O tema entra com particular força na agenda mediática e política nos invernos rigorosos ou nos verões mais intensos. É um problema de tal forma antigo que já nos habituámos a conviver com ele (mas nem sempre com sucesso, sobretudo quando as temperaturas teimam em manter-se baixas, como nos últimos dias, por força de uma massa de ar frio vinda do norte da Europa). “Em termos culturais, se em casa está frio, vestimos duas camisolas, tapamo-nos com um edredão, aquecemos o saco de água quente. Não ligamos o aquecimento porque sabemos que, se o fizermos, a fatura vai disparar”, diz ao Observador João Pedro Gouveia, investigador no Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (CENSE) da Universidade Nova de Lisboa que há 12 anos estuda o fenómeno da pobreza energética.
A tal massa de ar frio já atirou os níveis de consumo para máximos de dez anos. Segundo os dados da REN – Redes Energéticas Nacionais, no dia 5 de janeiro, às 20h00, o país atingiu um novo recorde no consumo de eletricidades, ultrapassando o máximo até então registado, de 11 de janeiro de 2010. Os elevados custos da energia e os baixos salários em Portugal não permitem manter esse nível de consumo por muito tempo — e os números ajudam a interpretar o fenómeno. Os dados mais recentes do Eurostat, referentes a 2019, mostram que Portugal é o quarto país da UE onde os cidadãos mais dizem não serem capazes de manter as casas quentes (quase dois milhões de pessoas — 18,9%), apenas atrás da Bulgária (30,1%), Lituânia (26,7%) e Chipre (21%). Nas contas feitas por João Pedro Gouveia e pela sua equipa, com base em diversos indicadores, estima-se que entre 1,77 e 3,67 milhões de portugueses sejam vulneráveis à pobreza energética.
Portugal ainda não tem uma estratégia nacional focada apenas no combate à pobreza energética (aqui entendida como a incapacidade em manter a casa quente no inverno ou arrefecida no verão), embora esteja a trabalhar nela, segundo já adiantou o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes. Por outro lado, no esboço do Plano de Recuperação e Resiliência entregue a Bruxelas, o Governo destinou 620 milhões para tornar os edifícios mais eficientes a nível energético. Mas o valor fica aquém do necessário e as medidas que até agora têm sido tomadas são “grosseiramente insuficientes”, defende um estudo realizado pela Universidade Nova de Lisboa em colaboração com o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) e a Rede Douro Vivo, cujo relatório final será divulgado nos próximos dias.
Nas contas da equipa de investigação liderada pelo engenheiro e docente universitário João Joanaz de Melo, a que o Observador teve acesso, seria preciso um investimento de 25 mil milhões de euros, repartidos entre o Estado e as famílias, para reabilitar os edifícios de primeira habitação e garantir o conforto térmico nas casas — um valor que é “o resultado acumulado do crescimento urbano desregrado de 40 anos”, nota o especialista em conversa com o Observador. É que, segundo os investigadores, dos quatro milhões de casas de primeira habitação, três em cada quatro (75%) não cumprem o atual regulamento do comportamento térmico dos edifícios (ou seja, são desconfortáveis ou insalubres).
Os 25 mil milhões de euros resultam da análise das medidas implementadas em diversos países, bem como do efeito de políticas adotadas no passado. E já têm em conta um “nível suficientemente interessante [de investimento] para uma família de classe média aplicar poupanças na melhoria da sua casa”.
Estado deve desembolsar 1,1 mil milhões por ano durante dez anos
Mas nem todas as famílias têm dinheiro para pensar em substituir janelas ou renovar o isolamento térmico — só a primeira intervenção (que pode implicar mudanças nas caixas de estores, por exemplo) pode chegar a custar perto de 10 mil euros, numa casa média. É por isso que o estudo coordenado por Joanaz de Melo sugere diferentes incentivos públicos consoante o estatuto socioeconómico dos agregados familiares. Nas contas dos investigadores, para as cerca de dois milhões de casas de primeira habitação que pertencem a famílias de classe média, o investimento necessário é de 16 mil milhões (dos tais 25 mil milhões), um valor dividido entre as famílias e o Estado. A “melhor” forma de o Governo as incentivar, segundo o estudo, é através de incentivos fiscais.
Os investigadores propõem uma dedução em sede de IRS de 30% do valor nominal do investimento na melhoria da eficiência energética das casas (desde instalação de painéis solares ou substituição de janelas e coberturas, isolamento térmico, etc.), sendo que o Estado recuperaria parte desse valor sob a forma de impostos, como o IVA. Em termos líquidos, para estas famílias, o Estado teria de pagar 17% do valor do investimento para “alavancar” as mudanças necessárias. A fatia de leão de investimento estaria, assim, a cargo das famílias.
