Reportagem em Calais, França
Já sabia que, mais tarde ou mais cedo, o desemprego teria de ser o seu destino. “Era uma questão de tempo”, diz ao Observador Xavier*, de 49 anos, depois de um turno na fábrica de produtos químicos Tioxide, em Calais, no Norte de França. Trabalha lá desde os 25 anos, mas neste momento está em contagem decrescente. Até ao final de setembro continuará o seu emprego como chefe de equipa naquela empresa que é detida pela norte-americana Huntsman. Depois, a empresa vai ter de atualizar a informação que tem no seu site. Dos 30 países onde diz estar presente, terá de tirar um. E aos 15 mil empregados que diz ter, terá de subtrair 108.
Sentado num bar perto do centro de Calais, Xavier recorda o dia em que ficou a saber que faria parte daquelas contas das quais só se sai a perder. “Já havia rumores de que a fábrica ia fechar há muito tempo”, começa por dizer. Foi praticamente assim todas as semanas desde que uma secção da fábrica foi fechada em 2015, quando cerca de 150 pessoas foram despedidas. Dessa vez, a direção chamou os trabalhadores à cantina da fábrica e anunciou a decisão que fora tomada a partir da sede da Huntsman, no Texas. Por isso, quando voltou a entrar por aquelas portas a pedido da direção, Xavier já sabia o que ia acontecer. “Parecia que já lhes adivinhava as palavras todas”, diz, com uma caneca de cerveja na mão, recordando a tarde de 17 de março de 2017.
“Apareceram os tipos da administração e eles vieram com a lenga-lenga toda deles, a dizer que era o melhor para a sustentabilidade da empresa, que era uma medida inevitável, que não havia nada a fazer, que tentaram tudo, que lamentavam muito…”, recorda Xavier, com um fastio notório. “Eles não querem saber de nós para nada e é mesmo assim”, resume. “Fizeram o que quiseram connosco, os sindicatos não fizeram nada que se aproveitasse e agora vamos todos para o olho da rua.”
Xavier começa a adaptar-se à ideia de não ter trabalho, mesmo que esse dia ainda esteja a cinco meses de distância. É esta a realidade de várias pessoas no departamento regional de Nord-Pas-de-Calais, onde a taxa de desemprego chegou aos 12,4% no final do ano — o que faz dele o sítio com o pior número a nível nacional. “É o nosso troféu”, sublinha Xavier, irónico.
É precisamente por viver nesta região e olhar à sua volta que Xavier está pouco otimista em relação ao seu futuro. “Aos 49 anos já sou velho, já ninguém pega em mim e se pegarem é por um salário completamente ridículo para a experiência que eu tenho”, diz. Neste momento, recebe um salário de 2.800 euros líquidos. Ou seja, praticamente o dobro do salário mínimo, fixado nos 1.457 euros.
Assim que entrar no desemprego, vai ter direito a um subsídio. Todos os meses, receberá cerca de 2 mil euros. “À partida não parece nada mau, mas eu ainda estou a pagar a casa e a minha mulher também está desempregada”, explica. O subsídio terá uma duração máxima de 28 meses. “Até nisso tive azar”, queixa-se. “Bastava ter 50 anos em vez de 49 e recebia o mesmo durante 36 meses.”
“Votei no estúpido do Hollande”
Xavier cresceu numa família de esquerda. Em casa, sempre que houve eleições, os pais, também eles operários, votavam no candidato comunista na primeira volta e, depois, no candidato socialista na segunda. E ele, quando passou a ter idade para votar, não fugiu à regra: primeiro comunista, depois socialista.
“Tem sido uma tradição da minha família”, explica. Há outra tradições, ainda: lá em casa, Xavier foi habituado a cantar os parabéns de uma maneira que hoje diz ser “especial”. Em vez de seguir a melodia convencional, conhecida em todo o mundo, os parabéns eram cantados consoante outras notas também sobejamente conhecidas em quase todo o globo: a Internacional.
“Nunca nenhum de nós foi militante do Partido Comunista Francês nem nada disso”, clarifica Xavier, que dá um especial peso à palavra “Partido”. “Mas éramos comunistas, isso sem dúvida.”
Xavier sindicalizou-se assim que entrou para a Tioxide, há quase 25 anos. Primeiro, entrou para a CGT, ligada ao Partido Comunista Francês. De seguida, por ser esse o sindicato associado aos trabalhadores da sua fábrica, entrou para o UNSA, mais moderado.
