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Retrato de D. Sebastião atribuído a Cristóvão de Morais, que trabalhou na corte em Lisboa entre 1551 e 1573. A pintura faz parte da coleção real britânica e encontra-se em exposição na residência oficial da rainha na Escócia

Wikimedia Commons

Retrato de D. Sebastião atribuído a Cristóvão de Morais, que trabalhou na corte em Lisboa entre 1551 e 1573. A pintura faz parte da coleção real britânica e encontra-se em exposição na residência oficial da rainha na Escócia

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Quem foi Marco Tulio Catizone, o impostor calabrês que se fez passar por D. Sebastião em Veneza

O rei português morreu em África, mas muitos não quiseram acreditar. Os boatos atravessaram fronteiras e alimentaram a narrativa de um falso rei em Veneza. André Belo investigou o extraordinário caso.

Doutorado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, com uma tese sobre a Gazeta de Lisboa e as notícias manuscritas portuguesas do século XVIII, André Belo nunca pensou que o estudo do sebastianismo estaria no seu horizonte. Foi de forma inesperada que caiu no “caldeirão do sebastianismo”, como lhe chama, após um convite para apresentar num colóquio uma comunicação sobre falhas na transmissão da memória coletiva. O historiador, que se tinha começado a interessar por questões de identidade social e cultural com um estudo sobre a imagem dos negros no teatro ibérico dos séculos XVI e XVII, achou que o sebastianismo encaixava que nem uma luva.

“Comecei a ler [sobre o tema] e interessei-me”, admitiu em entrevista ao Observador. Quando deu conta, “já estava dentro” do “caldeirão”, do qual só saiu recentemente, com a publicação de Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, em que aborda os problemas da transmissão da história da morte do rei português, anunciada, comprovada e documentada, mas sobre a qual continua a pairar uma aura de mistério que a passagem do tempo não conseguiu afastar.

No centro do livro, está a fantástica história de Marco Tulio Catizone, um calabrês que, na década de 1590, apareceu em Veneza dizendo que era D. Sebastião. Sem qualquer conhecimento da língua portuguesa e, segundo algumas testemunhas, sem qualquer parecença física com o rei português, Catizone conseguiu convencer várias figuras venezianas e portuguesas de que era D. Sebastião e que tinha sobrevivido à Batalha de Alcácer Quibir, tornando-se o centro de uma intriga política com repercussões em Veneza, Espanha e Portugal.

As razões da impostura permanecem um mistério. Do mesmo modo, pouco ou nada se sabe sobre a personagem principal da trama. “Há um lado enigmático nessa figura”, apontou o historiador, que vive em França, durante a entrevista por videochamada com o Observador. “Aliás, ele escondia-se. O verdadeiro Catizone nunca apareceu”, disse André Belo. “Ele dissimulava a identidade, e é difícil acreditar nas declarações que fez. É difícil perceber quem era o verdadeiro Catizone.”

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"Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião" surgiu de um encontro imprevisto do autor, o historiador André Belo, com o sebastianismo. O livro foi publicado em setembro, pela Tinta-da-China

Diz no livro que “caiu” dentro do “caldeirão do sebastianismo”. Parece que foi por acaso.
Sim. Ou pelo menos não estava à espera.

Não era um tema que pensava investigar?
Não era um tema que estivesse nos meus horizontes, foi um bocadinho fortuito. Partiu de um convite para apresentar uma coisa num colóquio sobre falhas na transmissão da memória coletiva e achei que o sebastianismo entrava exatamente nessa temática. Comecei a ler sobre o tema e interessei-me. A certa altura, já estava dentro.

Foi ficando preso. 
Sim, com vontade de aprofundar e de contar essa história, sobretudo a do falso D. Sebastião de Veneza.

