789kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Valentina. Os bastidores inéditos da investigação ao desaparecimento e à morte da criança

No caso Valentina houve falsos pedidos de resgate, chamadas de videntes e informações erradas. É comum nos desaparecimentos de crianças. O Observador falou com os inspetores que fizeram a investigação

    Índice

    Índice

Dez mil euros em troca da Valentina. Desta vez, era o que exigiam. A menina estava desaparecida há quase 48 horas e o tio paterno tinha acabado de receber uma mensagem de um número desconhecido: “Eu tenho a vossa filha. Sou homem. Não vou dizer onde estou. Só vos entrego se entregarem 10 mil na minha conta bancária e nada de polícia“. Não era propriamente um sinal de esperança. Ao longo dos quatro dias em que a Polícia Judiciária (PJ) de Leiria esteve a investigar o desaparecimento, houve centenas de mensagens e chamadas como esta: uns diziam que tinham a Valentina na sua casa, outros garantiam ter informações importantes para a investigação, alguns até pediam dinheiro em troca dessas supostas pistas.

Os investigadores não podiam, porém, ignorar nenhum destes contactos. Ainda antes de avisar a polícia, o tio de Valentina tinha, numa reação imediata, ligado para esse número: do outro lado tinha atendido uma mulher que negou, ainda que de forma pouco convincente, ter enviado a mensagem. Agora, a PJ aconselhava-o a enviar também ele uma: “Ok, eu pago isso, se for preciso, mas tenho de ter a certeza que ela está bem. Manda-me uma foto dela“. A resposta nunca chegou. Ligou-lhe novamente. Nada. Parecia até que o seu número tinha sido bloqueado. Então, a PJ instruiu-o a fazer uma nova chamada, mas com número diferente: foi imediatamente atendida, aparentemente pela mesma pessoa, que voltou a garantir que não tinha enviado a mensagem e que voltou a mostrar-se reticente na forma como o negava. O tio de Valentina nunca mais foi contactado e o suposto pedido de resgate ficou por ali.

"Eu tenho a vossa filha. Sou homem. Não vou dizer onde estou. Só vos entrego se entregarem 10 mil na minha conta bancária e nada de polícia"
Mensagem enviada por um número desconhecido ao tio paterno de Valentina

Não aconteceu a propósito desta chamada, mas, naqueles quatro dias, a PJ de Leiria chegou a ir dezenas de vezes a casa de pessoas que garantiam ter a criança com elas. “Não podíamos ignorar”, afirma um dos inspetores-chefe que investigou o caso, em conversa com o Observador. A informação chegava de todo o lado: através da GNR, de familiares ou do telefone do piquete da PJ, que estava sempre a tocar. “Houve alguém que veio dizer que tinham encontrado roupa dela. É um grande obstáculo nestes casos, que nos desvia do essencial”, diz. Apesar de as chamadas deste género serem muito comuns em desaparecimentos e homicídios de crianças, os inspetores acreditam que o confinamento devido à pandemia que se vivia na altura veio impulsionar este fenómeno: “De repente, deixou de se falar de Covid. As pessoas não tinham mais nada: estavam a ver de manhã à noite a mesma coisa e pensavam que já conheciam o caso muito bem e que podiam ajudar”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Da equipa de mais de 20 inspetores mobilizados para o desaparecimento, mais de metade estava dedicada a atender estas chamadas: na sala de situação criada na esquadra da PSP de Peniche estavam quatro a seis inspetores, que iam rodando, só a analisar o conteúdo das informações que chegavam. Outros tantos iam para o terreno confirmar esses dados. “Atendi uma chamada de uma vidente dos Açores que dizia que sabia onde é que ela estava: ou está dentro de uma casa ou está na rua. E que sabia quem a tinha raptado: ou foi a família ou outra pessoa. Esta é daquelas a que não ligamos”, conta outro inspetor. Mas outras chamadas captam a atenção dos investigadores: “Recebemos chamadas de funcionários públicos ligados à justiça. E achamos que é credível. Mas depois vamos ver e é uma pessoa que tem problemas psiquiátricos, que de facto é funcionário judicial, mas está de baixa”.

