Num ano marcado por acusações que deram um novo fôlego à discussão sobre a violência sexual em Portugal, 2024 chega ao fim coroando como “acontecimento” a peça À Primeira vista, adaptação portuguesa do monólogo criado por Suzie Miller que, mais do que a história de uma mulher violada, é a história de como a justiça trata as vítimas de violação ou abuso sexual.
A peça, interpretada por Margarida Vila-Nova e encenada por Tiago Guedes, estreou-se em julho e prossegue para 2025 com todas as datas esgotadas. O que tem este espetáculo que levou tantos dos que saíram do Teatro Maria Matos, em Lisboa, de tal forma impactados com a violência que descrevem o seu visionamento como “urgente” e “necessário”? Que ilações podemos tirar que a peça-sensação do ano coloque espectadores a refletir sobre consentimento e justiça num país em que o movimento #MeToo tem tardado em chegar?
Vários dos espetáculos que ficaram para a história deste ano que agora termina refletem sobre a violência sobre as mulheres (The Confessions, Black Lights, A Rainha da Beleza). Outros refletem sobre a violência da ditadura (A Colónia), ou mesmo do mundo (Na Medida do Impossível). Estarão as artes performativas mais empenhadas na discussão de assuntos prementes ou estaremos nós, espectadores, mais atentos? Queremos acreditar em ambas as possibilidades.
À Primeira Vista
De Suzie Miller. Encenação de Tiago Guedes
Teresa, brilhante advogada, encontra nas leis a flexibilidade para ganhar cada cada caso. Até que é violada por um colega e conhece a violência de, no papel de vítima, reviver o episódio em loop, sabendo que o cenário final é uma mais que provável derrota legal. A peça de Suzie Miller chegou em boa hora a Portugal por força e vontade de Margarida Vila-Nova, atriz que conduz este poderoso monólogo que, sem cair no tom de manifesto e panfleto, é um retrato da vulnerabilidade das vítimas e da desumanização da justiça. Atriz e encenador (Tiago Guedes) reconhecem que o momento político e social que se vive em Portugal torna esta obra “uma urgência”.
A Colónia
De Marco Martins
É comovente o retrato que Marco Martins compõe ao contar a história dos filhos de presos políticos durante o período salazarista, pelo que não é de estranhar que, depois da noite de estreia, o passa-palavra tenha resultado em todas as récitas esgotadas. Trata-se de um extraordinário documento sobre uma inédita colónia de férias, nas Caldas da Rainha, destinada a filhos de opositores ao regime durante o Estado Novo. Mas o brilhantismo desta A Colónia está também na forma como Marco Martins põe em palco aqueles que viveram a história — libertando-os dos documentos e entregando-os a um conjunto de notáveis atores (João Pedro Vaz, Sara Carinhas, Ana Vilaça, Rodrigo Tomás) —, na música ao vivo trabalhada por B Fachada, na irrepreensível cenografia de Isabel Cordovil, João Romão (xxxi.studio). Ao fim de doze meses, o cinquentenário do 25 de abril de 1974 parece, afinal, ainda inspirar autores a criar algo verdadeiramente novo. O espetáculo de Marco Martins é um magnífico exemplo.
Na Medida do Impossível
De Tiago Rodrigues
A partir de entrevistas com pessoas que trabalham no Comité Internacional da Cruz Vermelha e nos Médicos Sem Fronteiras, o criador português e diretor do Festival de Avignon Tiago Rodrigues criou um espetáculo sobre a experiência destes profissionais que viajam entre o possível e o impossível. A tenda, subida a pouco e pouco pelos atores, descobre um mundo onde a guerra, a fome e a violência destroem o futuro e a própria vida. Dans la mésure de l’impossible é uma peça inquietante, perturbadora, que mede o pulso ao estado do mundo e põe a nu a dimensão da crueldade humana.
Céu da Língua
De Gregório Duvivier. Encenação de Luciana Paes
É uma peça de teatro? É uma performance de stand-up? É um concerto? Na folha de sala, o ator e humorista Gregório Duvivier define este Céu da Língua como “um filho do stand up comedy com circo pobre”. Numa altura em que o esbatimento de fronteiras entre disciplinas artísticas é cada vez mais o prato do dia, Duvivier serve-nos um repasto cheio de linguagens num monólogo que fala, precisamente, de linguagem. É uma comédia que celebra a língua portuguesa, em que jogos de palavras se misturam com versos de Camões e Eugénio de Andrade ou canções de Caetano Veloso — com muitas gargalhadas pelo meio.
