“Haverá uma ofensiva, não só em Mariupol, mas também noutros locais, cidades e vilas. Lugansk e Donetsk — primeiro, vamos fazer a libertação completa… depois, tomaremos Kiev e outras cidades.” As palavras são do Presidente da república russa da Chechénia, uma parcela de território na zona sudeste da Rússia, com cerca de 1,4 milhões de habitantes, pouco mais de 17 mil km2 instalados entre o Mar Cáspio, à direita, e o Mar Negro, à esquerda, e que a sul faz fronteira com a Geórgia. Esta segunda-feira, Ramzan Kadyrov partilhou um vídeo no seu canal de Telegram onde dava a entender que a ofensiva na Ucrânia está para durar. Isto depois de as tropas russas terem deixado um rasto de morte na sua passagem pela região de Kiev e de estarem a reposicionar as suas forças na região de Donbass, a leste do país.
“Garanto-vos: não será dado nem um passo atrás“, afirmou perentório o líder checheno, de 45 anos, que se descreve como o “soldado raso” do Vladimir Putin.
Ramzan #Kadyrov says he received an order from #Putin to conquer first of all the regions of #Donetsk and #Luhansk and after that #Kyiv and all the other cities. pic.twitter.com/EbH2YxkwaX
— NEXTA (@nexta_tv) April 11, 2022
Foi precisamente pela mão do atual Presidente russo que o líder checheno chegou ao poder. Ramzan e o pai, Akhmad Kadyrov, participaram nas duas guerras da Chechénia, sendo que na primeira, que decorreu entre 1994 e 1996, estavam do lado das forças pró-independência; mas, no segundo conflito (1999-2000) — nesta altura, Putin ainda era primeiro-ministro — já se encontravam do lado das forças russas, contribuindo para derrotar os independentistas.
A Chechénia acabou por se tornar uma das regiões da Rússia e Akhmad Kadyrov foi eleito Presidente daquela república em 2003, mas foi morto sete meses depois, quando uma bomba atingiu o estádio de Grozny, onde decorriam as comemorações da vitória na II Guerra Mundial. Segundo a New Yorker, o filho, Ramzan, foi a Moscovo no próprio dia para se encontrar com Putin e, logo nessa altura, houve uma ligação entre os dois.
Ramzan Kadyrov, que até à morte do pai liderava a sua milícia pessoal e tinha como principais interesses o boxe e o levantamento de pesos, tornou-se Presidente da república russa da Chechénia em 2007, pouco depois de ter completado 30 anos — idade mínima para ocupar o cargo. Desde então, tem governado a região sempre com o apoio de Putin, que se refere ao checheno como um “filho”. Aliás, a devoção e lealdade em relação ao líder russo são constantemente demonstradas e aparentemente promovidas pelo governo russo, como se pode ver num artigo publicado no jornal pró-Kremlin Izvestia, em 2016.
“Como patriota, soldado raso do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, jamais me envolverei com assassinos e traidores do meu país (…) Temos [na Chechénia] uma vila chamada Braguny, onde há um ótimo hospital psiquiátrico. A reação da oposição e dos seus simpatizantes pode ser considerada psicose em massa. Posso ajudá-los a ultrapassar este problema clínico e prometo que não vamos ser sovinas nas injeções. Quando lhes é prescrita uma injeção, podemos dar duas”, lê-se no texto.
Em troca desta adoração por Putin, referem a Al Jazeera e a New Yorker, o governo federal da Rússia financia 87% do orçamento checheno com diversos subsídios, o que tem permitido o desenvolvimento da capital do país, cuja paisagem é pautada por arranha-céus envidraçados, com escritórios e apartamentos de luxo e ainda um hotel de cinco estrelas.
O Kremlin faz ainda transferências regulares para o Fundo Akhmad Kadyrov, que é também financiado pelo salário de trabalhadores estatais e privados chechenos. O fundo é utilizado para os mais variados fins, desde reparações a hospitais, pagamento de viagens a pessoas que queiram ir a Meca — a maioria da população nesta república é muçulmana —, sem esquecer os objetivos pessoais do líder checheno, como aconteceu quando Kadyrov contratou estrelas de Holywood para comemorar o seu 35.º aniversário.
