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Noémia Monteiro aguarda numa sala de espera quase vazia. Está ao lado da neta, que trouxe à consulta, num dia de chuva em maio. Abordada pelo Observador, diz que a USF São João (em São João da Madeira) funciona bem e que consegue marcar uma consulta em pouco tempo. Sempre teve médico de família. Mas, 280 quilómetros a sul, o panorama é bem diferente. Elisabete Almeida, há cinco anos sem um médico de família atribuído, aguarda há horas nas traseiras do centro de saúde da Póvoa de Santa Iria por uma senha que lhe dê acesso a uma consulta (que, ainda assim, não é garantida).
Estes dois casos são o retrato do acesso cada vez desigual aos cuidados de saúde primários entre os habitantes da região norte — onde a esmagadora maioria da população tem médico atribuído — e a região sul (sobretudo na Grande Lisboa) — onde a situação piora de dia para dia e mais de um milhão de utentes não tem médico.
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Apesar de também a região Norte estar a piorar ligeiramente no que diz respeito à cobertura de utentes por médico de família (tem 96%, quando já chegou a ter 98%), o fosso em relação à região de Lisboa vai-se alargando por causa da rápida deterioração da cobertura na região de Lisboa e Vale do Tejo. Aqui, são já praticamente 30% os utentes sem médico atribuído (1,1 milhões de pessoas). Há pouco mais de dois anos e meio, no final de 2021, eram cerca de 760 mil.
Depois do Norte, a região com melhor cobertura é o Centro (com 85%). Segue-se o Alentejo (84%), o Algarve (com 76%, é uma região com dificuldades em atrair médicos) e Lisboa e Vale do Tejo (com 70%).
Em São João da Madeira, há mais médicos candidatos que vagas
O ambiente calmo à entrada da USF São João, em São João da Madeira (Aveiro) denuncia a fluidez de um centro de saúde que funciona como poucos. Não faltam assistentes clínicas, enfermeiros nem médicos para os quase 15 mil utentes. O atendimento na secretaria é imediato. Não há tempo de espera.
As queixas ou a falta delas (só houve uma em 2023) são um sinal da qualidade do serviço que ali é prestado. Com oito médicos, oito enfermeiros e seis secretárias clínicas, esta Unidade de Saúde Familiar dá resposta a todos, e no próprio dia em casos de doença aguda. Aqui, todos os utentes têm médico de família atribuído.
Trata-se de uma cobertura de 100%, algo quase único a nível nacional e uma realidade distante da crescente escassez de médicos de família que se verifica mais a sul (muito mais distante que os 280 quilómetros que separam esta zona do norte do distrito de Aveiro do epicentro do problema, a Área Metropolitana de Lisboa).
A USF São João está inserida no melhor Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) do país no que diz respeito à cobertura de utentes por médico de família: no ACeS Aveiro Norte (que engloba vários concelhos na zona norte do distrito de Aveiro), em abril, apenas onze dos quase 120 mil utentes não tinham médico — uma percentagem quase nula (0,01%). Como termo de comparação, na região de Lisboa e Vale do Tejo há várias ACeS com mais de 30% de utentes a descoberto e um com 45% (o do Estuário do Tejo, o pior do país, de que falaremos mais adiante).
Em São João da Madeira, pelo contrário, não faltam médicos. Os candidatos superam consecutivamente as vagas disponíveis. “No novo concurso, tivemos as seis vagas preenchidas. E, pela ordenação final do concurso, percebemos que os melhores médicos escolheram tanto esta USF como as outras USF do ACeS Aveiro Norte”, sublinha Paulo Filipe Diz, diretor-executivo do ACeS.
Mas porque será este ACeS tão atrativo para os jovens médicos? “A principal razão tem a ver com o modelo de Unidade de Saúde Familiar, modelo A ou B. A nossa USF já é modelo B, o que é muito atrativo em termos remuneratórios e de condições de trabalho”, destaca José Vítor, o coordenador da USF São João. Das 12 unidades do ACeS, a maioria (sete) funciona como USF modelo B, duas são modelo A e apenas três são centros de saúde. “Isto é importante para reter os médicos”, reforça Paulo Filipe Diz.