No caso dos agregados familiares de baixos rendimentos, que vivem “no limiar da dignidade”, os incentivos fiscais “não funcionariam”, mas também não há “uma ferramenta que cubra tudo”. Este leque de famílias é abrangente — e inclui as mais pobres que vivem em casas arrendadas, onde os senhorios não têm incentivo em melhorar a eficiência energética (não seriam eles a usufruir do investimento). “É preciso perceber, casa a casa, qual a situação e como é preciso resolvê-la“, explica o também fundador do GEOTA. O financiamento do Estado a estas famílias já teria de estar “perto dos 100%” e ser “extremamente dirigido e cuidadoso”, com um acompanhamento “a nível local”, nos municípios e nas paróquias.
Investimentos familiares à parte, o Estado teria, assim, de gastar 1,1 mil milhões de euros ao ano, durante dez anos, em “eficiência energética e produção descentralizada”, dos quais 620 milhões de euros anuais no setor dos edifícios (doméstico e serviços). Este valor inclui 320 milhões de euros para melhorias na habitação de famílias de baixo rendimento. “A meta que propomos é ter todas as famílias em Portugal a viver em casas minimamente confortáveis e salubres até 2035, com a média intermédia de chegar a 3/4 das famílias até 2030 (o horizonte do Plano Nacional de Energia e Clima)”, antecipa João Joanaz de Melo.
Esse investimento público seria pago com a criação de uma taxa de carbono “a sério”, explica. A ideia seria repescar “alguns dos princípios” da fiscalidade verde defendidos pelo ex-ministro do Ambiente Jorge Moreira da Silva. “Propomos uma taxa de carbono universal, que seja essencialmente reciclada. Não pode ser mais um imposto que aumente a carga fiscal sobre as famílias e empresas, mas que seja reinvestida junto dos cidadãos que pagaram esses impostos”, defende o engenheiro. Isso implicaria, no entanto, mais do que quintuplicar a taxa sobre as emissões o carbono, dos atuais 23,92 euros para os 120 euros por tonelada, numa primeira fase, valor que aumentaria “progressivamente” até 190 euros por tonelada — uma forma de “sinalizar ao mercado que quem não tiver uma estratégia deliberada de reduzir as suas emissões vai pagar cada vez mais”.
Os números do investimento público necessários são algo diferentes da Estratégia de Longo Prazo para a Renovação de Edifícios, calculados por uma equipa da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), da Agência para a Energia (Adene) e do Instituto Superior Técnico (IST). Segundo um documento que esteve em consulta pública, seriam necessários perto de oito mil milhões de euros, durante 20 anos (384 milhões por ano), para acabar com a pobreza energética, entre substituição de vãos envidraçados por caixilhos de PVC com vidro duplo ou isolamento térmico de fachadas e coberturas. As diferenças de valores, segundo Joanaz de Melo, prendem-se sobretudo com critérios e definições.
Ao Público, o gabinete do Ministro do Ambiente explicou que o incentivo ao investimento por parte das famílias poderá ser feito através da atribuição de “cheques-energia” para famílias com baixos rendimentos, do alargamento da atribuição da tarifa social ou da “atribuição de subsídios” para a aquisição de bombas de calor ou painéis solares para aquecimento de águas.
Má construção, eletricidade cara e baixos rendimentos: como nos habituámos a passar frio em casa
O conceito de pobreza energética surgiu nos anos 70 do século passado, em plena crise petrolífera, e traduz a incapacidade das famílias para satisfazer as necessidades energéticas básicas, como aquecer ou arrefecer a casa. Mas só recentemente começou a ser estudado mais profundamente em Portugal, refere ao Observador João Pedro Gouveia, investigador da Universidade Nova. Por cá são, essencialmente, três as causas da pobreza energética: a má qualidade dos edifícios, o preço elevado da energia e os baixos rendimentos.
É que a maior parte do edificado foi construída antes dos anos 90 — só nessa década é que foi implementado o regulamento sobre níveis mínimos de desempenho energético. Daí que não seja de estranhar que a maior parte das casas tenha níveis de eficiência baixos (a nível europeu, estima-se que 75% do stock de edifícios seja ineficiente, um valor que não está muito distante da realidade portuguesa). Em Portugal, apenas 1,3 milhões de habitações têm certificação energética — obrigatória desde 2010 nas novas casas ou nas que estão no mercado de arrendamento ou venda. Desta amostra, mais de metade têm um certificado ineficiente, como mostram os números da Adene. Segundo João Pedro Gouveia, a presença de infiltrações e humidade nas casas portuguesas também é das piores na UE, à frente apenas do Chipre.