O livro parte da ideia de que continua a existir uma certa relutância em afirmar que D. Sebastião morreu em Alcácer Quibir, apesar das fortes evidências históricas. Porquê? O mito sebastianista é assim tão forte que é impossível fazê-lo cair por terra?
Penso que é isso. O mito ganhou uma importância muito grande com o tempo. Aliás, esse processo não foi linear. Se pensarmos na época contemporânea, à qual estamos mais ligados, nos escritores que falaram de D. Sebastião, que evocaram o mito sebastianista na poesia, no teatro e até no cinema, de alguma maneira. Essas coisas ficaram tão fortemente ligadas a uma narrativa de identidade que a certa altura o passado histórico, o que dizem as fontes, passou claramente para segundo plano. Não é que não tenha havido historiadores que não tenham afirmado a morte do rei e que não a afirmem. Não é isso, mas há de facto uma relutância em reconhecer a morte do rei, que é significativa. Foi, aliás, por isso que me interessei pelo tema, por essa surpresa.

O que é que dizem as fontes? 
A questão não é saber se ele morreu ou não, mas se ele morreu na batalha. Foi a hipótese da sobrevivência que abriu a porta ao sebastianismo. As fontes não são concordantes em relação a como ou quando morreu, dizem-se coisas diferentes sobre a morte do rei. E também há fontes que dizem que ele fugiu, ou que põem a hipótese da fuga. Mas o que a maior parte das fontes de testemunhas presenciais oculares dizem é que o corpo foi encontrado no dia seguinte à batalha [5 de agosto de 1578], aparentemente a pedido do vencedor, o sultão marroquino, que foi reconhecido por um moço da câmara [do rei] e que foi identificado formalmente numa cerimónia de oficialização da morte do rei pelos principais senhores nobres portugueses que estavam cativos. As fontes são muito claras nisso. São várias, são concordantes. Não há razão nenhuma para duvidar. O processo histórico complexo que se seguiu é que permitiu que ficassem dúvidas e que ficasse esquecido esse reconhecimento, que tem uma coisa fundamental que me deixa bastante siderado: houve um juiz, chamado Belchior do Amaral, que assistiu ao enterro do rei para o poder oficializar. Houve uma intenção clara, não apenas do sultão de Marrocos, mas dos próprios portugueses, de oficializar e certificar a morte, até porque não podia haver sucessão da coroa em Portugal se a morte não fosse comprovada e houvesse sérias dúvidas sobre a sobrevivência do rei à batalha. O cardeal D. Henrique, que foi quem herdou a coroa, não podia ser aclamado rei. Foi porque a morte de D. Sebastião foi oficializada que ele foi aclamado rei.

D. Sebastião em 1562, pelo pintor Alonso Sánchez Coello, alguns anos antes de ascender ao trono português. O rei era neto de D. João III

Mas chegou a haver algumas dúvidas, até pela lentidão com que a informação chegava a Portugal. 
Exatamente. Demorou algumas semanas até a notícia ser oficializada, o que é normal. E obviamente que havia razões para pôr em dúvida a morte do rei e a vontade de não acreditar. Era uma notícia muito má, porque era um notícia que punha em risco a independência. Havia um sentimento português que era forte e a morte de D. Sebastião punha em risco uma dinastia. Já se sabia que os principais candidatos eram os Áustria, que era D. Filipe II.

Não era apenas uma batalha perdida, era muito mais do que isso.
Era uma batalha perdida e muita gente desaparecida ou morta da qual não havia notícias. Soldados, nobres… Uma parte significativa do reino estava pessoalmente interessada nas notícias que vinham do norte de África. O que acho também interessante, e há historiadores que escreveram sobre isso, é que acreditar na sobrevivência do rei ou nas notícias da sua sobrevivência poderia dar algum alento a quem esperava pela sobrevivência de outros. Havia provavelmente uma certa confusão entre estes vários planos, mas do ponto de vista oficial das elites, de quem tinha o poder, etc., a partir de determinada altura, não havia mais lugar para a incredulidade.

A morte do rei foi anunciada, o cardeal D. Henrique foi aclamado rei, mas os boatos de sobrevivência não desapareceram, antes pelo contrário. No livro, dá conta de vários inquéritos movidos por causa de notícias falsas.
Lá está, porque estavam a difundir notícias falsas que se sabiam falsas. Esses inquéritos não eram para saber se o rei estava vivo ou não, eram para saber quem é que tinha posto a circular essas notícias que eram concebivelmente falsas.

"O corpo foi encontrado no dia seguinte à batalha [5 de agosto de 1578], aparentemente a pedido do vencedor da batalha, o sultão marroquino, que foi reconhecido por um moço da câmara [do rei] e que foi identificado formalmente . As fontes são muito claras nisso."
André Belo, historiador e autor de Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião

Esses boatos existiam porque havia a tal necessidade de acreditar que nem tudo estava perdido ou teriam um intuito político?
Provavelmente as duas coisas. Os testemunhos que recolhi apontam para uma intenção política, que tinha a ver com a conjuntura das Cortes, com o facto de se querer atrasar o processo de sucessão, atrasar uma decisão e ganhar um bocadinho de tempo. Isso interessava a certos setores opostos à candidatura do rei de Castela. Acho significativo sublinhar o uso político do rumor, que é muito forte. A impostura de Veneza foi uma continuação disso, no fundo. Depois houve casos, e isso é conhecido, de pessoas que espalharam [boatos] de forma um pouco avulsa, sem ligação com essa parte política. Eram profecias que diziam que o rei estava vivo. Pode haver motivações diferentes. E no acreditar, as pessoas podem ter acreditado de forma sincera, até porque a informação podia não circular de forma transparente, com algumas notícias a circularem discretamente, outras mais abertamente. Mas a instrumentalização política dessas notícias falsas parece-me bastante clara, sobretudo no início.

Independentemente das motivações, todos estes boatos significavam a mesma coisa — a esperança de um Portugal independente.
A palavra independência não era muito usada na altura, falava-se sim de ter um rei português. Um sentimento comunitário português forte, que existia, isso parece muito claro, podia exprimir-se de diferentes maneiras. Mesmo os portugueses com responsabilidades, poder ou riqueza que aderiram à chamada União das Coroas, que compactuaram, aclamaram o novo rei e aderiram a uma nova dinastia podiam guardar esse sentimento comunitário português. Penso que o sebastianismo é só uma das expressões desse sentimento, que teve várias formas de expressão. Uns apoiaram o partido do D. António, prior do Crato, e quiseram aclamá-lo rei; outros estavam à espera de um encoberto, que não era necessariamente D. Sebastião; e outros simplesmente queriam que dentro desta união de coroas Portugal fosse dignificado, que o rei fosse a Portugal e desse a Lisboa a sua importância. É preciso dizer que o sentimento patriótico dessa época não é o mesmo que podemos ter hoje e que podia conviver com diferentes formas de adesão. A expectativa de que Portugal fosse mais forte com o resto da Espanha também estava presente. A Câmara de Lisboa pediu com insistência ao rei que viesse a Portugal, que instalasse a sua corte na cidade. Isso foi estudado muito bem pelo grande historiador espanhol Fernando Bouza. A insistência em dar uma importância maior, uma centralidade maior a Portugal e à cidade de Lisboa, que seria a capital de um grande império multicontinental que dava a volta ao mundo, podia fazer parte de uma forma de patriotismo. Às vezes há uma tendência um bocado anacrónica, que era típica da historiografia nacionalista também, de projetar no passado uma espécie de nacionalismo que tinha [nessa época] formas diferentes.

Marco Tulio Catizone, o calabrês sem parecenças com D. Sebastião que se fez passar pelo rei português

Uma geração após a batalha, surgiu em Veneza um homem que dizia ser D. Sebastião. Não sabia falar português e não era fisicamente parecido com o rei, mas conseguiu convencer muitos de que era o monarca desaparecido. É a essa história que dedica grande parte do seu livro.
É uma história muito interessante, porque se passa longe de Portugal. As notícias circulavam à distância, mas havia várias fontes de informação e bastava que uma carta dissesse que D. Sebastião tinha aparecido em Veneza para isso se espalhar como uma “voz pública”, como dizem as fontes, e muita gente ficar a saber, sobretudo nos meios urbanos, onde se comentava e onde se ficava à espera de saber mais. É um caso muito interessante, porque aconteceu 20 anos depois; porque provocou de facto um murmúrio, um falatório, mas com uma clara intenção política em Portugal e especialmente em Lisboa; e porque moveu venezianos que tinham interesse em combater o lado espanhol das elites em Veneza. Houve uma série de gente que tinha interesse em que o rumor se espalhasse. É por isso que falo em sebastianistas estrangeiros. Não é novidade, já tinha sido referido por outros historiadores.