Sandro Bernardo foi detido pela Polícia Judiciária três dias depois de participar o desaparecimento

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Entre o não desvalorizar as informações que chegam e descartar aquelas que só os vão fazer perder tempo, investigar o desaparecimento e, depois, o homicídio de uma criança é sempre uma corrida contra o tempo. Há cinco anos que a PJ de Leiria não tinha um caso de desaparecimento. O último tinha acontecido em Ourém, mas a criança apareceu no dia seguinte: tinha-se desorientado e saído de casa. Em maio de 2020, investigaram um dos casos mais mediáticos de sempre: o caso Valentina. A investigação não parou durante quatro dias consecutivos até a criança ser encontrada, já morta. “Um desaparecimento torna-se prioritário e cria sempre ansiedade. Se a criança estiver viva, cada hora que passa joga contra nós“, diz uma inspetora-chefe, acrescentando: “É dos casos em que há mais esse peso do tempo”.

Um ano após o caso e uma semana depois de o pai de Valentina ter sido condenado à pena máxima de prisão pela morte da filha e de a madrasta ter sido condenada a 18 anos e nove meses de prisão, o Observador falou com a equipa de inspetores que lidou com o caso de perto: dos que confrontaram os responsáveis, aos que analisaram o cadáver de uma criança de nove anos.

Morta pelo pai e ignorada pela madrasta. As ações de Sandro e as omissões de Márcia no homicídio de Valentina

“São quatro da manhã . Vamos imaginar que somos a criança e estamos aqui na rua. Estava frio, a chover. É possível que tenha saído?”

Das centenas de chamadas, nem uma trouxe alguma pista importante para o caso. Os dados suspeitos que levaram à descoberta do cadáver da criança, ao fim de quatro dias de buscas, vieram todos do mesmo sítio: da família. “Fomos criando a convicção todos nós que a coisa tinha de estar por perto“, admite um dos investigadores. Mas nem sempre foi assim. A ideia de que a família é sempre a principal suspeita num caso de homicídio não passa, para os inspetores, de uma teoria. “Quando um pai comunica um desaparecimento, temos de estar minimamente seguros para confrontar as pessoas com o contrário: o que seria se estivessem a participar genuinamente o desaparecimento e nos estivéssemos a pôr isso em questão? Não é fácil. Tem de haver elementos”, explica um inspetor-chefe.

"Quando um pai comunica um desaparecimento, temos de estar minimamente seguros para confrontar as pessoas com o contrário: o que seria se estivessem a participar genuinamente o desaparecimento e nos estivéssemos a pôr isso em questão?"
Inspetor-chefe da PJ de Leiria

Esses elementos acabaram por chegar, dia após dia. Mas assim que o caso lhe caiu nos braços, na manhã de 7 de maio de 2020, não teve motivo para suspeitar da família mais próxima. Estava a cerca de 15 minutos de Peniche, com outro colega, a investigar um caso de um roubo que tinha acontecido na zona, quando recebeu o alerta: a GNR acabara de ligar para o piquete da PJ a dizer que tinha desaparecido uma criança e eles eram os inspetores que estavam mais perto do local onde fora vista pela última vez. Era preciso ir até à esquadra o mais rapidamente possível. Lá, foi-lhes transmitido ao detalhe o que o pai e a madrasta da criança tinham contado, minutos antes. A “história” de que a Valentina tinha saído de casa durante a madrugada de 7 de maio estava “razoavelmente bem fundamentada”. É que, um ano antes, a criança tinha saído de casa pelo próprio pé, acabando por ser encontrada pela polícia a deambular pela rua. “Assentava que nem uma luva. Tendo em conta que já tinha acontecido, era aceitável”, afirma o inspetor-chefe.

