Ao longo de seis anos de investigação ao império Espírito Santo, o Ministério Público foi encontrando e tropeçando em centenas de ligações suspeitas — e algumas passaram mesmo o Oceano Atlântico e chegaram à América Latina. A partir de Portugal, os magistrados que assinam a acusação contra os alegados responsáveis pela queda do Universo Espírito Santo encontraram possíveis crimes de associação criminosa, corrupção com prejuízo no comércio internacional, corrupção no sector privado, falsificação de documentos e branqueamento de capitais que envolvem altas figuras do regime de Hugo Chavéz e Nicolas Maduro na Venezuela e até um ex-vice-presidente do Banco do Brasil, chamado Allan Simões Toledo.
No entanto, todas estas suspeitas vão continuar a ser investigadas num processo à parte que terá novamente Ricardo Salgado como principal arguido. Há ainda sete outros processos, também nascidos da investigação ao Universo Espírito Santo, que serão trabalhados autonomamente e que poderão dar origem a novas acusações.
O Observador resume-lhe cada uma das investigações que vão continuar, enquanto o processo principal, investigado desde 2014, é agora analisado pelas defesas dos arguidos para decidirem se avançam para a fase de instrução do processo, em que um juiz de instrução decidirá se o caso deve ou não seguir para julgamento.
Venezuela e outros países da América Latina. As ligações que vão continuar a ser investigadas
O procurador José Ranito, coordenador da equipa que investiga o Universo Espírito Santo, promoveu a 15 de junho a separação das suspeitas de corrupção no comércio internacional relacionadas com a Venezuela. A proposta foi aceite pelo o juiz Carlos Alexandre.
Ao que o Observador apurou, a principal razão para esta separação de um dos casos mais quentes do Universo Espírito Santo prende-se com o atraso das autoridades suíças e de outras jurisdições em enviar toda a documentação pedida pela equipa de Ranito. De acordo com o despacho de encerramento de inquérito. a que o Observador teve acesso, estão em causa as relações do Grupo Espírito Santo (GES) com a Venezuela, a Suíça, o Dubai e Macau que levaram a suspeitas de crimes de associação criminosa, corrupção com prejuízo no comércio internacional, corrupção no sector privado, falsificação de documentos e branqueamento de capitais. A pista da Venezuela está igualmente a ser investigada nos Estados Unidos e em Espanha — países com os quais o Ministério Público (MP) tem vindo a cooperar de forma intensa.
Ao longo da investigação, e tal como o Observador tem vindo a noticiar desde maio de 2018, o MP deparou-se com duas personagens essenciais a esta trama: João Alexandre Silva (ex-responsável do BES Madeira que é já formalmente acusado no processo principal contra o GES) e Paulo Murta, um emigrante português na Suíça que acabou a fazer a ligação com os venezuelanos. Os dois responderiam a ordens de Ricardo Salgado e de Michel Ostertag, um ex-quadro do Grupo Espírito Santo da confiança de Salgado.
O MP suspeita de que tenha havido do pagamento de alegadas luvas a titulares de cargos políticos e gestores públicos para que empresas venezuelanas — como a poderosa PDVSA e as suas filiais — comprassem dívida da Espírito Santo International e de outras holdings do GES para fazer face a problemas graves de liquidez. Neste contexto, poderão estar em causa alegadas ilegalidades nas “relações de negócio com entidades públicas venezuelanas, seus fornecedores, funcionários e titulares de cargos políticos” da Venezuela”, lê-se no despacho conhecido esta terça-feira.
Os procuradores detetaram o pagamento de alegadas comissões num valor total de mais de 124,5 milhões de dólares (cerca de 105 milhões de euros ao câmbio atual) a figuras centrais do regime venezuelano. Esse valor foi pago a 30 sociedades offshore com contas no Espírito Santo Bankers Dubai, um banco do GES, e representam, no entender da equipa do procurador José Ranito, alegadas contrapartidas com as seguintes explicações:
- investimento em dívida do GES e/ou depósitos de fundos de valor significativo no BES por parte de um conjunto de entidades públicas venezuelanas como a PDVSA e as suas sociedades subsidiárias (a PDVSA Finance e a PDVSA Insurance), o Banco del Tesoro (banco público que geria o importante fundo soberano Fonden — Fundo Nacional de Desenvolvimento), o Banco del Desarollo e Desenvolvimiento Social e diversas empresas da área da energia como a Corporación Eletrica Nacional, Eletricidade de Caracas, a Eletricidade del Caroni e sociedades mineiras como a Carbozulia. No total, o investimento venezuelano no BES e no GES terá alcançado um pico de 8,2 mil milhões de euros em junho de 2009.
