À esquerda garante-se que não existe um pacto de não agressão, nem combinações especiais ou telefonemas por estes dias, numa estratégia concertada para evitar espantar o voto nesta área. Se for mesmo como juram, é caso para dizer que combinado não correria mais oleado. Neste lado da campanha não há ataques cruzados e as tiradas mais fortes vão sempre no mesmo sentido: a coligação da direita. O aparecimento de Passos Coelho foi combustível para o discurso dos partidos da antiga geringonça, que não têm pudor em assumir que esse é um esquema a repetir.
Houve, no entanto, um sobressalto entre eventuais futuros aliados de um PS relativo: Rui Tavares, do Livre, abriu a porta a entendimentos com a “direita democrática”. Passou as horas seguintes em explicações e essa frente ainda foi explorada pelo Bloco de Esquerda, mas por pouco tempo. A esquerda fez tudo para parar de alimentar o assunto, tentando evitar cair na ideia de “bagunça” que tem tentado colar à direita. Quer manter intacto o capital de “estabilidade” que diz ter existido na geringonça — e a boa memória desses tempos que está convencida de que a população conserva.
Alinhados no ataque à AD, às vezes até nas palavras
Passos Coelho é desde 2015 a cola mais eficaz para a esquerda e este arranque de campanha oficial mostrou isso mesmo. Um simples discurso rendeu vários dias de ataques. No caso do PS foi todo um realinhamento de estratégia, com o candidato a dar gás ao slogan do “não queremos andar para trás”. À cabeça, a esquerda agitou sobretudo o fantasma do corte nas pensões e da troika, contrapondo a essa memória a da recuperação de rendimentos, no tempo da geringonça. E, no PS, Pedro Nuno Santos deu tudo na dramatização desse regresso da direita.
Ainda esta sexta-feira, à porta do Hospital da Covilhã, o líder do PS aproveitou cada pedrinha deixada pela AD no caminho da campanha, para compor o muro que quer erguer entre o “nós e o eles”: o PS e a AD, mas também a esquerda e a direita.
O episódio das “milícias armadas”, que veio da campanha da AD, via cabeça de lista de Santarém (o antigo presidente da CAP, Eduardo Oliveira e Sousa), fez com que o socialista viesse dizer que “a nossa vida em comunidade está em jogo” e que isso se vê quando “nas campanhas de rua, já depois das entrevistas e debates, se revelam as agendas na plenitude”, apontando para a “negação do clima” que, naquele caso concreto, atribuía ao PSD. Mas também atirou ao “discurso divisionista em relação às migrações” e o “discurso de regresso ao passado sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez e os direitos das mulheres”, tudo temas em que o resto da esquerda também aproveitou para disparar contra a direita.
A expressão do “andar para trás” que Pedro Nuno passou a colar à AD de forma mais vincada desde então ouviu-se também no lado comunista. Foi exatamente a mesma que Paulo Raimundo usou para falar no mesmo assunto. “Afinal quem quer voltar ao passado são essas forças. Quem não tem mais nada para dizer propõe andar para trás”. Mas o comunista não ficou apenas pelo tema que é caro ao seu partido e atirou genericamente às aparições na campanha da AD, aproveitando para reavivar a memória. “As últimas horas da campanha foram muito reveladoras”, disse logo na terça-feira, lembrando declarações em que André Ventura disse ser “amigo” de Passos e Rui Rocha revelou ter votado duas vezes no PSD durante o passismo: “Foram as juras de amizade de uns, foram as confissões de fidelidade do voto de outro… houve de tudo, só faltou dizerem o que fizeram. Cá estamos nós para lembrar o que eles fizeram”, disse recordando de imediato as “medidas sombrias da troika”.
Já Mariana Mortágua agarrou-se ao assunto e nunca mais o largou: passou o rescaldo da aparição de Passos a lembrá-la e a assegurar aos potenciais eleitores que foi encontrando, arruadas fora, que o legado da troika não é para esquecer. A cada oportunidade, a coordenadora do Bloco lembrou os cortes das pensões, os jovens que saíram do país, as “regressões” na lei do aborto, e fechou a semana a atacar a direita por só ter “passado” e ideias “retrógradas” para oferecer, encaixando perfeitamente na narrativa seguida pelos vizinhos do lado.