Valentina. Os vários sinais que não provocaram suspeitas

Mas a equipa de investigação começou a ter menos certezas disso quando, na madrugada do dia seguinte, vários inspetores permaneceram junto à casa de Valentina para se colocarem na sua pele — algo que habitualmente fazem quando desaparece uma criança. “São quatro da manhã — hora a que a menina supostamente saiu —, vamos imaginar que somos a Valentina e que estamos aqui na rua. Estava frio, estava a chover, saiu de chinelos, não conhecia a zona. É possível que tenha saído? Podia aparecer um predador na Atouguia da Baleia? Podia, mas era preciso haver uma conjugação de astros muito grande“, recorda outro responsável ligado à investigação.

A PJ fez várias perícias na casa onde Valentina foi morta, na Atouguia da Baleia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando os inspetores fizeram esta experiência, a PJ estava a investigar o caso há quase 24 horas e ainda não recaía qualquer suspeita sobre ninguém. Tinham apenas pequenos indícios e dados que não batiam certo, mas que de pouco valiam. Na casa não havia vestígios de crime. No carro havia apenas fibras de tecidos no banco de trás, mas que “por si só não eram nada”, afirma o inspetor que fez essa recolha. Os vizinhos? Nada. “Não havia ninguém que dissesse algo que pusesse em causa a versão deles”, acrescenta outro inspetor.

Oito minutos de convulsões, 13 horas de agonia e um “olhar de súplica”. Como Valentina terá sido morta pelo pai e pela madrasta

Certo é que aquele dia, na prática,  só acabou três dias depois. “Estas investigações não acabam. Há momentos menos intensos, mas não há uma paragem. Fomos-nos revezando, mas o núcleo principal não”, conta uma inspetora-chefe. Ao mesmo tempo que a GNR organizava buscas para encontrar a criança, a PJ investigava um potencial crime. Teria a criança sido sequestrada? Estaria morta? Teria a mãe, separada do pai, levado a filha? Ou, de facto, a criança tinha saído pelo próprio pé?

A PJ de Leiria investigou o caso desde o primeiro dia em que foi participado o desaparecimento

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A PJ não sabia que crime investigava. Sabia que, quanto mais rapidamente resolvesse o caso, maior era a probabilidade de encontrar Valentina com vida. Ou, se a encontrasse sem vida, mais rapidamente apanharia o potencial homicida. O facto de não haver grandes indícios era, por si só, um sinal de esperança: “Quando já existem fortes indícios, normalmente já é tarde demais”.

Pai e madrasta estavam “muito interessados no que a polícia estava a fazer”. “Tem de se ter cuidado com o interesse das pessoas nestes casos”

Logo no primeiro dia, os dois inspetores passaram a três, a quatro, a dez e acabaram a ser 14. As equipas foram sendo reforçadas à medida que as horas passavam e a criança não aparecia. Enquanto alguns inspetores faziam perícias à casa ou ao carro, outros lidavam com a comunicação social e outros aproveitavam para “comer uma bolachas ou umas batatas fritas” compradas na bomba da combustível a caminho da Atouguia da Baleia e que serviam de jantar. Ou para dormir umas horas nos carros. Alguns inspetores ficaram mesmo em casas arrendadas ali perto. Não havia tempo a perder, nem para ir a casa, nem para ir às instalações da PJ. Qualquer canto ou qualquer “rua escura” servia para fazerem rápidos briefings para atualizarem os desenvolvimentos do caso, recorda um responsável.

A investigação desenrolava-se sob o olhar atento de Sandro Bernardo e Márcia Monteiro, pai e madrasta da criança. “Estavam muito interessados no que a polícia estava a fazer, especialmente quando analisámos o carro deles”, recorda um inspetor ao Observador. Ainda assim, aponta outro, “podia ser só porque queriam muito que encontrássemos a menina”. “Tem de se ter cuidado com o interesse demonstrado pelas pessoas nestes casos: às vezes é genuíno, outras vezes é para controlar”, acrescenta.