- Numa segunda fase, o BES terá servido de intermediário dos alegados pagamentos de luvas que o grupo de Roberto Rincon e Abraham Shierra faziam a responsáveis da PDVSA no já referido esquema de corrupção, que terá levado ao desvio de mais de 3,5 mil milhões de euros da PDVSA. O BES terá ajudado a branquear esses valores com a compra títulos de dívida e de outros valores mobiliários do GES. Um caso que já levou a várias acusações no Estados Unidos, tendo as autoridades judiciais do Estado do Texas solicitado a cooperação internacional de Portugal.
Salgado e BES envolvidos em esquema de corrupção de 3,5 mil milhões de euros na Venezuela
Assim, neste processo, vão continuar a ser investigados alguns dos arguidos do processo principal, como Ricardo Salgado, Amílcar Pires, Isabel Almeida, António Soares, Pedro Pinto, Pedro Serra, Alexandre Cadosh, Michel Creton, João Martins Pereira, João Alexandre Silva, Francisco Machado da Cruz e Paulo Nacif Jorge.
Mas também o emigrante português na Suíça que acabou a viver no Dubai, Paulo Murta, Humberto Coelho, Miguel Caetano Freitas, Sofia de Almeida Ribeiro, Domingos Macias, Nervos Villalobos (vice-ministro de Energia Eléctrica de Venezuela entre 2001 e 2006, titular da offshore Canaima Finance Ltd), Rafael Reiter, Rita Gonzalez, Kuis Carlos de Leon, Abrham Shiera, Roberto Rincón, César Rincon (ex-diretor-geral da Bariven — uma filial da PDVSA que importava os bens alimentares que a Venezuela necessitava), Jean-Luc Schneider, Michel Ostertag (cidadão suíço) e Paulo Ferreira, “a par de entidade legais associadas a estes factos, incluindo as que foram objeto de medidas de garantia patrimonial, com eles relacionados”, lê-se no despacho de encerramento de inquérito.
Tal como o Observador então noticiou, também terá sido descoberta uma nova sociedade offshore a Margarita Mendola Sanchez, ex-procuradora-geral da Venezuela e atualmente ministra conselheira da Embaixada da Venezuela em Lisboa. Chama-se Daventer e terá recebido em fevereiro de 2013 cerca de 608 mil dólares (cerca de 537,4 mil euros ao câmbio atual) da ES Enterprises. Ou seja, Margarita Mendola Sanchez terá recebido um total de cerca de 6,3 milhões de euros do saco azul do GES entre 16 de março de 2009 e fevereiro de 2013. Apesar de o seu nome não constar desta certidão, as razões para estes pagamentos, no que a Mendola Sanchez diz respeito, ainda não estão totalmente esclarecidas e deverão também ser investigadas.
O caso do ex-vice-presidente do Banco do Brasil
Outra situação que será investigada no mesmo processo da Venezuela será o caso de Allan Simões Toledo, ex-vice-presidente do Banco do Brasil, que também terá recebido, como o Observador noticiou em novembro de 2018, cerca de 1,5 milhões de euros da Espírito Santo Enterprises, o famoso saco azul do GES.
O MP também vai investigar o contexto das “relações de negócio” com “altos cargos públicos de países da América Latina, em que se inclui o ex-vice-presidente do Banco do Brasil”, lê-se no despacho de encerramento de inquérito do caso BES.
Allan Simões Toledo, ex-vice-presidente do Banco do Brasil, recebeu no início de 2012 várias transferências do ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo numa conta bancária aberta no Espírito Santo (ES) Bankers no Dubai que totalizam um valor de 1,8 milhões de dólares (cerca de 1,5 milhões de euros ao câmbio atual).
Ex-vice-presidente do Banco do Brasil investigado por receber 1,5 milhões do ‘saco azul’ do GES
As transferências foram realizadas alegadamente por ordens de Ricardo Salgado e concretizaram-se entre a ES Enterprises e outra sociedade offshore, chamada Travbell Assets, SA. Os fundos transferidos representarão uma alegada contrapartida para Allan Simões Toledo, por ter exercido a sua influência enquanto administrador do Banco do Brasil na aprovação de uma linha de crédito daquela instituição financeira brasileira no valor de 200 milhões de dólares (cerca de 174,5 milhões de euros ao câmbio atual) para financiar o BES. Além da linha de crédito ter sido acordada no início de 2011 por tempo indeterminado, o GES já atravessaria dificuldades financeiras nessa altura, que não estariam espelhadas nas contas das suas principais holdings como a Espírito Santo International (ESI), pois as mesmas teriam começado a ser falsificadas desde 2009.
O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) está a investigar estas transferências no âmbito do chamado inquérito Universo Espírito Santo por suspeitas de corrupção no comércio internacional, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Este caso está a ser investigado no mesmo contexto das alegadas suspeitas de corrupção relacionadas com ex-titulares de cargos políticos e públicos venezuelanos.
Os crimes de natureza fiscal
Também a 15 de junho, por proposta do MP, o juiz de instrução Carlos Alexandre decidiu retirar deste processo um outro para investigar crimes de natureza tributária em relação ao conjunto de pagamentos processados a membros do GES, através de sociedades domiciliadas em regimes offshore, ou com contas abertas no estrangeiro, em relação aos quais não terá havido regularização tributária.