Acresce que em Portugal os preços da eletricidade são dos mais altos da UE (o país ocupa o oitavo lugar), sobretudo devido à elevada componente de taxas no preço final, de acordo com o Eurostat, o que inibe os portugueses de consumirem mais quando as temperaturas são mais rigorosas. Aliás, segundo a associação ambientalista Zero, o custo com eletricidade de um único aquecedor a óleo pode rapidamente ultrapassar os oito euros por dia, o que, ao fim de uma semana, excede o preço do próprio aparelho. O elevado custo da energia leva a que apenas 10% a 15% das casas tenham ar condicionado (e ter não significa usar). A percentagem de casas com aquecimento central também é reduzida, à volta dos 13%, de acordo com a Comissão Europeia.
Com os custos altos, conjugado com os baixos salários, o país está entre os que menos consomem energia em casa. “Não se consome energia suficiente”, aponta João Pedro Gouveia. “Habituámo-nos porque não há dinheiro para aquecer“.
Quando dizem que temos de reduzir as emissões e o consumo eu digo: ‘No residencial não pode ser assim, temos de aumentar o consumo, mas de forma eficiente. Em muitas fatias da população era mesmo necessário aumentar o consumo’”.
“Vivemos em casas rotas em termos de isolamento térmico”
Os portugueses continuam a priorizar a climatização ativa da habitação, menos eficiente, com aquecedores locais como irradiadores a óleo ou termoventiladores, conclui a Zero. “Estes equipamentos são escolhidos pelo baixo preço de aquisição e rapidez de colocação em funcionamento, mas são os sistemas mais ineficientes, traduzindo-se num custo significativo para os utilizadores em termos de utilização, ao mesmo tempo que proporcionam um reduzido conforto térmico, pois acabam por ser utilizados o menos possível de forma a evitar um aumento dramático da fatura de eletricidade”.
Estes aparelhos “foram vergonhosamente isentos das regras e rotulagem energética” previstas no regulamento europeu que entrou em vigor há dois anos. Segundo a associação, “alguns países e fornecedores de energia tiveram claramente interesse em esconder os níveis de eficiência energética desses produtos, desrespeitando o direito dos consumidores de se aperceberem das reais implicações do que estão a comprar”.
Preço da eletricidade em Portugal é o oitavo mais caro da UE. Melhorou dois lugares face a 2018
Mesmo o investimento em equipamentos como ar condicionado ou bombas de calor — que, embora tenha um custo elevado, leva a uma eficiência energética na produção de calor “quatro a cinco vezes superior à de um irradiador a óleo” —, não deve ser isolado. “Não faz sentido ter vidros simples ou um isolamento terrível e ar condicionado”, diz o presidente da Zero, Francisco Ferreira, ao Observador.
O atual regulamento térmico dos edifícios, embora “perfeitamente razoável”, nas palavras de João Joanaz de Melo, não está isento de falhas. “Está feito de tal maneira que promove a climatização ativa em vez de passiva. A forma mais simples no nosso regulamento de mudar de classe é pôr ar condicionado em casa. Mas o ar condicionado é um artigo de luxo”, considera. As casas “têm de ser bem construídas e bem geridas”, sob pena de se tentar “encher um balde de água que está roto”. “Se está roto, posso despejar a água que quiser nunca vou ter o balde cheio. É o que estamos a fazer em nossas casas. Vivemos em casas que são rotas em termos de isolamento térmico”.
Joanaz de Melo não defende necessariamente que nos tornemos nos países nórdicos, onde, embora a eficiência seja mais elevada, também há desperdício de energia. “Têm o mau hábito de ter as casas aquecidas a 20 graus e andar de t-shirt. É um desperdício de energia.”
As freguesias mais vulneráveis ao frio
Investir na eficiência energética não é, para os especialistas ouvidos pelo Observador, apenas uma questão de conforto. A saúde também entra na equação. Os países do sul da Europa, como Portugal, Itália ou a Grécia, apesar de terem invernos mais moderados face ao dos países do centro e norte europeus, têm taxas de excesso de mortalidade no inverno “consideravelmente superiores” em comparação com esses mesmos países, nota João Pedro Gouveia. O Healthy Homes Barometer 2019 identifica mesmo Portugal como o país da UE onde a percentagem de crianças em risco elevado de viver em habitações com más condições de saúde é maior (51%).