"Estavam muito interessados no que a polícia estava a fazer, especialmente quando analisámos o carro deles. Podia ser só porque queriam muito que encontrássemos a menina, mas tem de se ter cuidado com o interesse demonstrado pelas pessoas nestes casos: às vezes é genuíno, outras vezes é para controlar"
Inspetor da PJ de Leiria

Ao longo daqueles dias, entre perícias sucessivas que a PJ ia fazendo ao mesmo tempo que as buscas pela criança continuavam, os inspetores não puderam deixar de notar: “O Sandro, ao contrário da mãe da Valentina, nunca foi à procura da filha”. Mas é uma postura “difícil de avaliar“. “Perante uma situação destas, não sabemos a reação das pessoas. As pessoas são muito diferentes”, aponta um dos inspetores. Já a madrasta estava mais recatada, ficando na casa de uns familiares para tomar conta dos filhos.

Da serenidade durante a buscas à postura derrotista na reconstituição do homicídio da filha. O comportamento do pai de Valentina

As falhas na versão do pai e da madrasta e o discurso “perfeito” do irmão de Valentina. “Se uma criança estiver instruída para mentir, não é fácil aferir os factos”

O que Sandro tinha dito à PJ também não levantava propriamente suspeitas. Ele e a mulher foram ouvidos logo no dia em que participaram o desaparecimento. Havia “pequenas coisas” que não batiam certo, mas nenhuma levantava suspeitas concretas sobre eles. “Um dizia que foram todos à lavandaria [no dia antes do desaparecimento]. Outro disse que a Valentina não foi“, recorda uma inspetora-chefe, explicando que não foi algo que tivessem valorizado: “As pessoas não se lembram exatamente do que fizeram”. Nas imagens de videovigilância da lavandaria a que tiveram acesso dias depois, Valentina não aparecia — àquela hora, como se viria a saber mais tarde, já tinha sido violentamente agredida pelo pai e viria a morrer pouco depois.

A madrasta de Valentina foi condenada a 18 anos e nove meses de prisão

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Sandro dizia também que “logo depois do desaparecimento, tinha pegado no carro e ido a um parque onde costumava levar as crianças”, na esperança de lá encontrar a filha. “Nesse percurso, havia uma zona comercial com videovigilângia, fomos verificar e o carro não tinha passado nessa estrada“, recorda outro inspetor, adiantando: “Ainda assim, as pessoas baralham-se e ele podia ter-se confundido”.

Só que “a correlação de várias situações destas já começava a levantar alguma suspeita”. E mais do que aquilo que Sandro dizia, era a forma “evasiva” como falava. “Cada vez que repetíamos uma pergunta, a resposta que ele dava também era diferente”, conta ao Observador o inspetor que o inquiriu. Ao longo do dia, os investigadores que estavam no terreno iam falando com Sandro, que andava por ali. “Quando se falava da Valentina, ele mudava de assunto“. A verdade é que estes indícios isolados não valiam nada, mas “eram centrados na mesma pessoa”.

Valentina foi vestida depois de morta? Madrasta ajudou o pai a esconder corpo? Os mistérios da morte da criança que a PJ tenta desvendar

Também a inquirição ao filho mais velho de Márcia Monteiro levantou suspeitas. “Usamos um método de inquirição com as crianças que funciona bem, mas, se estiver instruída para mentir, não é fácil aferir os factos”, explica um dos inspetores. Notava-se que a jovem estava “pressionado” a mentir. Tinha um “discurso redondo, sério, convincente, perfeito demais” e “estava tudo justificado”. “Sem nós perguntarmos, já havia uma justificação para tudo”, acrescenta o inspetor.