Neste processo são visados Ricardo Salgado, Amílcar Pires, José Manuel Espírito Santos e Manuel Fernando Espírito Santo, que já são arguidos no processo principal.
A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo
Estão em causa, ao que o Observador apurou, pagamentos da ES Enterprises e de outras três empresas offshore que assumiam o papel de saco azul do GES, para o ex-líder do BES, os seus primos e Morais Pires.
O MP assume no seu despacho de certidão de que “o centro documental que comprova as operações que envolvem estes factos encontra-se na Suíça”, sendo que a “informação solicitada” às autoridades judiciais helvéticas “ainda não está completa, aguardando-se resposta” aos pedidos feitos pela equipa do procurador José Ranito.
O processo contra operacional do principal saco azul do GES
Jean-Luc Schneider é para o MP um dos “peões de execução dos atos que foram praticados na Suíça a mando das instruções que por responsabilidade de Ricardo Salgado eram dadas em Portugal ou a partir de Portugal”, como se lê no despacho de encerramento do inquérito agora proferido e em que é acusado.
Na prática, Schneider — que também é referido na Operação Marquês — era o operacional da ES Enterprises, a empresa apontada como o principal saco azul do GES. Era este antigo quadro da ESFIL – Espírito Santo Financière quem executava as ordens de transferência alegadamente dadas por Ricardo Salgado e quem organizava a contabilidade paralela da Enterprises e de outras sociedades secretas do GES.
No entanto, os procuradores acreditam que existam mais indícios contra ele e, num despacho datado de 10 de julho, o juiz de instrução decidiu abrir um outro processo-crime para investigar crimes de associação criminosa, falsificação de documentos, branqueamento de capitais, corrupção de agentes públicos internacionais e corrupção ativa e passiva no setor privado.
Deste processo constará o interrogatório que lhe foi feito por carta rogatória, assim como o pedido de informações feito pelo Ministério Público português às autoridades do Luxemburgo.
As queixas contra a holding financeira do GES
À parte deste processo, cuja acusação foi agora conhecida, o MP ficará em mãos com um outro inquérito, desta vez contra a Espírito Santo Finantial Group (ESFG), a holding da área financeira do GES, sociedade que foi alvo de queixas pelos subscritores de obrigações emitidas por aquela sociedade. Os denunciantes apresentaram queixa contra os membros do Conselho de Administração da ESFG, SA, gestores de conta do BES, gestores do BPI, DIF Broker e BIZ Valor (relativamente aos títulos adquiridos em mercado secundário), alegando que decidiram aplicar o seu dinheiro na compra de obrigações da ESFG em erro sobre a verdadeira situação patrimonial da empresa.
Segundo o MP, os responsáveis pela administração da ESFG “sabiam que a sociedade não tinha capacidade para solver as suas dívidas” e, com a declaração de insolvência, as obrigações da ESFG detidas pelos denunciantes ficaram sem valor, o que lhes causou um prejuízo patrimonial equivalente ao montante gasto na sua subscrição/aquisição.
O processo contra o aumento de capital do BES
O juiz de instrução Carlos Alexandre acolheu mais um pedido de separação de processo e decidiu também retirar do caso principal as queixas feitas relacionadas com a aquisição de ações do BES, aquando do aumento de capital de 2012. No entanto, decidiu juntar este processo a outro já existente e em que se investigam “factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.”
Recorde-se que, de acordo com a tese do MP, os clientes BES foram utilizados desde 2009 para financiarem a holding Espírito Santo International (ESI) e outras sociedades do GES quando estas já estavam com dificuldades financeiras, como era do conhecimento de Ricardo Salgado. A ESI, a principal holding do GES, estava mesmo em falência técnica desde 2009, segundo o MP.
Os 3,8 milhões de euros apreendidos a Amílcar Pires na Suíça
O Ministério Público acredita também que Amílcar Pires (já arguido no processo), juntamente com Frederico Bento Machado de Morais Pires e Maria Inês Bento Machado de Morais Pires, poderão ainda incorrer num crime de branqueamento de capitais. Assim, os 3,8 milhões que lhes tinham sido arrestados em contas na Suíça vão permanecer “retidos” à ordem deste novo processo.
O crime de branqueamento imputado a Granadeiro
Também Henrique Granadeiro, ex-presidente da Portugal Telecom, deverá ser alvo de um processo-crime por branqueamento de capitais por causa das suas declarações nos autos do Universo Espírito Santo. A decisão foi assinada pelo juiz a 7 de julho último. O ex-administrador da PT é co-arguido de Ricardo Salgado na Operação Marquês, que tem José Sócrates como principal arguido. Neste caso está acusado dos crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada a no âmbito da Operação Marquês.