O modelo B, com o qual muitos centros de saúde e USF de modelo A sonham, é neste momento o topo da organização dos cuidados de saúde primários. Criado em 2008, assenta num modelo de incentivos aos profissionais, premiando o desempenho, com o objetivo de reforçar a eficácia, a eficiência e a acessibilidade dos cidadãos. Apesar de já terem ficado comprovados os méritos do modelo, a verdade é que, 15 anos depois, apenas um terço da população portuguesa é servida por USF “de topo”.
Ao vencimento base, os médicos — mas também os enfermeiros e os secretários clínicos — somam complementos relacionados com o número (maior ou menor) de utentes idosos, grávidas e crianças acompanhados — são as chamadas unidades ponderadas. Quanto mais unidades ponderadas um médico tiver, mais ganha. Nestas condições, o salário bruto pode variar entre os 3500 e os 4000 euros mensais, cerca de 30% mais do que numa USF modelo A ou numa UCSP (centro de saúde).
Mas o vencimento não basta para atrair profissionais, sublinha José Vítor, que destaca também como fatores distintivos o bom ambiente de trabalho na USF São João, a autonomia para contratar profissionais (que depois são integrados mais facilmente) e as boas condições de trabalho, em instalações bem cuidadas e onde as falhas de material clínico ou equipamentos são raras. Quando é identificada a falta de algum material, consegui-lo é “mais fácil numa USF modelo B”, revela a enfermeira chefe da unidade, Susana Almeida.
Outro fator de atratividade, explica o diretor-executivo do ACeS Aveiro Norte, é a gestão de utentes, que permite — assim que surge alguém sem médico numa unidade de saúde — colocar esses utentes noutras unidades nas proximidades, onde existam vagas.
No entanto, neste modelo B, a responsabilidade exigida aos médicos é também maior. Ter mais unidades ponderadas nas suas listas significa ter de lidar com um maior número de idosos com doenças crónicas (diabéticos, hipertensos, com colesterol elevado) e também ter de garantir o acompanhamento e o controlo dessas mesmas patologias, de modo a cumprir as metas contratualizadas com a respetiva Administração Regional de Saúde — é uma espécie de selo de qualidade que a unidade tem de manter. “A USF modelo B garante uma melhor qualidade do atendimento”, sintetiza José Vítor.
“Somos avaliados em mais de 80 indicadores e mais de 90% das metas foram cumpridas, ao nível dos rastreios ou do acompanhamento dos hipertensos e diabéticos. Queremos estar no topo, não só pelos doentes mas também pelos profissionais”, diz o coordenador José Vítor, salientando que tanto os médicos como os enfermeiros e as secretárias clínicas trabalham 37 horas semanais
Para não deixar nenhum utente a descoberto, cada médico da USF São João assegura uma lista de cerca de 1850 pessoas, mais do que o número limite de 1750 por profissional. É outra das obrigações do modelo B.
Em casos de doença aguda, a USF São João assegura resposta no próprio dia. O mesmo acontece com os cuidados de enfermagem não agendados. A acessibilidade é tão fácil que o coordenador da unidade fala até num excesso de procura de certos utentes. “É uma USF de fácil acesso, está próxima da cidade e há bons meios de transporte até cá”, corrobora Fátima Ferreira, secretária clínica que trabalha nesta unidade há 15 anos, desde o momento em que foi criada. “Os utentes de outras localidades querem inscrever-se na nossa USF. Penso que está relacionado com a disponibilidade dos nossos médicos”, realça.
Já “o feedback dos utentes é positivo”, garante a enfermeira Susana Almeida. Noémia Monteiro é utente da USF João desde que esta foi criada, em 2008, e é o retrato da generalidade dos utentes. “Funciona bem, consigo uma consulta em pouco tempo”, diz. Também Cristina Silva, utente há 58 anos, está satisfeita com o funcionamento da unidade. “Arranjo consultas quando preciso, demora cerca de 30 dias”, salienta, confirmando que sempre teve médico de família atribuído.