"Usamos um método de inquirição com as crianças que funciona bem, mas, se estiver instruída para mentir, não é fácil aferir os factos. [O irmão de Valentina] tinha um discurso redondo, sério, convincente, perfeito demais. Estava tudo justificado. Sem nós perguntarmos, já havia uma justificação para tudo"
Inspetor da PJ de Leiria

Se, nos primeiros dias após a participação do desaparecimento, a PJ não se queria “precipitar” a “afunilar” a estratégia, nem estava “suficientemente segura para avançar para uma linha de investigação” específica, no sábado, 9 de maio, o cenário já começava a ser diferente. Eram já muitos os indícios que se acumulavam. Começaram a criar-se “convicções” e, numa reunião ao final do dia de sábado, os inspetores traçaram uma estratégia para o dia seguinte. “Face a pequenas coisas que tinham sido encontradas, o que se impunha era confrontá-los com isso, na perspetiva não de homicídio ou rapto, mas de que aquilo que eles explicavam não era verdade“, detalha um inspetor.

Sandro negou responsabilidade na morte da filha durante 45 minutos, mas acabou por levar a PJ ao cadáver da filha: “Está aqui”

Na manhã de domingo, já 72 horas tinham passado desde o desaparecimento, os inspetores estavam prontos para avançar com a nova estratégia. Mas o pai de Valentina antecipou-se. Os inspetores estavam a caminho da Atouguia da Baleia quando receberam uma chamada do militar da GNR que estava a coordenar as buscas: Sandro tinha acabado de o abordar porque tinha “uma coisa muito importante para dizer”. “Eu sei que a minha filha estava a ser abusada sexualmente pelo padrinho“, reproduziu um dos inspetores.

Só que Sandro já tinha sido questionado, logo na primeira inquirição, sobre a possibilidade de a filha estar a ser vítima de abuso sexual. “Ele tinha dito taxativamente que não. Passado três dias vem dizer isso? Tinha de dizer logo. Ainda por cima falámos no assunto”, conta um dos inspetores que o inquiriu, explicando que neste momento as suspeitas se adensaram. Acredita que Sandro “não aguentou a pressão” e teve um “momento de fragilidade”.

Sandro levou a PJ ao local onde tinha deixado o corpo da filha

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A estratégia de o confrontar com os indícios que se acumulavam parecia agora mais acertada que nunca. Sandro foi levado para a esquadra da PSP onde foi inquirido novamente. “Durante 45 minutos negou, mas acabou por ceder. Não tinha qualquer hipótese de continuar a negar aquilo, percebeu que era incapaz de contrariar todos os elementos que tínhamos”, conta o inspetor que o inquiriu. Ainda assim, não assumiu o homicídio. Antes, disse que tudo tinha sido um acidente e que não tinha qualquer intenção de matar a filha: só queria que ela confessasse que estava a ser vítima de abusos sexuais e “descontrolou-se”. “Tentou amenizar a sua atuação: disse que deu duas ou três palmadas e pôs água quente nos pés. Apresentou uma versão leve. E teve uma postura de: ‘Eu sou pai, posso dar umas palmadas'”, detalhou o inspetor.

Mas, assim que viram o cadáver, os investigadores perceberam que as agressões “eram muito piores”. Foi o próprio pai da criança que os levou até ao local, numa floresta em Serra d’El-Rei, a poucos quilómetros da casa da família, onde o tinha deixado. Sem mostrar grande “emoção” e sem olhar para o corpo da filha, Sandro apontou apenas para o pinheiro que tinha partido e usado para tapar o cadáver. “Está aqui”, disse. Depois, foi para o carro, fumou um cigarro e começou a chorar, recordam os inspetores.