São precisamente os venezianos que começam por acolher e proteger essa figura, não são os portugueses.
É uma interpretação que faço e que tento demonstrar, que houve um apoio inicial dos venezianos que não teve a ver com os portugueses. Não houve um plano português para que D. Sebastião aparecesse. Não houve uma manipulação feita de fora por portugueses e os portugueses que se bateram mais pela causa foram os que seguiam o prior do Crato e que estavam no exílio. O prior do Crato já tinha morrido e esse pequeno grupo interessou-se muito pela causa. Eles estavam divididos entre eles, havia microgrupos, e houve uma união à volta dessa história.

Uma geração após a Batalha de Alcácer Quibir, surgiu em Veneza (aqui numa pintura de Vittore Carpaccio) um homem que dizia ser D. Sebastião. Catizone era calabrês e não sabia falar português

Didier Descouens

Só depois de o boato começar a ganhar corpo é que o falso rei, que se chamava Marco Tulio Catizone, começou a ser visitado por portugueses. Como é que isso aconteceu?
Houve venezianos que começaram a dizer que ele era D. Sebastião e depois ele próprio começou a dizê-lo. Não se sabe exatamente o que começou o quê. Nas declarações que fez aos juízes, Marco Tulio Catizone disse que não tinha sido ele, o que também podia ser uma forma de simplesmente atirar a responsabilidade para cima de outros. Penso que é impossível saber exatamente [como aconteceu], as fontes não permitem chegar a uma conclusão. Os portugueses do gueto de Veneza, os novos portugueses e outros que lá estavam, inclusive antigos seguidores do prior do Crato que podiam não ser cristãos-novos, interessaram-se, começaram a fazer perguntas e a corresponder-se para Paris e para outros lugares dizendo que havia um [homem] que dizia que era D. Sebastião. Foi assim que a história foi ganhando forma até se tornar numa coisa plausível para alguns [portugueses], que começaram a fazer uma espécie de peregrinação a Veneza para ver com os seus próprios olhos.

Alguns dos portugueses que o visitam mostram-se muito céticos, mas acabaram por se deixar convencer, apesar da falta de evidências. Como é que isso foi possível?
É uma questão à qual é difícil responder. Era o meu professor da universidade, grande historiador, infelizmente desaparecido demasiado cedo, António Hespanha, que dizia que as pessoas no passado não eram estúpidas e portanto não devemos tratá-las com o paternalismo de quem acha que é mais inteligente. Os sebastianistas também não eram estúpidos, eram teimosos, certamente. Essa questão é uma verdadeira questão para um historiador que tenta perceber como é que é possível, se acreditaram, não acreditaram. No fundo, não estavam convencidos de que não era D. Sebastião? Acho que se calhar há um bocadinho dessas coisas todas, mas é difícil para nós perceber. Estamos sempre a pensar com critérios lógicos, parece-nos absurdo que fosse de outra maneira, mas sabemos que há pessoas hoje em dia que defendem coisas absolutamente absurdas. Como é que é possível que haja pessoas que defendem que a Terra é plana? É o mesmo tipo de pergunta, no fundo. Acreditavam realmente que uma pessoa que não falava português podia ser D. Sebastião? Eles argumentavam que sim, que era possível, que ele teria esquecido como falar português, que tinha andado muitos anos fora de Portugal… Havia explicações plausíveis, mas acreditavam nessas explicações ou eram simplesmente subterfúgios e formas de esconder aquilo que realmente sabiam? Acho que é impossível responder a essas questões. Existe uma dimensão de crença que é fundamental. Acho que é indiscutível e que tem de ser considerada. E se calhar naquela época aquele tipo de explicações sobre a memória podiam ser mais plausíveis. Mas também é verdade que havia pessoas que diziam que não era possível, que ele era calabrês, que falava calabrês e não português. Havia uma forma de refutar a identidade portuguesa e régia do pretendente que coexistia com estes argumentos.