Ligações a homicídios e violações de direitos humanos
Em todas as eleições, segundo o New York Times, Ramzan Kadyrov tem arrecadado mais de 95% dos votos — e, na prática, o líder checheno eliminou a sua oposição política interna. De acordo com a Al Jazeera, alguns dos seus críticos optaram por sair do país, mas nem assim ficaram a salvo. Foi o caso de Sulim Yamadayev, um ex-comandante checheno que se desentendeu com Kadyrov e que foi assassinado a tiro no Dubai, em 2009. A polícia dos Emirados Árabes Unidos considerou que a ordem para o homicídio foi dada pelo Presidente da república da Chechénia, que negou quaisquer ligações à morte de Yamadayev e do irmão, que tinha sido morto no ano anterior em Moscovo.
Também Umar Israilov, antigo guarda-costas de Kadyrov, foi morto a tiro numa rua em Viena, em 2009. O checheno exilou-se na Áustria depois de ter dito a jornalistas e ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que viu o seu Presidente participar em sessões de tortura. De acordo com a polícia austríaca, o líder checheno terá ordenado o seu rapto e Israilov terá sido morto quando tentava escapar. Três homens com ligações a Kadyrov foram presos por cumplicidade no homicídio, mas as autoridades austríacas nunca conseguiram questionar o líder checheno, que sempre negou qualquer envolvimento e acabou por não ser condenado por falta de provas.
Os homicídios da jornalista Anna Politkovskaya, em 2006, e da ativista Natalia Estemirova, em 2009, também estarão relacionados com Kadyrov. Em 2006, a jornalista russa, que apelidou Kadyrov de “Estaline dos nossos dias”, numa entrevista à Radio Liberty, estava a investigar um caso de tortura e morte de duas pessoas por parte da polícia controlada pelo líder checheno. Acabou morta a tiro e o seu corpo atirado para o elevador do prédio onde morava, dois dias depois da entrevista, a 7 de outubro, dia em que Putin comemorava 54 anos. Já Estemirova, que estava a investigar violações de direitos humanos cometidas por milícias apoiadas pelo governo e que criticou Kadyrov por diversas vezes, foi raptada à porta de casa a 15 de julho de 2009 e encontrada, morta a tiro, horas mais tarde.
Mas os críticos de Putin também constam na lista de assassinatos com eventuais ligações a Kadyrov. O Departamento do Tesouro norte-americano associou-o ao homicídio do oponente do Presidente da Rússia, Boris Nemtsov, que foi morto perto do Kremlin, em 2015. Um tribunal de Moscovo condenou cinco homens pelo assassinato mas, de acordo com o advogado da família, “os que ordenaram [o homicídio] não foram encontrados”. Para a família de Nemtsov, “o circulo próximo de Kadyrov esteve envolvido no crime”, lê-se no jornal britânico Guardian.
‘Empossado’ três anos após a morte do pai, Kadyrov tem governado a república russa com mão de ferro, bloqueando tentativas de rebelião e promovendo uma visão conservadora do Islão, onde as mulheres devem usar véus e onde os homens são incentivados a ter até quatro mulheres, apesar de a poligamia ser proibida pela lei russa.
São vários os relatos de raptos e torturas à população LGBTI por parte das autoridades chechenas, mas o Presidente garante que não existem homossexuais na região. Em abril de 2017, o jornal independente russo Novaya Gazeta revelou que três pessoas morreram depois de a polícia chechena ter detido mais de 100 homens, alegadamente por serem homossexuais. A resposta do porta-voz de Kadyrov? “É impossível perseguir aqueles que não existem na república.”
Polícia chechena deteve mais de 100 homens por serem homossexuais
No mês seguinte, três organizações francesas apresentaram queixa no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o presidente da Chechénia por perseguições aos homossexuais, acusando-o de ser “o profissional” do “genocídio”, “o organizador de campos de torturas com intenção de extermínio dos homossexuais”.