Inspetores acompanharam autópsia para tentar perceber se versão do Sandro era verdadeira. “Notava-se que havia muita violência”

A partir daquele momento, o caso deixou de ser um desaparecimento e passou para a brigada de homicídios. Um dos inspetores dessa brigada foi acordado nessa manhã: “Estava em casa, estava a dormir e o meu chefe telefona-me: ‘Vamos para a Atouguia que a menina já apareceu'”. Tem uma filha exatamente da idade de Valentina. Não esconde: o impacto na vida pessoal é grande. “Temos de esquecer isso, temos de tentar. Dos inúmeros cadáveres que já vi, houve alguns que nunca se esquece. Alguns por serem invulgares. Os das crianças nunca se esquece”, afirma.

"Temos de esquecer isso, temos de tentar. Dos inúmeros cadáveres que já vi, houve alguns que nunca se esquece. Alguns por serem invulgares. Os das crianças nunca se esquece"
Inspetor da PJ de Leiria

O inspetor foi um dos que acompanhou a autópsia a Valentina para “tentar perceber através do corpo” se a versão de Sandro — entretanto confirmada pela mulher — era “verdadeira”. “Às vezes há tudo a descobrir”, afirma, acrescentando: “Quando vejo o corpo pela primeira vez, não sabia o que ele [Sandro] tinha contado. Claramente, notava-se que havia muita violência: nota-se que era um ser muito frágil. Era pequena para a idade, muito magrinha”.

Já quanto aos abusos sexuais, não havia quaisquer sinais de que existissem mesmo. “Foi verificado logo na autópsia que não havia vestígio de abuso. E verificámos que não havia papelinhos nenhuns, o padrinho nunca tinha estado sozinho com ela. Eram boatos”, conta um dos inspetores. Ainda assim, acreditam que esse terá mesmo sido o motivo, ainda que sem fundamento, que levou Sandro a agredir a filha. “Parecia que estava a fazer aquilo, desempenhando o papel de bom pai. Em muitas famílias e em certos meios, as vítimas não são vítimas: são culpadas”, explica um dos inspetores.

Embora o ritmo tivesse baixado, ainda havia muito trabalho a fazer. Para começar, novas perícias na casa e no carro da família, agora com “outra minúcia”. Vieram a descobrir, por exemplo, que as fibras que tinham encontrado no banco de trás correspondiam à roupa que Valentina tinha vestida — já que o cadáver da criança foi transportado ali. Depois, nada melhor para descobrir se a versão de Sandro batia certo do que uma reconstituição. “Imaginemos: o Sandro e a Márcia podiam estar a atirar culpas um ao outro”, explica um dos inspetores. Por isso, levaram os dois a todos os locais onde o crime tinha acontecido para mostrarem à PJ como o tinham feito: à casa de banho onde a criança foi agredida por Sandro, ao lado de Márcia, à sala onde foi deixada durante várias horas, ao carro onde foi transportado o cadáver e novamente ao local onde foi deixado o cadáver — um trajeto que foi até cronometrado para verificar se seria possível ser feito nas horas que os suspeitos indicavam.

A investigação teve também de lidar com a população que se deslocou à Atouguia da Baleia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ao mesmo tempo que recolhiam provas, o telefone do piquete da PJ voltou a não parar de tocar com centenas de chamadas de pessoas a contar que Sandro já tinha sido violento para outra pessoa, já tinha agredido alguém no trabalho ou que já tinha tentado matar alguém. “Começa este fenómeno social inverso. E mais uma vez temos de verificar tudo”, conta um inspetor.

Lidar com a curiosidade de amigos e familiares é também outro desafio que enfrentam. “Todos os dias, chegamos a casa e as pessoas que vivem connosco só fazem perguntas e nós simplesmente não queremos falar sobre isto“, conta um dos inspetores. Um ano depois do crime e já depois de Sandro ter sido condenado à pena máxima, o caso da morte de Valentina continua a estar bem presente na PJ de Leiria. Com a cabeça apoiada na mão, um dos inspetores da brigada de homicídios atira: “Ainda há dias estava a falar com uma pessoa no âmbito de uma investigação, começou a olhar para mim e disse: ‘Eu vi-o na televisão por causa do caso da Valentina'”.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora