Ricardo Araújo Pereira diz que não faz “bem coisas”, faz “uma espécie de coisas”. E o novo livro, que acaba de ser publicado (A Doença, O Sofrimento e a Morte Entram num Bar), é uma “espécie de manual de humor”. E sobre textos humorísticos, RAP esclarece: “Acho que é duvidoso que se possa ensinar, mas acho que se pode aprender”.
A convite do Observador, o humorista e escritor esteve na redação do jornal para uma entrevista coletiva, com perguntas de jornalistas, colaboradores e leitores. Falou sobre humor, naturalmente — “Às vezes acusam-me de fazer humor inteligente. Fico sempre com a sensação que é quando as coisas não têm graça” — mas também passou pelo comentário político: “Neste momento, [Costa] é capaz de pôr judeus e muçulmanos à mesa, chegarem a um acordo e acabarem a comer bifanas.” Comentário humorístico, mas Ricardo Araújo Pereira é o primeiro a admitir que é isso que esperam do seu trabalho.
Houve perguntas sobre a liberdade de expressão que o inquieta, respostas que passaram pelos dez anos de Rui Costa na Fiorentina e como é divertida a geringonça. Mas foi pelo novo livro que começou a conversa (e no final do artigo pode ver a entrevista na íntegra em vídeo).
A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram Num Bar não é um livro de comédia, não é uma reunião de crónicas e parece que também não é um manual para se aprender a escrever sobre humor. É exatamente o quê? Porque é que as pessoas devem comprar este livro?
Se calhar as pessoas deviam ponderar bem antes de o adquirir porque essa é uma boa questão — para quê comprar isto? Como disse, não é um livro humorístico, por isso não se precipitem para as livrarias se é disso que estão à procura. O subtítulo diz que é uma espécie de manual de escrita humorística e é assim que se chama por duas razões: primeiro porque tudo o que faço não é bem uma coisa, é uma espécie de uma coisa. Seja o que for. Quando estou a correr, não estou bem a correr — é uma espécie de corrida. Digamos que não controlo o meu corpo ao ponto de podermos dizer que faço coisas — faço uma espécie de coisas. Por outro lado, é uma espécie de manual de escrita humorística porque talvez seja impossível escrever um manual de escrita humorística na mesma medida em que é possível escrever um manual do IKEA. Não é possível na escrita humorística dizer “introduza agora o parafuso A na ranhura”, não funciona dessa forma. Acho que é possível aprender a escrever um texto humorístico, e esse é um dos pontos de partida do livro.
Alguns rústicos dizem que não, que isto não se aprende, que uma pessoa nasce com um determinado talento e não pode aprendê-lo. Acho que é duvidoso que se possa ensinar, mas tenho a certeza absoluta que se pode aprender, caso contrário não teria conseguido. Ao fim de ler o livro, ninguém ficará habilitado a escrever um texto humorístico mas, também, diga-se em minha defesa que a seguir a ler a Poética do Aristóteles ninguém está apto a escrever uma peça. Quando comecei a escrever textos humorísticos, gostaria que alguém me tivesse dito duas ou três coisas dessas. Não que adiante, mas também não prejudica. Acho eu.
Quando é que começou a teorizar sobre o humor? Foi antes de formar os Gato Fedorento?
O início é anterior a isso. Quando acabei a faculdade, fui para uma empresa onde escreviam textos para atores a sério — para o Herman, para a Maria Rueff — e para uma pessoa que faz o que eu faço não há uma formação. Isso é uma das coisas curiosas disto — é provavelmente das poucas áreas de criação em que as pessoas não têm um sítio onde aprender. Isso nota-se sobretudo nos esforços artísticos coletivos. Por exemplo, não surpreende ninguém que, num filme, o realizador tenha estudado na Escola de Cinema e que o autor da banda sonora tenha estudado no Conservatório. Mas, se o argumentista foi tentar aprender alguma coisa sobre o seu ofício, parece que prejudica alguma espontaneidade ou uma espécie de contrato que existe com uma divindade e que o ajuda a mexer a mão quando ele escreve. Subsiste uma espécie de mito romântico do artista aplicado às pessoas que escrevem e, mais ainda, às pessoas que escrevem textos humorísticos. Portanto, a ideia do livro nasce ainda antes desse momento em que referi — na altura em que percebo que é assim que ponho o pão na mesa, a escrever textos humorísticos para atores. É nessa altura que uma pessoa dá por si a pensar em como é que isto se faz.
A questão é esta: toda a gente já teve essa experiência, a de fazer rir os amigos na mesa do café ou a família no Natal. A questão é de consistência: como é que eu faço isto sempre que me apetecer? Não posso telefonar para a Visão esta semana e dizer: “Não me ocorreu nada, um abraço! Até para a semana!”. Isso não me é possível. É nessa altura que uma pessoa dá por si a pensar sobre o seu ofício e a tentar perceber como é que pode fazê-lo com mais eficácia. Às vezes até a pensar nos seus próprios raciocínios de frente para trás. Percebo como é que, de repente, me ocorreu uma coisa. Uma pessoa não sabe muito bem de onde é que as ideias vêm, mas percebe que lhe ocorreu uma coisa e um método de explorar a ideia. Depois, se calhar, vou fazer o exercício de seguir os meus passos ao contrário e perceber de que modo é que se foi chegando lá. Isso sobretudo por causa daquilo que referi no início — quem faz aquilo que eu faço não tem uma escola, não tem quem lhe ensine e, por isso, tem de fazer o seu próprio curso, digamos assim. Mais ou menos o que o livro faz — expor uma parte daquilo que foi a minha formação feita por mim próprio.
Queria fazer-lhe uma primeira pergunta, de um dos nossos colaboradores que não está cá. É da Susana Romana. E ela diz (eu vou ler para não me falhar nada): ‘As piadas sobre flatulência existem desde os autores gregos, tidos hoje como símbolo de erudição. Faz mesmo sentido falar de comédia inteligente e da outra? Existe alta comédia e baixa comédia?’
Obrigado, um agradecimento à Susana Romana, que é minha companheira de infortúnio, não só a levantar cedo e a fazer palhaçadas na rádio, mas também a escrever livros sobre escrita de comédia. Sim, faz sentido falar em humor inteligente. Às vezes acusam-me de escrever humor inteligente. Fico sempre com a sensação de que é quando as coisas não têm graça. Parece-me que é muitas vezes essa a perspetiva das pessoas. Mas o que é curioso é que a inteligência do humor não tem a ver com o tema. É possível, por exemplo, fazer humor político péssimo e fazer humor muito inteligente sobre flatulência. Há um livro do Jonathan Swift, que ele assina com o pseudónimo Don Fart in Hando Puffindorst, que se chama The Benefit of Farting Explain’d, que é sobre traques. E o livro é muito inteligente, muito sofisticado. É possível fazer humor sofisticado com temas comezinhos e fazer péssimo humor acerca de temas elevados. O tema não define se o humor é mais ou menos sofisticado ou mais ou menos inteligente.
Um leitor que nos está a seguir pelo Facebook, João Paulo Pinheirinho, pergunta se será que ainda temos razões para rir ou se a vida política e social já é suficientemente engraçada?
Obrigado pela questão também ao nosso leitor. É uma boa pergunta, esse é um dos paradoxos relacionados com a comédia — se é legítimo rir num sítio como este. Não o Observador, mas num sítio como o mundo. Se o mundo é mais apropriado ao luto do que ao riso. Podemos colocar essa questão e podemos colocar a questão inversa — se calhar, num sítio em que se esperaria mais luto do que comédia, é precisamente esse o sítio onde a comédia é mais necessária, onde o riso é provocado mais facilmente.
Aquilo a que a gente chama a boa disposição costuma ser inimiga do riso. Quando estamos bem dispostos, há um tipo de riso, mas se calhar não é o tipo de riso que me pagam para produzir. Quando um jogador de futebol marca um golo, ri-se, mas não é o tipo de riso que me interessa e de que se fala neste livro. Aquilo que o leitor diz vai de encontro a um problema que parece que temos hoje e que ficou claro nas últimas eleições americanas — de facto, há alguns aspetos da política, e alguns agentes políticos, que parecem ser imunes à sátira precisamente porque as declarações que produzem já são uma espécie de inversão das coisas. É difícil fazer um comentário a uma declaração do Donald Trump e torná-la mais absurda porque, em princípio, já vem num ponto muito elevado de absurdo.