ONG acusam Chechénia de genocídio em queixa por perseguição a homossexuais
Em 2017 e 2020, os Estados Unidos impuseram sanções ao líder checheno por “numerosas violações grosseiras dos direitos humanos, que datam de há mais de uma década, incluindo torturas e execuções extrajudiciais“, lê-se num documento do Departamento de Estado norte-americano, divulgado há dois anos.
Redes sociais: vídeo com uma cobra, troca de palavras com John Oliver e a guerra na Ucrânia. E o lado (ainda) mais excêntrico de Kadyrov
Apesar de passar esta imagem de líder conservador (e de figura de autoridade inquestionável), Kadyrov parece também fazer questão de mostrar um lado excêntrico. Em 2006, o líder checheno foi convidado de honra no casamento do filho de um deputado da República do Daguestão e responsável pela empresa de petróleo da região, Gadzhi Makhachev. Segundo o Guardian, Kadyrov não abdicou das suas armas douradas durante a cerimónia — ostentando-as na parte de trás das suas calças de ganga enquanto dançava, atirou notas de 100 dólares às bailarinas e deu como presente aos noivos “um pedaço de ouro com cerca de cinco quilos”.
Antes disso, nesse mesmo casamento, o líder checheno já tinha protagonizado uma entrada hollywodesca. O então embaixador dos EUA em Moscovo, William Burns, também estava no evento como convidado. E, num despacho diplomático, divulgado junto com outros documentos na fuga de informação WikiLeaks, contou o que viu: “A maior parte das mesas estava disposta com os pratos (…). Mas, às 8 da noite, o espaço foi invadido por dezenas de mujahideen [combatentes árabes] fortemente armados para a grandiosa entrada do líder checheno.” A cermónia pressupunha algum formalismo, mas Kadyrov chegou envergando umas simples calças de ganga e uma tshirt, recordou o Guardian. Houve música, lançou-se fogo de artíficio e foi então que, enquanto Kadyrov jantava, começou a performance que o levou a distribuir notas de 100 dólares pelas dançarinas.
A ostentação de luxo é uma faceta bem vincada dessa excentricidade do líder checheno e está presente em diferentes planos. Num vídeo filmado no seu escritório, e que foi recentemente partilhado no Twitter, é possível ver o espaço totalmente adornado de dourado. Desde as portas e as paredes ao quadro e ao rebordo da cadeira onde o líder checheno está sentado, sem esquecer o material de escritório, incluindo a tesoura, tudo à sua volta é dourado.
Sitting in his gold-plated office, Chechen dictator Ramzan Kadyrov publicly criticizes Russian head negotiator Vladimir Medinsky for supposedly being too accommodating to Ukraine. The cracks are starting to show. pic.twitter.com/p5siAvii9L
— Kevin Rothrock (@KevinRothrock) March 30, 2022
O Presidente da República russa da Chechénia é, de resto, uma presença assídua nas redes sociais. No Instagram, onde em 2016 contava mais de 500 mil seguidores — conta que entretanto apagou —, as publicações eram variadas. Vídeos no ginásio, fotografias e vídeos de animais exóticos e a ameaças aos seus opositores, a palete de conteúdos era extensa e alimentava esse lado mais excêntrico de Kadyrov.
Nesse ano, segundo a New Yorker, num dia publicou um vídeo onde aparece numa praia de joelhos e em que, determinada altura, agarra uma piton, começa a ‘falar’ calmamente com a cobra e depois atira-a para longe. Na legenda desse vídeo escreveu que a piton “simboliza as forças do mal que se apoderaram de enormes territórios do planeta onde centenas de milhões de pessoas sofrem.” No dia seguinte, publicou uma fotografia onde surge a discutir, com ministros, as tradições chechenas. “Um povo que perde as suas danças tradicionais, ritmo e música deixa de ser uma nação”, considerou.
Uma publicação de Kadyrov onde apelava ao mundo para que o ajudasse a encontrar o seu gato, partilhada também em 2016, levou o comediante John Oliver a brincar com a situação no programa Last Week Tonight, refere o Guardian. “[Kadyrov] É este o teu gato”?, escreveu Oliver, no Twitter, ao partilhar uma fotografia sua com um felino.
