, com aparentes cedências de parte a parte.
Na terça-feira, após um encontro de negociação em Istambul, na Turquia, a delegação ucraniana afirmou que Kiev poderá vir a aceitar a exigência de Moscovo de se tornar num país neutral — ou seja, não aderir a alianças militares nem acolher bases militares estrangeiras no país —, desde que pudesse beneficiar de um acordo de garantias de segurança que incluiria a assistência militar por parte dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, da Turquia, da Alemanha, do Canadá, de Itália, da Polónia e de Israel. Do lado da Rússia, que já terá abandonado o objetivo de tomar Kiev e de decapitar o regime de Zelensky, Moscovo estará também disposta a não se opor à adesão da Ucrânia à União Europeia, desde que Kiev abandonasse a pretensão de aderir à NATO, algo que Zelensky já disse estar disposto a aceitar.
São sinais positivos que indicam que há um caminho de entendimento que Rússia e Ucrânia podem percorrer — mas cuja meta está ainda longe, até porque não há acordo para as regiões de Donetsk e Lugansk (e quanto à Crimeia, a ideia é estabelecer uma trégua de 15 anos que permita dar lugar a negociações formais sobre o assunto).
Os especialistas ouvidos pelo Observador salientam que ambos os lados da barricada vão querer enquadrar o desfecho da guerra como uma vitória — e há interesses inconciliáveis.
“Não nos podemos esquecer de que a realidade no terreno é que milhares de soldados ucranianos estão a lutar para ganhar a guerra, não para chegar a um acordo. Não para desistir de determinado território. Particularmente no sul, em Mariupol, nessas batalhas ferozes, em Kherson e Mykolaiv, onde têm ganhado, ou pelo menos [estão] a resistir com sucesso, não vão simplesmente desistir da cidade porque vamos entregá-la numa negociação”, diz Frank Ledwidge. “Isso iria criar problemas internos dentro da Ucrânia também. Na minha opinião, no que toca à dinâmica, isso era algo que Zelensky quererá evitar: conflitos internos depois da paz.”
“Na Irlanda, há exatamente 100 anos, houve uma guerra entre os britânicos e os ingleses. Os irlandeses chegaram a acordo, mas uma grande parte das forças não aceitaram o acordo e, depois, houve uma guerra civil. Não estou a sugerir que é isso que vai acontecer na Ucrânia, acho que não vai. Mas os ucranianos estão muito conscientes disto. É um país grande, muitas pessoas a lutar duramente. Zelensky disse-lhes repetidamente que estão a lutar pela vitória”, continua o analista. “Claro que as pessoas percebem que há negociações, mas no fim de contas será preciso explicar muita coisa às pessoas se a Ucrânia ceder territórios.”
Também Thomas Graham lembra que Zelensky já disse reiteradamente que “não tem interesse em reconhecer o controlo russo sobre qualquer pedaço de território ucraniano, o que inclui a Crimeia e a região de Donbass”.
“A única coisa que Zelensky está agora preparado para considerar — e que não estava, antes da invasão, preparado para considerar — é esta questão de não alinhamento ou neutralidade. Ele tem de encontrar a neutralidade de uma maneira que dê garantias de segurança consideráveis à Ucrânia. Também já falou da possibilidade de um referendo, para que o povo ucraniano pudesse dar a sua opinião sobre a neutralidade. Mas não é algo em que ele esteja preparado para ceder nas próximas 24 ou 48 horas. É um processo longo e ele tem insistido que tudo isto só será feito depois de os russos retirarem as suas tropas do território ucraniano”, destaca Graham. “Há um abismo, e um abismo muito grande, entre a posição negocial dos russos e a posição negocial ucraniana. Na verdade, ambos os lados estão a tentar negociar a rendição do outro lado.”
Uma data para o fim da guerra? É propaganda, dizem especialistas
No final da semana passada, o jornal ucraniano The Kyiv Independent noticiou que a Rússia estaria a planear ter a guerra terminada até ao dia 9 de maio. A fonte era o Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas, que no mesmo dia afirmara, num comunicado na sua página de Facebook: “De acordo com informações disponíveis, entre o pessoal das Forças Armadas da Federação Russa, tem sido feito um constante trabalho de propaganda, que impõe a ideia de que a guerra terá de ser completada antes do dia 9 de maio de 2022.”
⚡️Ukrainian army: Russia wants to end war by May 9.
