Seis meses depois de ter sido condenado a uma pena máxima de 25 anos de cadeia, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu reduzir em um ano a sentença aplicada ao pai de Valentina, a menina de nove anos morta em 2020 em Atouguia da Baleia. O tribunal superior reduziu ainda para metade a sentença de 18 anos e nove meses de prisão da madrasta da criança.
Na decisão, assinada a 24 de novembro, os juízes desembargadores João Novais e Elisa Sales explicam que no caso de Sandro não houve premeditação do crime, como o Tribunal de Leiria dera como provado. E, no caso de Márcia, a Relação considerou que houve um crime de homicídio simples e não qualificado.
O que alega Sandro
Sandro foi condenado em primeira instância a uma pena única de 25 anos — a pena máxima prevista na lei portuguesa — pelos crimes de homicídio com dolo, profanação de cadáver, abuso e simulação de sinais de perigo e violência doméstica. No recurso, a defesa do arguido contesta apenas a pena que lhe foi aplicada pela morte da filha, e não os restantes crimes. Isto porque, sustenta, as provas obtidas em julgamento não mostram que Sandro tenha tido, desde o momento em que começou a agredir a filha, intenção de a matar.
Mas a decisão da primeira instância, em que foi condenado a 25 anos, ia em sentido contrário. O tribunal, recorde-se, tinha dado como provado que, desde o momento em que agrediu violentamente a filha e a levou depois para a banheira, regando-a com água a ferver, até ao momento em que a criança morreu no sofá, “em agonia”, um dia depois, o arguido agiu sempre “com frieza de ânimo”. Algo que o tribunal considerou “suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade” dos atos praticados.
No entanto, argumenta a defesa de Sandro, no recurso para a Relação, “nunca existiu premeditação por parte do arguido, em relação a tirar a vida à sua filha menor”. Aliás, o arguido já tinha espancado a filha uma semana antes do crime, para saber como tinha ela aprendido determinadas brincadeiras sexuais, pelo que foi também condenado pelo crime de violência doméstica.
“O arguido nunca premeditou o assassínio da própria filha, já que o mesmo não queria, nem previa tal resultado; mesmo porque a premeditação não está provada nos presentes autos, desde o dia 1 de Maio de 2020”, lê-se nos argumentos apresentados pela defesa, que pediu então uma redução de dois anos e dois meses de cadeia para Sandro. Pena à qual se devem somar as aplicadas pelos restantes crimes, num total final de 22 anos e 10 meses.
O que decidiu o tribunal
Para o Tribunal da Relação de Coimbra, “a premeditação revela uma atitude de elaboração mental e reflexão do propósito criminoso do agente”. São indícios “dessa frieza de ânimo a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na vontade de matar por mais de 24 horas”. No entanto, no caso de Valentina, os desembargadores consideram que esta premeditação não existiu.
Sandro queria saber os contactos de cariz sexual que a filha de nove anos teria mantido com terceiros. Ela chegou a falar-lhe de algumas práticas com o padrinho. Na sequência desta revelação, a 1 de maio de 2020, Sandro agrediu a filha e foi por isso condenado por violência doméstica. Logo, no entender da defesa, o tribunal não podia usar este episódio para determinar aquela “premeditação, reflexão, ou persistência na vontade de matar”.
“A premeditação parece implicar uma intenção, e não uma aceitação ou conformação perante o resultado, como sucede no dolo eventual.” Por isso, o tribunal da Relação considerou não se vislumbrar qualquer “facto provado” quanto “ao crime de homicídio [nem] que o arguido agiu de forma calculada, com imperturbada calma, com o sangue-frio, com um lento, reflexivo e cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime”.
Na fixação da pena única, devemos considerar que o crime de violência doméstica antecede em alguns dias a prática do crime de homicídio, enquanto os crimes de profanação de cadáver, de abuso e simulação de sinais de perigo ocorrem na sequência do crime de homicídio. E que, por sua causa, ocorreu uma ligação entre os crimes. Por isso, o tribunal decidiu-se por uma pena de 24 anos de prisão (21 dos quais pelo crime de homicídio).