.@RKadyrov Is this your cat? pic.twitter.com/2UacV3km7J
— John Oliver (@iamjohnoliver) May 23, 2016
Claro que a resposta do líder checheno não tardou. Kadyrov partilhou uma fotografia falsa, em que Oliver aparece com uma t-shirt com uma fotografia de Putin — o comediante tinha feito pouco das imagens em que o líder checheno aparece com vestuário semelhante. “Estou farto de piadas, quero cuidar de gatos na Chéchenia. A propósito, Putin é o nosso líder!”
Também tem sido muito graças às redes sociais que, desde o início do conflito na Ucrânia, se passou a ouvir falar com mais frequência na presença de soldados chechenos no teatro de guerra. Um dia depois da invasão, começaram a circular nas redes sociais imagens de vários de militares concentrados em frente ao Palácio do Governador em Grozny, capital de Chéchenia. O próprio Kadyrov partilhou no Telegram um vídeo, que inclui imagens de drone dessa concentração, que terá juntado cerca de 12 mil homens. No entanto, além de este número não ter sido confirmado, não se sabe ao certo quantos soldados chechenos estão na Ucrânia a combater.
“Declaro oficialmente que os combatentes chechenos vão ocupar os pontos mais quentes da Ucrânia“, disse, dirigindo-se à multidão e rematando com “Akhmat!”, o nome do seu pai, o ex-líder da Chechénia assassinado em 2004. A 26 de fevereiro, Ramzan Kadyrov confirmou a participação dos militares da região na invasão, novamente num vídeo. “O Presidente tomou a decisão certa e vamos cumprir as suas ordens em qualquer circunstância.”
Não é a primeira vez que esta milícia — que pertence à Guarda Nacional da Rússia, uma força paramilitar que responde diretamente a Putin mas que é apelidada de “Kadyrovtsy” por se tratar na realidade do exército pessoal de Kadyrov — participa nas guerras em que a Rússia está envolvida. Já esteve na guerra da Geórgia, em 2008, na primeira fase do conflito na Crimeia em 2014/2015 e na guerra na Síria.
Os ucranianos têm-na descrito como das mais brutais forças militares que invadiram o país. Segundo o autarca de Bucha, cidade na região de Kiev onde foram mortos centenas de civis, os combatentes chechenos obrigaram moradores a usarem um pano branco à volta dos braços. Nas várias imagens que foram divulgadas do massacre de Bucha, vários cadáveres aparecem com esse pano branco.
As publicações de Kadyrov no Telegram têm sido constantes, entre fotografias, vídeos e textos sobre a participação dos militares da Chechénia na invasão. Se esta segunda-feira, num vídeo, dizia que as forças russas iriam continuar a ofensiva na Ucrânia, a 4 de março, por exemplo, o líder checheno publicou um vídeo onde pede a Putin para pôr fim ao conflito o mais rapidamente possível.
“Camarada Presidente, já lhe disse mais do que uma vez que sou o seu homem da infantaria. Estou pronto para dar a minha vida por si, mas não suporto ver como os nossos militares estão a morrer. Peço-lhe para fechar os olhos a tudo e que dê a ordem para pôr fim a tudo isto num dia ou dois. Só isso irá salvar o nosso Estado e o nosso povo.”, afirmou Kadyrov que, segundo o site Politico, parece estar alcoolizado e sob o efeito de drogas, ou “talvez apenas deprimido e zangado”.
Dez dias depois, a dia 14 de março, publicou um vídeo onde surge numa sala com vários militares chechenos, alegadamente perto da capital ucraniana. Não há certezas de que Kadyrov estivesse efetivamente perto de Kiev e o próprio porta-voz do Kremlin disse que não tinha “informação” de que o líder checheno estivesse na Ucrânia. Mas isso não era o mais relevante para Kadyrov — desde que mantivesse a imagem de fiel seguidor de Putin e sanguinário sem escrúpulos ao serviço de Moscovo.