E que conselhos pode dar o coordenador de uma USF sem utentes a descoberto (ou seja, sem médico atribuído) às unidades do sul e ao Ministério da Saúde? “Aos colegas do sul, sugiro que fomentem a criação de USF, o que, sem profissionais, admito, é difícil. E o Ministério tem de criar incentivos financeiros para atrair os médicos. Alugar casa em Lisboa consome quase o ordenado todo”, refere José Vítor.
No Estuário do Tejo, desespera-se por um médico — nalguns casos, há anos
A sul, o panorama é bem diferente. A falta de médicos piora a cada ano, a cada mês. O caso do Centro de Saúde da Póvoa de Santa Iria é um dos mais críticos de todo o país. Com cerca de 17.600 utentes inscritos, os médicos — apenas três — não conseguem dar resposta a todos os pedidos. Assim, cerca de 71% dos utentes não têm clínico atribuído: são mais de 12.500 pessoas.
Para muitos destes utentes, a que se juntam as outras dezenas de milhares de utentes sem médico de outras unidades do concelho de Vila Franca de Xira, a única opção que resta é aguardar várias horas à porta desta unidade para serem vistos no Serviço de Atendimento Complementar. No entanto, conseguir uma consulta, a partir das 20 horas, é tudo menos garantido — as vagas são poucas (apenas 10 ou 20 por dia).
“Posso estar aqui horas à espera e depois nem sequer ter consulta”, admite Vítor Xavier, um dos utentes que esperavam nas traseiras do edifício onde está instalado o centro de saúde, no dia em que o Observador foi ao local. Chegou à unidade às 14 horas e só às 20, seis horas depois, iria saber se conseguiria ser atendido. Tudo dependeria do número de médicos contratados (os chamados tarefeiros) presentes na consulta aberta. Um médico garante 10 consultas, dois médicos o dobro (das 20h às 22 horas, durante os dias úteis). As consultas esgotam sempre. Vítor Xavier é utente do Forte da Casa, um centro de saúde que não tem nenhum médico residente. Foi operado recentemente e precisa de acompanhamento. Mas a falta de médico de família (situação que se arrasta há mais de um ano) torna mais difícil garantir esse acompanhamento.
A falta de médicos sempre foi um problema para os moradores desta zona, no concelho de Vila Franca de Xira (a norte de Lisboa), mas tudo se agravou de forma abrupta no último ano. O centro de saúde da Póvoa de Santa Iria está agora mais ainda mais pressionado, uma vez que a situação noutras unidades do concelho é também bastante precária no que diz respeito aos recursos médicos.
Os centros de saúde do Forte da Casa e de Alhandra não têm médicos desde o início de 2023 e funcionam, desde então, apenas com serviço de enfermagem. Ao Observador, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) confirmou que, no último ano, entre abril de 2022 e abril de 2023, registaram-se 28 saídas de especialistas em Medicina Geral Familiar (MGF), 18 das quais por aposentação.
No caso de necessitarem de uma consulta, os utentes que estavam inscritos nestas duas unidades (mais de 22 mil pessoas) são aconselhados a recorrer ao Serviço de Atendimento Complementar da Póvoa de Santa Iria. E este encaminhamento acontece também com os utentes sem médico de família das outras unidades do concelho de Vila Franca de Xira, um território extenso, que abrange uma área que vai desde Santa Iria (a sul) até Castanheira do Ribatejo (a norte) e que tem mais de 137 mil habitantes. A outra opção que resta aos utentes passa por se deslocarem ao Serviço de Atendimento Permanente de Benavente, no distrito de Santarém, a cerca de 40 quilómetros e que é de difícil acesso para quem se desloca de transportes públicos.