Para identificar os locais prioritários de ação, a equipa de João Pedro Gouveia, no CENSE, criou um índice para a classificação e o mapeamento da vulnerabilidade à pobreza energética, por freguesias, que tem em conta diversas tipologias de edifício, a posse de equipamentos de climatização, as necessidades de energia, e indicadores socioeconómicos, como o ganho mensal, a taxa de desemprego, nível de escolaridade, presença de crianças e idosos na região, entre outros. O índice “não permite identificar o número de pessoas [em situação de pobreza energética], mas possibilita a comparação regional para termos um ranking, um escalonamento de vulnerabilidade”.
Com esta ligação conseguimos perceber onde há mais impacto de apostar em janelas, ou onde é mais custo-eficaz apostar nos telhados, quais as soluções mais indicadas para determinadas regiões e quanto custa.”
De acordo com o índice, as regiões autónomas são as mais vulneráveis à pobreza energética no inverno.
Portugal ainda não tem uma estratégia de combate à pobreza energética
Criado em setembro, o programa “Edifícios mais Sustentáveis” (de apoio a intervenções, como melhorias no isolamento térmico, sistemas de ar condicionado e aquecimento, sistemas de energias renováveis e de eficiência hídrica, entre outros) rapidamente esgotou a dotação de 4,5 milhões de euros. Previa uma comparticipação do Estado de 70% nas intervenções, com um teto de 7.500 euros por edifício unifamiliar ou fração autónoma. Segundo dados da tutela divulgados a 14 de dezembro, até essa data tinham sido submetidas 4.234 candidaturas, das quais foram pagas 890 (num montante de 1,75 milhões de euros). De acordo com o comunicado do Ministério do Ambiente, as candidaturas vão ser reabertas no início de março deste ano, “contando já com montantes provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência”.
O programa não tem, porém, “qualquer orientação específica para pessoas em pobreza energética”, critica João Pedro Gouveia. Ou seja, apenas “ajuda a classe média e as pessoas com dinheiro a apostarem nas renovações”. O investigador considera que, nas medidas futuras, deve ser criado um critério segundo o qual apenas serão apoiadas as intervenções mais eficientes, como o investimento em fotovoltaico ou em isolamento. Isto porque se o financiamento estiver mais focado nas tecnologias de consumo e climatização, como ar condicionado, “não se aposta na génese do problema”. O Observador questionou a tutela e o Fundo Ambiental sobre que intervenções foram mais apoiadas ao abrigo do programa Edifícios Mais Sustentáveis, mas não obteve resposta.
João Pedro Gouveia é perentório na análise às medidas do Governo: “Não há planos em vigor para a pobreza energética”, pelo menos de combate ao problema. A criação da tarifa social na eletricidade e no gás natural, embora positiva, não responde à questão a nível estrutural, no longo prazo.
Já o Programa Casa Eficiente, de concessão de empréstimos para melhoria do desempenho energético dos edifícios, desde vidros, sistemas de ventilação ou sistemas de rega e piscinas, “correu mal, morreu em combate, ninguém concorreu”. “Os bancos estavam a dar taxas de juro iguais às que se pagam para comprar um carro ou uma televisão. Não era atrativo”, conclui.
Estratégias de combate à pobreza energética e bioeconomia em 2022
O foco, defende, deve ser dado aos mais pobres e em intervenções no “envelope do edifício” ou na energia fotovoltaica, que permita descer o custo da eletricidade. “Como é que os mais desfavorecidos têm dinheiro para investir no fotovoltaico? É aí que tem de entrar o Governo”.
O ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, já se comprometeu a tornar pública as estratégias de combate à pobreza energética e de longo prazo para a renovação de edifícios no início do próximo ano. Para já, o Executivo apenas sinalizou a disponibilidade em pagar cerca de 10% das faturas da eletricidade de todas as famílias portuguesas enquanto vigorar o novo confinamento, o que poderá custar entre 20 a 25 milhões de euros por mês.
Governo admite pagar 10% da fatura da luz a todas as famílias até final do confinamento
A nível local, alguns municípios começam a desonerar as casas que tenham classes de eficiência energética superiores, apesar de as intervenções de melhoria na eficiência energética poderem pesar no valor patrimonial, e embora não haja uma orientação concreta nesse sentido.
Artigo corrigido dia 14 de janeiro com a identificação do cargo de João Joanaz de Melo (é fundador mas já não é presidente da direção do GEOTA)