O que alega Márcia
Márcia foi condenada a uma pena de 18 anos e nove meses de cadeia pelos crimes de homicídio qualificado, profanação de cadáver e simulação de sinais de perigo. No recurso que apresentou ao Tribunal da Relação, a defesa lembra que, durante o julgamento no Tribunal de Leiria, tanto ela como o filho, e até Sandro, alegaram em tribunal que a madrasta de Valentina ainda tentou impedir por várias vezes as violentas agressões que o companheiro estava a infligir na criança, tentando mesmo colocar-se à frente dele. Sandro, no entanto, de acordo com a versão da defesa de Márcia, repetia o argumento de que era ele o pai da criança e ordenava à companheira que se mantivesse em silêncio, ameaçando-a de que lhe tiraria os filhos também.
O tribunal deu também como provado que “o arguido desferiu múltiplas pancadas, com muita força, nas pernas e nádegas da menor Valentina, e que, já na casa de banho, o arguido Sandro desferiu uma pancada com muita força, com as mãos, na cabeça da mesma, na parte superior do crânio, que lhe provocou uma hemorragia interna e, consequentemente, fez com que ela caísse na banheira, tendo esta de seguida começado a desfalecer e a ter convulsões”.
Para a defesa de Márcia, o Tribunal de Leiria fez mesmo “uma interpretação contrária” à prova produzida, condenando-a “incorretamente” pelo crime homicídio qualificado. Quando muito, a arguida deveria enfrentar uma pena de homicídio simples não superior a 12 anos de cadeia, argumenta o recurso para a Relação. “A pena aplicada é manifestamente excessiva”, diz.
Márcia colaborou com o tribunal e mostrou-se arrependida por não ter pedido ajuda quando Valentina estava a agonizar no sofá depois de ter sido brutalmente agredida. A arguida formalizou mesmo um pedido de desculpas em tribunal.
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O que decidiu o tribunal
Para o tribunal da Relação de Coimbra, apesar de a arguida não ser mãe da vítima, mas sua madrasta, tinha, ainda assim, o dever de proteger a criança. “Sobre a arguida pendia um dever de garante das circunstâncias do caso concreto; a arguida era a única com possibilidade de poder intervir no sentido de evitar o resultado morte da vítima”, lê-se.
Os juízes desembargadores analisaram as declarações prestadas em tribunal por Sandro, Márcia e o filho desta, que assistiu a tudo. No final, considerou que o tribunal de Leiria “errou” ao considerar que a recorrente praticou “um crime de homicídio qualificado, por omissão, por nada ter feito para evitar o resultado morte”. Isto porque, sustentam os desembargadores, resulta com “clareza” da decisão do tribunal de Leria que a arguida “não só não participou ativamente nas agressões do arguido à vítima, como não existiu alguma adesão ou concordância relativamente às mesmas”.
É certo que a madrasta de Valentina “nada fez” perante as agressões, mesmo depois de dizer ao companheiro para parar. Mas tal não foi “determinante” para as consequências que dali advieram. Para os juízes, o comportamento de Márcia deve ser responsabilizado a partir do momento em que Valentina — depois de agredida no corpo e na cabeça e de levar com jatos de água a ferver na banheira — entrou em convulsões. Foi neste momento que, aos olhos do tribunal, os arguidos perceberam que, “em razão da pancada desferida pelo arguido, a ofendida podia morrer. E, não obstante, e conformando-se com isso, em vez de promoverem socorro para a menor, ambos os arguidos em conjugação de esforços deitaram-na no sofá; ainda que a arguida tenha ido junto da vítima, verificando se ainda respirava”. Márcia “nada fez” para chamar ajuda e socorrer a criança e podia tê-lo feito, segundo o tribunal.
Assim, considerou o tribunal que a pena a fixar deverá ser de oito anos de cadeia pelo crime de homicídio voluntário por omissão. Pena que se deve juntar aos restantes crimes pelos quais foi condenada, juntamente com Sandro — profanação e simulação — e relativamente aos quais não apresentou recurso. O Tribunal considerou assim que Márcia deve cumprir uma pena de nove anos de cadeia, metade daquela que o tribunal de primeira instância tinha estipulado.