Ao mesmo tempo que promete reduções de impostos para as classes média e baixa, Kamala Harris propõe-se ajudar os jovens a comprar casa, apoiar os homens negros no lançamento dos seus próprios negócios e, até, perdoar todas as dívidas que os americanos contraíram para pagar cuidados de saúde. Já Donald Trump promete prolongar (e alargar) as reduções de impostos que lançou em 2017 (e que expirariam em 2025), ao mesmo tempo que garante que a “fórmula mágica” para fazer crescer a economia passa por aumentar as taxas alfandegárias cobradas a quem exporta para os EUA.
Independentemente de quem sair vitorioso nas eleições de 5 de novembro, a perceção entre os analistas é que existe um apoio dos dois partidos para manter os benefícios fiscais para as famílias que ganham menos de 400 mil dólares por ano e para quem tem crianças ou dependentes a cargo. Porém, não haverá muita margem para muitos mais cortes de impostos, já que, dizem os analistas, a política orçamental nos EUA tenderá a tornar-se menos expansionista nos próximos anos – depois de ter sido bem mais “generosa” do que a europeia, desde a pandemia de Covid-19.
Apesar disso, os dois candidatos têm em comum o facto de nenhum deles mostrar qualquer interesse em equilibrar as contas do Estado federal dos EUA, que caminha para uma dívida acumulada de 36 biliões de dólares, a caminho dos 130% do Produto Interno Bruto (anual). Uma estimativa indicou que Trump pode aumentar a dívida em até 15 biliões de dólares, Kamala potencialmente metade disso – o que, dado o nível de endividamento atual, não será pouco.
É por isso que os analistas sublinham que tão importante como a eleição do Presidente (e vice-presidente) é perceber se o Presidente que for eleito irá ter, ou não, o controlo do Congresso, já que é aí que a maior parte das leis com impacto nas contas públicas tem de ser aprovada. “O resultado das eleições para o Senado e para a Câmara dos Representantes será tão crucial [como a eleição presidencial] para as perspetivas económicas dos EUA”, sublinha o economista-chefe do Berenberg Bank, Holger Schmieding, em nota de análise partilhada com o Observador.
Há, por isso, quatro cenários diferentes, nos quais os analistas identificam implicações importantes não só para a economia norte-americana mas, também, para as empresas europeias e para a geopolítica internacional.
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Cenário 1 – Trump vence, mas Congresso fica dividido
Num cenário em que Trump vence as eleições mas os republicanos não conseguem maioria no Congresso, a primeira prioridade do novo Presidente deverá ser tentar prolongar os cortes de impostos que foram lançados em 2017 (pelo próprio Trump). Se não houver esse prolongamento, o Tax Cuts and Jobs Act (conhecido pela sigla TCJA) irá expirar no final de 2025.
A confirmar-se essa proposta de prolongamento, “os democratas [no Congresso] irão, provavelmente, insistir em alterar alguns detalhes mas, globalmente, devem colaborar” no sentido da continuidade do programa, afirma Holger Schmieding, do Berenberg Bank.
EUA não elegem apenas um Presidente a 5 de novembro
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As eleições norte-americanas estão previstas para 5 de novembro de 2024. É nesse dia (e nos dias anteriores, através do voto antecipado) que os norte-americanos vão escolher um novo Presidente para um mandato de quatro anos, a contar a partir de janeiro de 2025.
Mas além da eleição do Presidente (e vice-presidente), todos os 435 assentos na Câmara dos Representantes e 34 dos 100 lugares no Senado serão disputados. Neste momento, a Câmara é controlada pelos Republicanos mas os Democratas controlam o Senado.
O processo eleitoral inclui, ainda, votação para eleger 13 governadores estaduais.
O maior receio dos economistas em relação a uma nova presidência de Trump é que o magnata deverá focar muito a sua política nas áreas do controlo da imigração e, por outro lado, o comércio externo – duas matérias onde Trump, mesmo que não controle o Congresso, terá poder para tomar medidas capazes de reduzir o crescimento potencial da economia norte-americana e, também, ter implicações globais.
“Caso Trump cumpra o que prometeu, irá aumentar em 10% ou 20% as taxas alfandegárias em todas as importações que chegam aos EUA – além de 60% nas importações vindas da China”, salienta Holger Schmieding, do Berenberg Bank. A confirmar-se, essas medidas irão contribuir para aumentar os preços e estimular a inflação nos EUA – o que poderá levar a Reserva Federal dos EUA a ter de reagir com uma política monetária mais apertada.
Uma estimativa da britânica Capital Economics aponta para que as taxas de juro da Reserva Federal poderão ter de estar 100 pontos-base (um ponto percentual) mais elevadas se Trump vencer e avançar, mesmo, com os aumentos de taxas alfandegárias e estímulos orçamentais que está a prometer lançar. Mesmo num cenário mais conservador, em que Trump avança com a sua agenda protecionista de forma menos agressiva do que tem propalado, os juros da Fed podem estar 50 pontos-base mais elevados do que num cenário em que Trump não vence as eleições, afirma a consultora de investimentos.
No curto prazo, os analistas acreditam que uma eleição de Trump poderia dar um impulso positivo à economia dos EUA, graças ao pendor que o empresário mostrou ter, na primeira presidência, para uma menor carga regulatória em setores como a saúde, a finança e o meio ambiente. Isso poderá levar, por exemplo, a maior atividade na exploração petrolífera – o que tenderá a suportar o crescimento económico norte-americano por conferir aos EUA uma ainda maior maior independência energética (o que pode ser importante, sobretudo, numa fase de grande tensão geopolítica e incerteza no mercado petrolífero).
“No longo prazo, porém, as taxas alfandegárias mais elevadas nos EUA – que podem ser respondidas na mesma moeda por outros países –, a escassez de mão de obra devido à menor imigração e, ainda, alguma erosão das instituições numa presidência Trump podem enfraquecer o crescimento económico norte-americano”, afirma Holger Schmieding. O Berenberg Bank passaria a prever um crescimento de 1,9% em 2025, mais duas décimas do que no cenário atual (1,7%), mas a partir de 2026 o crescimento seria uma ou duas décimas inferior ao previsto.
Neil Shearing, da consultora de investimentos britânica Capital Economics, vai mais longe e salienta que uma segunda presidência de Trump surgiria num enquadramento internacional bem diferente daquele que existia entre 2016 e 2020, os anos em que cumpriu o primeiro mandato. A principal diferença, para Shearing, é que, embora os dados ainda não confirmem um verdadeiro recuo da globalização, “a era da hiper-globalização acabou” e o mundo está, desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, “cada vez mais fraturado”.
A retórica agressiva de Trump – até para com os parceiros europeus (e da NATO) – leva Neil Shearing a recear que uma segunda presidência de Trump “ameaçaria a coligação de países que se formou à volta dos EUA”. A prazo, isso pode significar que “os EUA podem começar a desgastar a vantagem-chave que têm em relação à China – que é a dimensão e a diversidade económica dos seus aliados”.
“É importante ter amigos, num mundo fraturado”, afirma o especialista da Capital Economics. “Tudo aquilo que Trump fizer para alienar os seus aliados acabará por prejudicar os EUA e beneficiar a China — e, levado ao extremo, isto pode ter um efeito profundo para a posição económica dos EUA no longo prazo”, remata.
O que é que é este cenário, de uma vitória “parcial” dos republicanos, significaria para a Europa? Antes de mais, a confirmar-se uma política monetária mais apertada por parte da Reserva Federal, isso pressionaria o BCE a manter as taxas de juro em níveis mais elevados. Por outro lado, “para as empresas europeias, um regresso de Trump à Casa Branca significaria uma incerteza comercial e geopolítica considerável, com implicações negativas para o crescimento no continente [europeu]”, afirma Holger Schmieding.
Nesse cenário, o banco de investimento “provavelmente” iria reduzir as previsões de crescimento para os países europeus em pelo menos uma décima de ponto percentual – duas ou três décimas, até, no caso da Alemanha, a maior economia da UE.
Até Christine Lagarde, presidente do BCE, foi esta quinta-feira questionada sobre a possibilidade de Donald Trump voltar à Casa Branca e lançar, como promete, novas taxas alfandegárias, Christine Lagarde diz que esse é um “risco negativo” para a Europa. “Qualquer restrição, qualquer obstáculo ao comércio externo importa para uma economia como a economia europeia”, afirmou a presidente do BCE. “Qualquer endurecimento das barreiras, das taxas alfandegárias, é obviamente um risco negativo“, continuou.
Holger Schmieding, do Berenberg Bank, acrescenta que “a abordagem de Trump às questões geopolíticas (menos apoio à Ucrânia, pressão sobre Kiev para aceitar um armistício em termos favoráveis à Rússia) continua a ser uma questão importante com consequências potencialmente graves para a Europa”. Além disso, diz o economista, o Presidente que os norte-americanos escolherem também será crucial para “a avaliação que a China fará sobre a determinação dos EUA em impedir uma [possível] tentativa chinesa de tomar Taiwan pela força, no futuro”.
Cenário 2 – Trump vence e Republicanos também dominam o Congresso
Neste cenário, Trump continuaria a ter as primeiras prioridades do primeiro cenário, mas enfrentaria ainda menos obstáculos na aprovação das suas medidas, entre cortes de impostos, redução de apoios sociais e aumento das taxas cobradas às empresas que exportam para os EUA.
“Embora os cortes adicionais nos impostos pudessem impulsionar, ligeiramente, o crescimento económico, os consumidores e as empresas acabariam por pagar por isso com custos de financiamento mais elevados”, diz Holger Schmieding, salientando que com preços mais elevados (inflação mais rápida) a Reserva Federal teria de manter as taxas de juro num nível superior.
Um risco que o economista do Berenberg Bank não exclui é que, em determinadas circunstâncias, os mercados financeiros podem começar a ter dúvidas sobre a sustentabilidade das contas públicas dos EUA – uma espécie de repetição, com implicações globais muito mais graves, da instabilidade que se gerou na liderança de Liz Truss no governo britânico. O risco seria haver uma espécie de “Liz Trump”, diz o economista.
A comparação feita pelo economista do Berenberg, com alguma dose de humor, vai ao encontro daquilo que Trump tem dito que o seu plano irá viabilizar: mais crescimento. Esse era o argumento usado pela britânica Liz Truss para justificar os grandes cortes de impostos que acabaram por não se concretizar (e que condenaram, também, a sua curta e conturbada governação).
Porém, com a dívida pública norte-americana a aproximar-se dos 36 biliões de dólares, acima dos 120% do PIB, um think tank independente sediado em Washington DC, o Committee for a Responsible Federal Budget, estimou que os planos orçamentais e económicos de Trump podem custar até 15 biliões ao longo de uma década (os planos de Kamala Harris, para comparação, podem custar até 8 biliões, segundo a mesma análise).
Por outro lado, o Peterson Institute for International Economics, outro think tank independente, estimou que o crescimento económico dos EUA até 2028 será 9,7% menor caso Trump vença e avance, mesmo, com a sua agenda de aumento das taxas alfandegárias e corte na imigração. O ritmo de subida dos preços, por seu turno, pode ser 28% mais rápido do que num cenário alternativo.
Estes são cálculos que Donald Trump desvaloriza, porém. “Eu sempre fui muito bom a matemática“, afirmou o candidato republicano, em entrevista à Bloomberg News. Trump recusa a ideia, com a qual concorda a generalidade dos economistas, de que as taxas alfandegárias mais elevadas vão levar a um aumento do custo de vida para os americanos – no limite, levar a economia para uma recessão: “A palavra mais bonita do dicionário, para mim, é ‘tarrifs‘ [taxas alfandegárias], é a minha palavra favorita“.
Cenário 3 – Kamala Harris vence, mas não domina Congresso
Uma presidência norte-americana nas mãos de Kamala Harris não traria, dizem os analistas, muitas diferenças em relação ao que tem sido seguido por Joe Biden nos últimos quatro anos: algum protecionismo económico (mas menos do que numa nova presidência Trump), uma atitude firme face à ameaça chinesa e um apoio robusto à NATO e à Ucrânia.
Na política orçamental, porém, Kamala Harris poderá ter um mandato com “mãos atadas” caso o Congresso fique sob controlo dos republicanos – um cenário que é visto como um dos mais prováveis nas eleições de 5 de novembro.
Nessas condições, muitas das promessas que Kamala Harris fez durante a campanha poderiam ficar na gaveta, incluindo os programas de apoio à construção imobiliária. Por outro lado, sem um controlo do Congresso, Kamala também dificilmente irá conseguir aumentar o imposto sobre as empresas de 21% para 28%, como é sua intenção.
Uma Presidente Kamala também iria, provavelmente, prolongar o Tax Cuts and Jobs Act (os cortes de impostos lançados por Trump em 2017) mas com algumas alterações de pendor mais social, beneficiando a classe média e baixa. A atual vice-presidente já fez sua a promessa de Joe Biden de nunca aumentar os impostos sobre as famílias com rendimentos anuais abaixo de 400 mil dólares.
Uma das propostas mais sonantes é a concessão de um crédito fiscal de seis mil dólares (cerca de 5.500 euros) às famílias por cada filho, na declaração de rendimentos relativa ao ano em que a criança nasceu. Em cima disso, Kamala Harris já admitiu, também, que poderá recuperar o crédito fiscal de 3.600 dólares que foi lançado na pandemia, para famílias da classe média e baixa.
Ciente de que o acesso à habitação é, também nos EUA, um tema crucial para uma boa parte dos eleitores, a candidata democrata apresentou medidas para essa área. Propôs, sem explicar exatamente como o irá fazer, que o Estado federal ajude a financiar a compra da primeira casa, com até 25 mil dólares. “Muitos americanos trabalham arduamente, poupam e pagam as rendas mês após mês. Mas não conseguem poupar o suficiente, depois de pagarem a renda e outras contas, para poupar o suficiente para dar entrada para a compra de uma casa”, afirmou a candidata às eleições de 5 de novembro.
“Para as empresas europeias, uma Presidência de Kamala [sem controlo do Congresso] não traria muitas alterações comparativamente com a situação atual”, afirma Holger Schmieding, do Berenberg Bank, não antevendo que esse cenário pudesse levar o banco a rever as estimativas de crescimento na Europa em baixa ou em alta, em relação àquilo que neste momento se espera.
Cenário 4 – Kamala Harris vence e democratas controlam, também, o Congresso
Este é, tudo indica, o cenário menos provável entre os quatro apresentados. Aí, sim, Kamala Harris teria poder para “reestruturar o sistema fiscal, com mais reduções de impostos para a classe baixa e para a classe média, em parte compensando isso com o aumento dos impostos cobrados às empresas”, diz Holger Schmieding.
Nos últimos dias, Kamala Harris apresentou um plano para multiplicar por 10 a dedução fiscal para os novos pequenos negócios, para até 50 mil dólares (atualmente são cinco mil dólares). Em particular, a candidata quer ajudar os homens negros a lançarem os seus próprios negócios, com até 20 mil dólares em empréstimos – que, em caso de cumprimento das regras, serão a fundo perdido.
A candidata democrata aventou, até, a hipótese de avançar com um perdão total das dívidas que os americanos tenham contraído para pagar cuidados de saúde, num modelo similar ao que foi aplicado nos empréstimos para estudos superiores.
Estas são medidas, tal como as relacionadas com a habitação, que Kamala Harris terá maior dificuldade em ver aprovadas se não controlar o Congresso. Mas se o partido democrata conseguir esse controlo, algo que as sondagens consideram improvável, “a política orçamental dos EUA tornar-se-ia ligeiramente mais expansionista do que no terceiro cenário, mas significativamente menos expansionista do que no segundo cenário (Trump com controlo republicano do Congresso)”, acrescenta o economista-chefe do Berenberg Bank.
Na sua análise comparativa, o Committee for a Responsible Federal Budget lamentou que “tanto o candidato republicano como o democrata apresentaram planos de campanha que, na melhor das hipóteses, manteriam o status quo e, na pior das hipóteses, aumentariam tremendamente a nossa dívida e o nosso défice orçamental”.
“Mesmo no melhor cenário”, salienta o estudo, “nenhum dos dois planos seria suficiente para colocar a dívida num caminho descendente e criar condições para que a América tenha um futuro orçamental mais seguro e sustentável.”