A última vez que Xavier votou à esquerda foi em 2012. “Votei no estúpido do Hollande”, diz, sem sombra de sorriso na cara. É mesmo revolta expressa — e que não tarda a explicar. “Eu votei no Hollande porque ele na altura fazia que era contra a austeridade, que ia ser a favor dos trabalhadores, que ia aumentar os impostos aos ricos e deixar aos pobres”, elenca, passando de memória, embora com algumas lacunas deixadas pelo tempo, o programa de Hollande em 2012. “E o que é que ele fez? Fez praticamente o contrário disso tudo”, queixa-se Xavier.
O bar está mais vazio do que cheio, pelo que, sem grande esforço, se conseguem ouvir as conversas das outras mesas. Porém, quando Xavier fala de Hollande, todos se calam, perante a subida de tom. “Peço desculpa, mas aquele homem tira-me do sério”, diz, para o ar. Ninguém parece censurá-lo.
Não há nenhuma espinha dos cinco anos de Hollande que encrave tanto a garganta de Xavier como a lei do trabalho — também conhecida por lei El Khomri, por ser esse o apelido de Myriam El Khomri, a ministra do Trabalho que a pôs em prática agosto de 2016. A lei, que demorou quase sete meses a ser aprovada e expôs sérias fraturas dentro do Partido Socialista, garantia, entre outras coisas, uma maior facilidade para despedir trabalhadores e também a primazia dos acordos nas empresas sobre os acordos sindicais. Na prática, a lei limitou em muito o raio de alcance dos sindicatos.
Não é por acaso que Xavier fala disto. “Eu fui despedido porquê?”, pergunta, como se a resposta fosse evidente. E para ele é mesmo: “Por causa destas leis que só servem para proteger os poderosos. O povo e os pobres que se lixem”. Ainda neste capítulo, põe também as culpas na União Europeia. “As leis que são feitas em Bruxelas não querem saber de nós, só querem saber da Alemanha”, queixa-se. “Alguma vez os senhores de Bruxelas me defenderam? Nunca!”
E é a União Europeia que Xavier continua a culpar quando muda de tema: os migrantes. Até há pouco tempo, Calais era uma cidade conhecida a nível nacional por ser um pólo essencialmente industrial e também por ser dali que parte o Túnel da Mancha, em direção a Dover, no Reino Unido. Porém, nos últimos anos, a tudo isso juntou-se o facto de Calais se ter tornado o último ponto da longa viagem de migrantes e refugiados africanos e do Médio Oriente em direção a Inglaterra. Mesmo o facto de aquela azáfama não ter comparação com o que se passa em Lampedusa, nas ilhas gregas ou nas fronteiras de países como a Hungria e a Sérvia, não serviu para apagar o facto de que, em Calais, tudo aquilo era novo.
A maioria dos migrantes e refugiados esperava oportunamente por uma hipótese de se esconder dentro do comboio que faz o Túnel da Mancha. Enquanto isso, viviam em Calais em condições sub-humanas. A maior concentração acontecia num espaço que ficou conhecido como “A Selva”. Antes de esta ter tomado proporções inéditas, havia vários campos dispersos um pouco por todas as zonas limítrofes de Calais e ao longo da autoestrada que dá acesso ao Túnel da Mancha. Um desses ajuntamentos era precisamente dentro do terreno privado da Tioxide.
“Eu não sou racista”, assegura Xavier, para depois acrescentar um “mas” ao que acabara de dizer. “Mas eu acho que as coisas chegaram aqui a um ponto de descontrolo total. Eles sujaram a cidade toda, mudaram completamente a nossa paisagem e estragaram a nossa reputação em todo o mundo”, queixa-se. “E isso acontece tudo porque temos as nossas fronteiras abertas, quem quer entra e pronto.”
Como a Frente Nacional conseguiu o apoio do proletariado
Xavier soube que a sua fábrica ia fechar 37 dias antes das eleições. Nesse dia, em casa, já depois de dar as notícias à mulher, tomou uma decisão: ia votar em Marine Le Pen.
“Para ser sincero, era uma coisa na qual eu já andava a matutar há algum tempo”, diz, em jeito de confissão. Ao longo dos anos, habituou-se a olhar para a Frente Nacional como um “partido proibido”. Porém, nos últimos anos, a sua descrença no Partido Socialista de François Hollande (e também de Manuel Valls, Bernard Cazeneuve, Myriam El Khomri, etc.) passou a dar lugar a uma vontade de ouvir o que Marine Le Pen tinha a dizer. “Há ali qualquer coisa nela, não sei bem o quê, que me cativa”, diz.
Entre aqueles que estudam a Frente Nacional, este “não sei bem o quê” que Xavier descreve tem um nome: desdiabolização. Esse objetivo foi posto em marcha quando, em 2011, no congresso de Tours, a Frente Nacional deixou de ser liderada pelo seu controverso co-fundador, Jean-Marie Le Pen, e passou a ser comandada pela sua filha mais nova, Marine Le Pen.
Apesar de partilharem um apelido e uma história comum, Jean-Marie e Marine têm também diferenças notórias entre si — e muitas delas passam pelo estilo e estratégia. Durante os seus anos à frente da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen ficou conhecido sobretudo pelas suas polémicas, sobretudo de cariz anti-semita e racista. Ao longo dos anos, foi repetindo a ideia de que as câmaras de gás usadas no Holocausto tinham sido um “detalhe” na História da Segunda Guerra Mundial. Já em 2014, no início de um surto de ébola em África, disse que havia uma problema de “explosão demográfica” mas que aquele vírus poderia “resolver isso em três meses”. E não foram poucas as vezes em que ameaçou os seus adversários políticos com “fornalhas”.
Tudo isto levou a que Marine Le Pen tratasse de afastar o pai do partido, num processo que teve tanto de fratricida como de instinto de sobrevivência. Depois de um processo que chegou aos tribunais, Jean-Marie Le Pen deixou de ser militante da Frente Nacional — mas, paradoxalmente, a justiça garantiu-lhe o direito de continuar a ser presidente honorário do partido.
Apesar do seu estilo controverso, Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta das presidenciais em 2002. Seja como for, foi esmagado por Jacques Chirac, que conseguiu 82,2% dos votos, contra 17,8% para o líder da Frente Nacional.
Agora, Marine Le Pen prepara-se para chegar mais à frente, com as sondagens a darem-lhe cerca de 40% dos votos, face a 60% para Emmanuel Macron. O que mudou aqui? O discurso de Marine Le Pen, que passou a focar-se no tema da imigração (um tema central da Frente Nacional, mas que só final dos anos 1980 passou a ser uma das suas bandeiras); do combate ao que chama de “Islão político” (por oposição às tiradas anti-semitas); e na defesa do protecionismo económico (depois de Jean-Marie Le Pen ter feito inequivocamente a defesa do liberalismo económico, por oposição ao comunismo).
Todo este processo, que além de ter a mão de Marine Le Pen conta também com autoria do vice-presidente Florian Philippot (que entrou para o partido apenas em 2011 dizendo, sem problemas, que nunca tinha votado em Jean-Marie Le Pen). O toque final de ambos teve lugar na campanha presidencial de 2017. O logótipo seria uma rosa azul, por provocação ao Partido Socialista, que usa aquela flor na sua cor natural. Por cima, apenas o nome “Marine”. “Le Pen” é uma marca a dispensar.
“Marine Le Pen é a única socialista nas eleições, logo…”
Com todas estas mudanças, e em plena crise de identidade da esquerda francesa, a Frente Nacional conseguiu cativar pessoas como Xavier, para as quais está completamente fora de questão votar em Emmanuel Macron, um banqueiro que saiu do mundo dos negócios para ser ministro da Economia de François Hollande, onde adotou medidas na linha da lei El-Khomri. “Para mim, é impossível votar num tipo que apoia todas as coisas que vão levar ao meu despedimento daqui a uns meses”, diz Xavier. “Marine Le Pen é a única socialista nas eleições, logo…”, diz. Logo, vota nela.
Os resultados da primeira volta demonstraram que Xavier está longe de ser um caso isolado nesta zona de França. No departamento de Pas-de-Calais, Marine Le Pen teve 34,34% dos votos, seguindo-se Jean-Luc Mélenchon, da extrema-esquerda, com 19,12%. Só em terceiro, com 18,46%, surge Emmanuel Macron. Os resultados são ainda melhores para Marine Le Pen quando se olha apenas para o caso da cidade de Calais. Aí, Marine chegou aos 37,17%. Macron, igualmente em terceiro, conseguiu menos de metade, ficando-se pelos 16,14%.
Mais altos são ainda os números entre a classe trabalhadora. Segundo um estudo da BVA, 43% dos operários franceses votaram em Marine Le Pen na primeira volta.
Apesar destes números, com quatro dias até às eleições, Xavier parece ter ainda algum pejo em dizer simplesmente que vota em Marine Le Pen. À mesa do bar, fá-lo em voz baixa, para que ninguém o oiça. Na fábrica, partilha esta informação com alguns colegas, mas somente aqueles com quem tem total confiança. “Há outros com quem não falo nem em sonhos”, diz, com ar de zangado. “Já sei como é, vão acusar-me de ser traidor, de ser um fascista e de ter mudado. Mudado? Eu não mudei nada. Eu continuo a estar no mesmo sítio. Os políticos é que baralharam tudo. Sobra-me a Marine.”
* A pedido do próprio, Xavier é um nome fictício.