As participações de Durão Barroso e Assunção Cristas na campanha só serviram para reforçar ainda mais a ideia de que a campanha da AD é um “desfile” de figuras do passado. Curiosamente, quando Mortágua falou de Durão, que acusou de representar os interesses do pior do “polvo da finança” e de vir lembrar os tempos da troika (mais uma vez), ainda atacou o antigo primeiro-ministro por ter “abandonado o país” – exatamente a mesma expressão que Pedro Nuno usou.
Nada de agressões diretas
O líder socialista nunca ataca a esquerda e as referências que vai fazendo são sempre positivas. Não está assim tão distante a memória da última campanha das legislativas, em 2022, numa eleições antecipadas provocadas pelo chumbo de um Orçamento, com a esquerda a deslaçar de vez nesse momento. Sem surpresa, na campanha do PS que se seguiu esse foi um tema abordado, mas Costa também nunca hostilizou por completo PCP e BE, até porque estava longe de ter garantida uma maioria absoluta — que acabou por ter, esmagando a votação nos dois partidos do lado, que ficou em mínimos.
A perspetiva de uma maioria absoluta está afastada pelo PS desta vez, mas à frente do partido também está agora o socialista que mais ligações a essa solução governativa tem, pelo que a ausência de ataques não tem exclusivamente a ver com estratégia, mas sobretudo com convicção.
Assim, a memória dessa relação mais difícil com a esquerda à esquerda do PS é colocada completamente de lado por Pedro Nuno Santos. Em nenhum momento destes dias o líder socialista mostra ponta de animosidade com a esquerda. Pelo contrário, chegando mesmo a incluí-la no “nós” que contrapõe ao “eles” com que normalmente se refere à Aliança Democrática.
Já Mariana Mortágua tem gerido com pinças a questão mais complicada que tem para resolver nesta campanha: como abrir caminhos para os acordos que deseja assinar com o PS enquanto faz ao oposição ao que o mesmo PS fez durante os anos de maioria absoluta, demarcando-se dos últimos anos de governação. Por isso, os ataques que dirige ao PS têm sido muito concentrados no PS antigo – o do costismo – e não no novo – o do pedronunismo.
Apesar de atacar com frequência medidas específicas dos atuais programas da direita, Mortágua não faz o mesmo com o PS, que ataca pelo passado recente e não pelo que propõe para o futuro. A descolagem da maioria absoluta é violenta: diz que foi “desastrosa”, que criou “bloqueios” e crises “profundas” que agora é preciso resolver. E é aí que entra o Bloco, pronto para dar a mão ao PS e, como diz Mortágua, “condicioná-lo” e “impor-lhe” medidas.
O equilíbrio é complicado de fazer, mas as referências a Pedro Nuno Santos são escassas e comedidas. Quem acabou por deixar um aviso ao socialista foi não Mariana, mas Joana Mortágua, quando o alertou, a partir de um comício em Almada no início da semana, de que não deve ter “orgulho” na governação da maioria absoluta. É essa demarcação que o BE precisa de fazer para garantir aos eleitores que a esquerda ainda merece uma nova oportunidade de fazer diferente.
O PCP é menos simpático na gestão da relação, mas também tem passado as últimas semanas, já desde o período de pré-campanha, a concentrar as suas críticas à maioria absoluta de António Costa; já na campanha, Raimundo disse querer ser “oposição à maioria absoluta” e ter a certeza de que esta “pesa na consciência” dos socialistas. Numa coisa os dois partidos concordam: o PS não quererá adotar por sua livre e espontânea vontade as soluções que defendem, mas se crescerem no Parlamento esse acordo passará a ser possível.
Passo a passo, as aproximações (e as contas geométricas)
E é nesse sentido que as aproximações à esquerda se vão notando. No Bloco de Esquerda, em particular, nota-se um movimento concreto: se Mariana Mortágua já vinha falando de forma constante sobre a necessidade de constituir uma maioria de esquerda (uma expressão que o PCP também já usou, e que o Livre vem sempre defendendo), à medida que a semana foi avançando começou a fazer esse apelo de forma cada vez mais concreta, lançando mesmo o apelo para se elegerem “deputados à esquerda” antes de falar em deputados do próprio partido.
Com Pedro Nuno Santos a anunciar, esta quinta-feira, que anda a fazer contas de cabeça e que numa das últimas sondagens a esquerda soma mais intenções de voto do que PSD e IL juntos (excluindo, propositadamente, o Chega da equação), Mortágua foi questionada pelos jornalistas e concordou: o “princípio”, para garantir “estabilidade”, começa mesmo por garantir que a esquerda tem mais votos do que as duas forças de direita que prometem aliar-se.