"Não houve um plano português para que D. Sebastião aparecesse. Não houve uma manipulação feita de fora por portugueses e os portugueses que se bateram mais pela causa foram os que seguiam o prior do Crato e que estavam no exílio."
André Belo, historiador e autor de Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião

Depois há o extraordinário caso de frei Estêvão de Sampaio, que conseguiu reunir em si os dois lados — no início, negou totalmente a possibilidade de Catizone ser D. Sebastião, mas depois convenceu-se do contrário e seguiu esse homem até ao fim. É um caso para o qual também não encontrou explicação?
Acho que é um caso fascinante. Foi por isso que quis fazer dele um dos protagonistas da minha narrativa. Criei personagens, de certa maneira, e tentei adotar o ponto de vista dessas personagens, que são personagens históricas, mas não inventei nada. É um caso extraordinário, porque aquele que mais duvidou no início foi aquele que foi mais longe no seu empenhamento. E penso que, até ao fim, ele acreditou e duvidou. Não sei, é a única explicação que tenho para tal obstinação. Havia outras motivações, mas a questão da crença deste frade é muito interessante. Também impossível de decidir totalmente, mas muito interessante de analisar, na medida do possível, com as fontes que temos. E temos bastantes, apesar de tudo.

João de Castro, o “São Paulo da religião sebastianista”, e as muitas vidas de uma crença capaz de se regenerar

Outra personagem importante é João de Castro, o chamado “São Paulo da religião sebastianista”. 
Exato. Digo no livro que é uma frase de João Lúcio de Azevedo, mas foi Oliveira Martins que se referiu primeiro a ele como o “São Paulo da religião sebastianista”. E sim, tem uma importância grande, porque foi o ideólogo mais importante. Acaba por ser se calhar aquele cujos textos ficaram mais conhecidos na cultura portuguesa, também por ser alguém que era descendente de gente muito importante, de um governador da Índia e de um vedor da fazenda de D. Sebastião. Tinha uma origem ilustre, embora marcada pela “mácula” da ilegitimidade. Ele tem muita importância neste episódio e tem importância também, ou mais ainda, pelos textos que escreveu à volta dele, como a vida de D. Sebastião, reescrita à luz destes acontecimentos, da versão sebastianista da história. Foi também o primeiro a publicar as famosas trovas do sapateiro de Trancoso, Bandarra, que vieram a ter uma posteridade grande na cultura portuguesa e no sebastianismo posterior. Ele fixou, talvez mais até do que outros, um corpus sebastianista.

Qual era o interesse de João de Castro, que era um dos apoiantes do prior do Crato, no D. Sebastião de Veneza?
Penso que o interesse era semelhante ao de frei Estêvão de Sampaio e também se pode colocar a questão da crença. Acreditou? Estou convencido que sim, não vejo razões [para achar o contrário]. Ou pensamos nesta gente como grandes manipuladores ou puros manipuladores e vamos ter de deitar fora centenas de páginas que o João de Castro escreveu ou levamos o que escreveu a sério e aceitamos que ele acreditou. Pode ter tido dúvidas, mas acreditou. Parece ter acreditado quase até ao fim da vida. Em 1620 e poucos, ainda estava a escrever textos sobre o D. Sebastião e sobre onde estaria. Ele negou que tivesse morrido em África, negou que tivesse morrido em Sanlúcar de Barrameda [onde o falso D. Sebastião morreu], porque não podia ter sido morto pelo rei e portanto teria sido preso nalgum lado, teria ficado escondido. É um caso de perplexidade. Há aspetos que temos dificuldade em perceber também pelas diferenças das épocas. Havia fatores que ajudavam a fazer com que as pessoas acreditassem que, para nós, são de deitar fora. Somos filhos de uma cultura iluminista e racionalista. Por exemplo, o papel das profecias é muito importante. Refiro que há textos que eram interpretados como proféticos, imagens, como as estátuas de S. Marcos. João de Castro interessou-se pelas estátuas e mosaicos da Basílica de S. Marcos porque, em Veneza, acreditava-se que tinham valor profético. Interpretar aqueles mosaicos era uma coisa perfeitamente legítima e partilhada. Não era só uma coisa dos sebastianistas, a crença de que havia imagens, textos, que tinham valor profético era muito partilhada. João de Castro, com uma alta ideia do seu papel histórico, considerava-se de uma certa maneira um profeta. Ele queria ser o protagonista da maravilhosa verdade, para usar mais ou menos a linguagem dele, da aparição de D. Sebastião. Daí de facto a analogia com S. Paulo. Faz sentido, porque S. Paulo teve esse papel de profeta, de anunciador da boa nova.