“Venho várias vezes por mês. Tenho vários problemas de saúde”, explica Carla Pinto, outras das utentes que o Observador encontrou na Póvoa de Santa Iria e que ali chegou, para tentar assegurar uma vaga, mais de 10 horas antes do início da consulta aberta. “Muitas vezes vem só um médico”, diz. Carla Pinto, que vive em Vialonga, já não tem médico “há muito tempo” e não espera que lhe venha a ser atribuído um nos próximos tempos. “Dizem-me que vai demorar muito tempo. É uma vergonha”, lamenta.
Neste momento, a maioria dos utentes concentra-se na Póvoa de Santa Iria, já que, critica Jorge Carvalho, da Associação de Utentes de Saúde de Vila Franca de Xira, os serviços de Atendimento Complementares de Alverca e de Vila Franca de Xira encerraram, uma opção que os utentes, garante, não compreendem.
“Quando se encerraram os serviços de atendimento permanentes de Vila Franca e de Alverca, estavam à espera de quê? Neste momento, estão a gerir-se números”, indigna-se. “Muitos utentes não têm médico de família há muitos anos. E, além disso, estava previsto que os médicos iriam sair e não se encontrou uma solução. Há uma falta de vontade política”, diz, sublinhando que o SNS tem agora “um diretor executivo que foi nomeado para fechar serviços”.
Também Elisabete Almeida não tem médico de família atribuído há cinco anos, desde que a médica que a acompanhava se reformou. “Não é normal, sendo eu utente aqui há 45 anos, não ter médico”, diz. “Temos grandes condições a nível dos espaços, mas faltam os médicos”, sublinha. Elisabete Almeida realça que, ainda que vá conseguindo ser vista por médicos tarefeiros, o acompanhamento fica aquém do que é oferecido por um médico de família. “De cada vez que cá venho à consulta aberta, sou vista por um médico diferente. O que é que ele sabe sobre mim?”, interroga-se.
Com cerca de 45% dos utentes sem médico (107 mil pessoas), o Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) do Estuário do Tejo (que abrange 21 centros de saúde e unidades de saúde familiar dos concelhos de Alenquer, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Benavente e Vila Franca de Xira) é já o pior ACeS de todo o país no que diz respeito à cobertura da população com médico de família, segundo os dados referentes a abril, consultados pelo Observador no Portal dos Cuidados de Saúde Primários.
A deterioração do acesso aos cuidados de saúde a norte de Lisboa fez com que o ACeS de Estuário do Tejo ultrapassasse, no ranking que ninguém quer liderar, o ACeS do Arco Ribeirinho, que abrange vários concelhos na margem sul do Tejo (como Alcochete, Barreiro, Moita e Montijo) e agora ocupa o segundo lugar, com 41,6% da população sem médico. Segue-se o ACeS do Oeste Sul, onde 38,4% da população se encontra a descoberto.
“Ao longo do último ano, fizemos vários reuniões com o ACES, com a Câmara, com a ARSLVT, mas não houve resultados práticos”, diz Jorge Carvalho, lamentando que os responsáveis destas entidades, que são “nomeadas politicamente”, digam “que não têm respostas políticas porque são técnicos”.
A situação é tão grave que a ARSLVT decidiu avançar com uma auditoria a quatro centros de saúde deste ACeS, que vai incidir sobre “a organização, funcionamento e acessibilidade às quatro unidades auditadas”. Além disso, a ARSLVT não renovou o mandato da anterior presidente, Sofia Theriaga, que saiu em fevereiro, estando a aguardar substituição, confirmou esta entidade em resposta ao Observador. Apesar das várias tentativas, a direção deste ACeS nunca se mostrou disponível para prestar esclarecimentos ao Observador.
Com os cuidados de saúde primários cada vez mais pressionados e sem capacidade de resposta, para muitos utentes a solução passa por recorrer às urgências do Hospital de Vila Franca de Xira, uma unidade que também se debate com a falta de médicos para preencher as escalas do serviço de urgência e em algumas especialidades.