Alinhados no objetivo, mas não só: Mortágua lançou, na quinta-feira, o primeiro semi-elogio a Pedro Nuno, constatando que o socialista fez um “bom início de conversa” ao dizer que não permitiria que o Estado social desse nenhum passo atrás. Depois, o desafio: não basta, ainda assim, garantir apenas que não há regressões; é mesmo preciso fazer “o contrário” do que fez a maioria absoluta (com farpas particularmente duras para Manuel Pizarro, o “ministro da Saúde da maioria absoluta” que ainda vai acabar, ironizou, a dizer que o SNS está melhor, o acesso a ele é que não – uma paráfrase da frase que ficou colada à pele de Montenegro nos tempos da troika, quando disse que o país estava melhor mas as pessoas ainda não).
Já esta sexta-feira, e um dia depois de Pedro Nuno ter andado a mostrar obra na ferrovia, Mortágua foi questionada pelo trabalho do potencial parceiro na pasta e, evitando falar sobre esse legado em concreto, concedeu que ali estava – a apanhar um comboio da Covilhã para a Guarda – para mostrar os bons exemplos e o que funciona bem, neste caso com a reabertura da linha que chegou a estar fechada entre o consulado de José Sócrates e a geringonça, mesmo que ainda haja muito “por fazer”. Entre estes e outros exemplos, Mortágua vai assegurando que há “caminhos para abrir” e que vai ser possível “reconstruir” o SNS ou a escola pública. E durante a semana falou na necessidade de encerrar o capítulo da prioridade dada aos excedentes orçamentais para desfazer as “guerras com profissionais” como médicos ou professores – a mesma expressão que Pedro Nuno chegou a dizer enquanto comentador de televisão, antes da crise política, quando dizia que queria fazer a “paz” com esses profissionais e, para isso, reduzir a dívida pública a um ritmo menor, promessa agora plasmada no seu cenário macroeconómico.
Mortágua quer entusiasmar os eleitores de esquerda com esta hipótese e vai puxando por ela – esta sexta-feira disse mesmo que a esquerda “já mostrou, mesmo durante esta campanha” que há espaço para se entender. Falta saber exatamente como – tanto PCP como Bloco, quando confrontados com as diferenças entre os seus programas e o do PS, defendem que quanto mais força tiverem mais conseguirão “mudar” o programa do PS, como fizeram em 2015.
A contenção de danos no caso Rui Tavares
De repente, esta quinta-feira, Rui Tavares surgiu com uma declaração que apanhou os socialistas de surpresa, ao abrir a porta para entendimentos com “a direita democrática”. De imediato, na caravana socialista fizeram-se contas à intenção do eventual aliado do PS. Afinal, Rui Tavares era uma peça de quem não esperavam ouvir este discurso, tendo em conta que ele mesmo, nas legislativas de 2015, foi o único a defender um entendimento à esquerda durante a campanha – que acabou por existir mas de que o Livre nunca fez parte por não ter conseguido eleger deputados dessa vez.
Junto do líder do PS, a ideia é que este movimento de Tavares poderia prejudicar o próprio Livre, tendo em conta que estaria a alienar um eleitorado importante de moderados de esquerda mais insatisfeitos com o PS. Mas o enfraquecimento de um eventual parceiro numa campanha tão bipolarizada entre esquerda e direita é coisa que Pedro Nuno Santos também não quis explorar. E quando foi questionado sobre o que o porta-voz do Livre tinha dito no dia anterior, esta sexta-feira Pedro Nuno Santos recusou responder, mantendo apenas a única linha que repete sobre a esquerda: é onde “há capacidade de “conversar” e “construir coisas em conjunto”.
O Bloco, que tem uma relação complicada com Rui Tavares – que em 2011 rompeu com o Bloco e deixou de ser eurodeputado pelo partido –, com quem disputa eleitorado de forma muito direta, ficou em brasa ao ouvir as declarações. Rapidamente começaram a circular pelas redes sociais dos bloquistas farpas a Tavares, que tomaram forma mais concreta no discurso de Mortágua, nessa mesma noite, quando deixou um ralhete público ao porta-voz do Livre: “Devemos estar totalmente concentrados em derrotar a aliança PSD-IL e não em projetos de diálogo com essa aliança. Este é o momento de votar, não de confundir”.