Filipe II em 1573, cinco anos antes da tragédia de Alcácer Quibir, num retrato da pintora italiana Sofonisba Anguissola. Filipe herdou o trono português após a morte do cardeal D. Henrique

Wikimedia Commons

O século XVI foi muito rico em fenómenos ligados ao misticismo. Refere por exemplo o caso da freira Maria da Visitação, conhecida pelas suas qualidades proféticas, que João Castro pensou consultar em Lisboa. Podemos dizer que a época também foi propícia ao surgimento do sebastianismo?
Absolutamente. Consultar uma freira que tinha fama de santidade e de ser capaz de profetizar era uma coisa normal. Às vezes eram os próprios reis que queriam recorrer a isso. Fazia parte da cultura religiosa e da sensibilidade dessa época.

Conseguiu chegar a alguma conclusão em relação aos motivos que levaram Marco Tulio Catizone a assumir-se como rei de Portugal?
Não consegui, acho que dou alguns elementos para tentar perceber. Há um lado enigmático nessa figura. Aliás, ele escondia-se. O verdadeiro Catizone nunca apareceu. Ele dissimulava a identidade, e é difícil acreditar nas declarações que fez. É difícil perceber quem era o verdadeiro Catizone, ainda mais alguém que passou o tempo todo, ou a maior parte do tempo, a dizer que era D. Sebastião.

Porque ele assumiu outras identidades antes de ser D. Sebastião, correto?
Aparentemente, sim. As fontes apontam para aí. Prometeu à família da mulher com quem se queria casar que tinha uma renda muito importante, que era nobre. Antes de chegar a Veneza, quando estava em Verona, disse que era um nobre veneziano, que chamava Diego de Aragão ou Aragona, um nome um bocado implausível para um nobre veneziano, já que Aragão é na Península Ibérica. Parece que de facto passar-se por outras identidades fazia parte do comportamento desta figura. Porque é que ele o fez, com que ambição concreta é que o fez [não sabemos]. Enquanto não fosse preso, fingir ser D. Sebastião significava ser considerado e bem tratado por certas pessoas. Podia haver um interesse material, de reconhecimento, mas porque é que ele manteve esta ficção até ao fim, é isso que interroga. Embora, como digo na conclusão, estou convencido, e como sugeriu um historiador francês com quem discuti o assunto, que ele mais do que querer ser D. Sebastião e por hipótese absurda chegar ao trono de Portugal, queria dizer que era D. Sebastião, que é uma coisa bastante diferente. Uma coisa é querer fazer-me passar por D. Sebastião, ir enganando e conseguir passar essa mentira no meio social à minha volta, num grupo, outra coisa é querer realmente ser reconhecido como D. Sebastião em Portugal e Lisboa. Aí a música era outra. Acho que não tinha intenção nenhuma de sair do barco onde estava preso e fugir, como lhe propunha o frei Estêvão e os portugueses que queriam que ele fugisse.