The Confessions
De Alexander Zeldin
Alexander Zeldin, nome cimeiro do teatro europeu contemporâneo, conhecido sobretudo pela trilogia sobre desigualdades sociais — Beyond Caring, Love e Faith, Hope and Charity — trouxe ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o seu trabalho mais pessoal até à data, inspirado na história de vida da sua mãe, a partir de extensas conversas que tiveram durante a pandemia. É uma peça sublime sobre uma mulher que não se resigna ao destino que lhe estava condenado: ser dona-de-casa. Alice sonha confrontar-se com obras de arte, ver o mundo, libertar-se. É a epopeia de uma mulher que acha que não tem uma história para contar que se transforma num testemunho político maior — com um aparato visual que lhe faz juz.
The Look/Supernova
De Sharon Eyal e Iratxe Ansa/Igor Bacovich. Por Companhia Nacional de Bailado
The Look, de Sharon Eyal, e Supernova, da dupla Iratxe Ansa/Igor Bacovich. Foram estes os espetáculos (apresentados em conjunto) escolhidos pela Companhia Nacional de Bailado para voltar à sede depois das obras do PRR. Saímos fascinados pelo fenómeno cósmico que foi Supernova, mas hipnotizados com The Look, peça de Sharon Eyal criada em 2019 para a companhia israelita Batsheva Dance. O impacto sensorial do movimento dos intérpretes, amplificado pela música eletrónica, captou o público desde o primeiro momento. O regresso da CNB ao Teatro Camões seria sempre uma felicidade. Não se esperava tamanho deslumbramento.
Se te Portares Bem, Vamos ao McDonald’s!
De Mário Coelho
“O que foi isto?” Foi o que escutámos à saída de Se te Portares Bem, Vamos ao McDonald’s!, peça sobre uma família que lida com o luto recorrendo aos serviços de uma empresa de substitutos humanos. O espetáculo estreou-se de forma fugaz em 2022 no Teatro do Bairro Alto e voltou a merecer um parco número de récitas no Teatro Ibérico em 2024. Teve pouca ou nenhuma imprensa e quem o viu dificilmente consegue falar sobre ele sem o revelar — e o destruir. A peça mais bizarra que vimos este ano, em partes iguais fantasmagórica e realista, e com um rasgo que coloca Mário Coelho como um nome a atentar na criação portuguesa contemporânea.
Black Lights
De Mathilde Monnier
É um retrato da violência exercida sobre o corpo feminino que a coreógrafa francesa Mathilde Monnier mostra em Black Lights, espetáculo que se revelou uma das jóias desta edição do Festival de Almada. Nesta sequência de histórias de violência há abusos físicos e verbais, demonstrações de machismo e discriminação. Tal como na vida, estão em todo o lado: na rua, em casa, no emprego, na escola, nos transportes, no tribunal, sem rodeios ou enfeites literários, de forma crua e direta. Um corpo de bailarinas caminha sobre as denúncias até um ruidoso grito de revolta que o público aplaudiu com fervor. Recuperamos as palavras de Monnier, ao Observador: “O corpo tem muito poder. Queremos mostrar que ele tem de ser visto, em frente ao público, estamos aqui”.
A Rainha da Beleza
De Martin McDonagh. Encenação de Sandra Faleiro
Maureen, uma mulher solteira na casa dos 40 anos, cuida da mãe, Mag, mulher manipuladora e amarga que impede a filha de viver um grande amor. O texto do irlandês Martin McDonagh (conhecido cineasta dos filmes Três Cartazes à Beira da Estrada e Os Espíritos de Inisherin) não se estreou agora nos palcos portugueses, mas encontrou na encenação de Sandra Faleiro o veículo certo para expôr uma relação de codependência que exemplifica como as relações familiares podem ser lugares de opressão e violência. Paula Lobo Antunes interpreta magistralmente uma sombria Maureen, tornando esta comédia negra muito menos risonha.
Sybille
De Romeu Runa
Um corpo nu pousado sobre uma montanha de sal movimenta-se milimetricamente. Em colaboração com a artista visual Berlinde De Bruyckere, e inspirando-se nas suas obras, o bailarino português Romeu Runa apresentou duas performances no espaço expositivo de Atravessar uma ponte em chamas, mostra da artista belga que inaugurou o MAC/CCB. Mas foi na segunda, Sybille, que Runa se aproximou da perfeição, com movimentos subtis, mas precisos, que evocam o processo de salga das peles de animais. Foram 45 minutos de poesia e contemplação, mas também de surpresa aqueles em que descobrimos que um grande momento das artes performativas em 2024 estava fora dos palcos tradicionais, numa sala de museu.