Ainda assim, também é importante não “confundir” o eleitorado de esquerda, a quem os partidos passaram as últimas semanas a garantir que têm uma boa relação, diálogos produtivos e, ao contrário da direita, não se “canibalizam”. Por isso mesmo, a esquerda não quis mais explorar o assunto, pelo menos em público. Tavares indignou-se, criticando quem “descontextualiza” as suas declarações noutros partidos de esquerda e recusando que estivesse a admitir acordos com a direita; Mortágua deixou de cavalgar o assunto no dia seguinte, classificando como “importante” o esclarecimento do Livre; e Paulo Raimundo não quis dar gás ao assunto, dizendo simplesmente que a polémica não o surpreende “nem deixa de surpreender”: “É mais uma oportunidade para colocar o centro da atenção no que não tem interesse nenhum”. Ponto final.
A memória comum da geringonça
Os graus de nostalgia variam, mas ela aparece na mesma, seja em qual das campanhas for. Pedro Nuno Santos nunca escondeu as saudades do tempo da geringonça, chegou a dizê-lo até no regresso que se deu (ainda noutra vida) ao Parlamento para a comissão de inquérito à TAP. Manteve-o nesta nova vida de líder do PS, assumindo a repetição da solução à esquerda como um projeto de futuro. E durante estes dias de estrada não deixou para trás essa mesma memória a que já recorreu, como por exemplo quando se quer diferenciar de eventuais encontros semelhantes promovidos à direita.
Esta semana, quando Rui Rocha pediu uma maioria para a AD e a IL, Pedro Nuno fez questão de voltar a essa imagem de estabilidade à esquerda, lembrando “a relação civilizada e de estabilidade” que diz existir à esquerda. “Se há coisa que nós, os diferentes partidos à esquerda, conseguimos ir mostrando ao longo das últimas semanas é que conseguimos conversar e trabalhar em conjunto, ter uma relação civilizada e de estabilidade”.
Na campanha do Bloco, a memória da geringonça é puxada com muita frequência. Na terça-feira, no rescaldo dos ataques a Passos, Mortágua fez o contraponto dos tempos da troika puxando por esses anos ao lado dos outros partidos de esquerda: “Aumentámos salários, aumentámos pensões, fizemos impossíveis e o país melhorou, viveu-se melhor em Portugal”. A “prova” que o BE tem pela frente, estabeleceu, é mesmo “mostrar que é possível” voltar a fazer o mesmo – “podemos fazer muito melhor neste país”. A ideia dos impossíveis é, aliás, mencionada de forma constante pela líder, que vai lembrando medidas como o aumento do salário mínimo e a forma como foi possível contornar os obstáculos de Bruxelas em 2015 para dizer que será possível fazer o mesmo, em 2024, com a fixação dos tectos para as rendas, por exemplo. No dia de aniversário do Bloco, quando enumerou as vitórias do partido, colocou a geringonça em lugar de destaque, frisando que “o programa desse governo foi imposto ao PS” e incluiu “vitórias da esquerda”.
No comício desta sexta-feira, o antigo deputado José Manuel Pureza, uma figura muito querida no Bloco, voltou a deixar o guião claro: nesse tempo, o Bloco desfez “impossíveis” e “ganhou”; agora “é outra vez esse tempo”. E pediu ao PS: em vez de “moverem obstáculos”, “juntemos as nossas forças no mais ambicioso dos projetos para o país”.
O que aconteceu em 2015 serve, assim, de inspiração para um Bloco convencido de que essa não só foi uma governação bem recebida pelas pessoas como foi uma governação que o seu eleitorado queria que continuasse, tendo castigado o Bloco nas urnas depois da rutura com o PS. Ao contrário de Pedro Nuno Santos, que não gosta do termo geringonça, Mortágua usa-o com orgulho e não se cansa de puxar por ele. Todos os males são colados à maioria absoluta do PS, como se tivesse sido apenas uma interrupção, com efeitos nefastos, do que agora deve ser retomado.
O PCP tem uma visão menos entusiástica, mas ainda assim já pediu, nesta campanha, pela voz de Paulo Raimundo: “Voltemos a 2015”. “O PS não queria nem nunca quis” algumas medidas, frisou, no caso falando sobre a descida do preços dos passes; mas o número de deputados do PCP “obrigou o PS a vir a essa medida”. E é essa experiência, assuma ela a forma que assumir a nível formal, que o partido quer repetir para influenciar a governação.