According to intelligence from the General Staff of the Armed Forces of Ukraine, Russian troops are being told that the war must end by May 9 – widely celebrated in Russia as the day of victory over the Nazi Germany.
— The Kyiv Independent (@KyivIndependent) March 24, 2022
Trata-se de um dia de evidente simbolismo. Foi no dia 9 de maio de 1945 que a Europa acordou livre da Segunda Guerra Mundial, depois de na noite anterior a Alemanha nazi ter assinado a rendição incondicional perante os aliados. Atualmente, o dia 9 de maio é feriado nacional na Rússia, conhecido como o “Dia da Vitória na Europa”, e continua a ser agitado como bandeira anti-nazi por Putin, que agora procura estabelecer uma equivalência entre o regime de Kiev e a Alemanha nazi para galvanizar o apoio da população russa à sua ofensiva militar contra a Ucrânia.
“Putin quer enquadrar este conflito como um conflito existencial, em que a existência, a sobrevivência da Rússia está em risco. Ele fala de nazis, neonazis, porque isso traz memórias da Segunda Guerra Mundial, que foi verdadeiramente existencial para a Rússia, e onde eles sofreram tremendamente às mãos das forças nazis, ao longo de vários anos”, analisa Thomas Graham. “Mas os russos também viram o fim da Segunda Guerra Mundial como uma espécie de coroação, uma vitória que Putin tem usado como fator legitimador para o seu próprio regime.”
“Estabelecer uma ligação entre o que aconteceu há 80 anos e o que está a acontecer hoje na Ucrânia faz parte dos esforços do Kremlin para galvanizar o apoio da população russa. O Kremlin tem tentado controlar a narrativa. Censuram todas as opiniões discordantes, tudo o que indique que algo mais está a acontecer no terreno na Ucrânia. Se olhar para as notícias russas sobre a guerra e para as notícias ocidentais sobre a guerra na Ucrânia, são duas imagens radicalmente diferentes”, continua o ex-conselheiro de Bush. “Nem saberíamos que as duas narrativas são sobre o mesmo acontecimento.”
“Tentar controlar essa narrativa e ligar isto à grande vitória na Segunda Guerra Mundial é um modo de mobilizar e manter o apoio àquilo que se passa no conflito. Mas também penso que o Kremlin está a tentar preparar a população russa para aceitar as baixas, que não podem esconder do público durante muito mais tempo”, remata Thomas Graham.
Frank Ledwidge é mais cético quanto à data e especula que possa ser apenas uma leitura demasiado esticada, por parte dos serviços secretos ucranianos, daquilo que é um mero discurso propagandístico de Moscovo. “Isso foi provavelmente algum agente do serviço de informações que está a ler demasiado as datas. A guerra tem a sua própria dinâmica e não vai acontecer de acordo com calendários definidos, a não ser que os russos estejam dispostos a aceitar ganhos limitados, o que é possível, e essa é provavelmente a maneira como Putin olha para as coisas.”
O estratega militar explica que dificilmente os russos conseguiriam tomar o controlo de toda a região de Donbass até maio. “Seria preciso muita sorte e bons generais para o fazer, e eles não têm tido nem uma coisa nem outra. Seria otimista”, afirma Ledwidge. “Se não houver um acordo negociado, que faria parte dessa possibilidade, mais vale desistirem e declarar vitória. O que é possível. Mas depois teríamos de questionar-nos: estaria a Ucrânia disposta a desistir e a declarar vitória? Uma vez que o seu presidente já disse que iriam recuperar cada centímetro do território ucraniano. Creio que não. E se não houver um acordo negociado, isto vai continuar durante muito tempo. A guerra não funciona com prazos. Não consigo ver modo de o conflito não continuar.”
Do lado de Kiev, parece haver a expectativa de um desfecho rápido do conflito devido à falta de recursos nas forças russas. Em Moscovo, a propaganda diz o mesmo: os soldados russos voltarão a casa vitoriosos antes da grande celebração de 9 de maio, com motivos semelhantes para festejar. Mas os observadores externos duvidam de uma resolução rápida para o conflito. “Pode ser uma guerra muito longa. Nenhum lado parece, neste momento, estar a dizer que já chega, que já esgotou os recursos, que precisa de concluir este conflito”, diz Thomas Graham. “Por isso, este conflito pode durar semanas ou meses. Não seria surpreendente se víssemos este conflito ainda em curso no outono deste ano.”