"Há um lado enigmático nessa figura. Aliás, ele escondia-se. O verdadeiro Catizone nunca apareceu. Ele dissimulava a identidade, e é difícil acreditar nas declarações que fez. É difícil perceber quem era o verdadeiro Catizone, ainda mais alguém que passou o tempo todo a dizer que era D. Sebastião."
André Belo, historiador e autor de Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião

Catizone nunca tomou uma iniciativa nesse sentido. Limitou-se a afirmar-se como D. Sebastião e a pedir algum dinheiro aos apoiantes.
Sim, ele nunca tomou uma iniciativa nesse sentido. É também interessante isso, ver que havia dentro de uma mesma espécie de conspiração dois pontos de vista que pareciam que estavam juntos e que na verdade não estavam. E não estavam porque, se calhar, não se perceberam um ao outro. Frei Estêvão de Sampaio não percebeu quem é que tinha à frente. Marco Tulio Catizone terá percebido a certa altura e não terá querido embarcar mais nessa aventura.

Porquê? 
Há claramente uma contradição e qualquer coisa que é perturbadora nessa reivindicação. Fazer-se passar-se por outrem era bastante comum nesta época, por diferentes razões. O mais comum era fazer-se passar por religioso, por exemplo, frade dominicano ou franciscano, porque era uma maneira de pedir esmola e de obter dinheiro. Isso era comum. Havia várias razões para fazer aquilo a que chamamos uma impostura, passar-se por um estatuto ou uma identidade que não era a sua. Já fazer-se passar por um rei, e ainda por cima um rei que a maioria das pessoas sabia que estava morto apesar dos rumores em contrário, e assumir esse papel, significava enfrentar uma das monarquias mais poderosas da Europa. É um passo maior do que a perna, como se costuma dizer. Usando palavras que vêm da psicologia, acho que é uma forma de inconsciência, de megalomania, de loucura. Não sei. Nenhuma dessas palavras me satisfaz, então não é isso que defendo no livro. Não há uma tese em torno do que realmente queria Mario Tulio Catizone.

O sebastianismo continua vivo? Diz no livro que não tem ambições de declarar o seu fim.
Não tenho, porque já houve várias pessoas que tentaram fazer isso e deram-se mal. Foi uma profecia que se revelou falsa — o sebastianismo resistiu. Daí o princípio de modéstia sobre declarações desse género. O que digo no fim da primeira parte do primeiro capítulo é que me parece que o sebastianismo como construção ideológica, que o nacionalismo português e não apenas o Estado Novo construíram, morreu. As pessoas já não se reconhecem nessa ideologia. Conhecem certos aspetos da história, por isso é que falo no “sebastianismo anedótico”. Lá está, o sebastianismo do Estado Novo também não tem nada a ver com o sebastianismo do final do século XVI, que estudo. Ele foi-se regenerando. Isso faz dele um objeto desmesurado. Numa coisa assim, com uma dimensão tão grande ao longo dos tempos, cada época que tem sebastianistas é uma época diferente. Por exemplo, o período das invasões francesas. Não o estudei, não vou estudar, mas tenho uma verdadeira curiosidade em saber com que argumentos é que se defendia que D. Sebastião podia estar vivo no princípio do século XIX. Em cerca de 1600, D. Sebastião tinha perto de 50 anos, não era impossível que estivesse vivo do ponto de vista da longevidade humana. Agora, acreditar no regresso de D. Sebastião em 1808 ou 1809, como alguns diziam que acreditavam, é um desafio também para o historiador. O que é que significa isso? Porque é que se defendia isso? Certamente com razões políticas. Com que argumentos? As pessoas acreditavam ou não acreditavam? Põem-se questões do mesmo tipo para outras épocas.

Isto para dizer que este sebastianismo é totalmente diferente do sebastianismo a que chamo da época contemporânea, do final do século XIX, da primeira metade do século XX. Acho que não podemos excluir a possibilidade de uma nova reencarnação do sebastianismo na cultura portuguesa. Não sei de onde virá, mas porque não? Não o desejo. Não quero matá-lo, mas o sebastianismo tem este lado de que nunca gostei, esta coisa saudosista de olhar para o passado. Sou historiador, interessa-me olhar para o passado, mas com olhos de historiador, não com esta ideia messiânica por trás, como uma grandeza perdida que pode ser restaurada, com as implicações políticas que isso tem também, de acreditar ou de querer um homem forte que nos venha salvar do caos. Por isso, preferia que não ressurgisse das cinzas, qual fénix, mas quem sabe?

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