Li um estudo sobre o modo como o Donald Trump acabou por gastar muito menos dinheiro em intervenções televisivas porque não precisava. Ele era uma força tão grande do ponto de vista das audiências que os canais queriam tê-lo e, precisamente por quererem tê-lo, até se faziam algumas cedências. E sobrepunha-se àquilo que o jornalismo pedia naqueles casos.
Se o Jon Stewart estivesse no ativo nesta campanha, isso teria feito alguma diferença? Há pessoas que acham que sim.
Acho que isso é injusto e até absurdo porque ninguém se pode queixar de o Trump ter sido pouco satirizado. Não me parece que haja candidato mais violentamente satirizado na história da sátira política. Não sou versado no que aconteceu na eleição do Péricles, mas não me parece que tenha havido mais do que isto. Isso é uma questão curiosa porque, às vezes, há pessoas que dizem que o humor tem muito poder, que o humorista pode condicionar resultados eleitorais, resultados de um referendo, derrubar um governo, que uma piada é uma bomba atómica.
Disseram isso de si.
Sim, disseram isso de mim, mas sem nunca apresentarem factos que permitam dizer: “Cá está, sim senhor, há aqui um núcleo bastante alargado de pessoas que iam votar ‘não’ no referendo e que depois de o terem visto durante um minuto e 55 segundos a dizer ‘posso fazer mas é proibido, bom’ [imita Marcelo Rebelo de Sousa] disseram ‘não, não tinha pensado nas coisas desta forma, afinal vou votar sim’”.
Não leva as pessoas a mudarem de opinião, mas pode mobilizá-las.
Exato, mas eu não sou ingénuo ao ponto de dizer que não tem efeito nenhum. Tem algum, mas não é tanto quanto as pessoas acreditam. E o pouco efeito que tem é difícil de controlar, como se viu agora nos EUA. Só conheço um humorista americano, o Dennis Miller, que votava Trump. Não conheço nenhum outro que votasse. E aqueles mais salientes — o John Oliver, as pessoas do Saturday Night Live, o herdeiro do Jon Stewart no Daily Show, o Stephen Colbert –, todos eles fizeram sátiras muito violentas e destrutivas. E a questão é: isso não teve o efeito que a gente esperaria — que eles tivessem condicionado a eleição do modo que eles obviamente pretendiam. Isso tem a ver com várias coisas: uma delas, por exemplo, é o facto de a sátira ter uma componente quase contraditória de homenagem.
Uma vez, pusemos um cartaz no Marquês de Pombal a fazer pouco de um cartaz dos nazis que lá estava. Numa universidade, uma aluna negra perguntou-me: “A vossa intenção ao colocar o cartaz era satirizar o cartaz do lado ou dar-lhe mais visibilidade?”. E gerou-se aquele burburinho na sala como quem diz: “Bizarro, claro que a intenção deles era satirizar o cartaz!”. Mas a pergunta tem muita razão de ser porque, de facto, não se falou tanto do cartaz dos nazis como desde que nós pusemos o nosso ao lado. Além de que, como eu dizia, a sátira tem uma componente evidente de homenagem nem que seja por reconhecer a existência do objeto satirizado e, segundo, essa homenagem é ainda mais profunda porque normalmente a sátira depende de um conhecimento profundo do objeto satirizado. Ou seja, é preciso dedicar-lhe alguma atenção.
Lembro-me que, quando a gente dava uma volta no Marquês de Pombal, olhar para os dois cartazes produzia um efeito que não era exatamente aquele que a gente podia esperar porque o nosso cartaz estava impecável. Quatro palermas tinham feito um cartaz e o cartaz não tinha uma nódoa. Já não se percebia o que dizia o cartaz dos nazis, estava cheio de pichagens. Era possível, até para mim, passar por ali e ter o primeiro impulso de dizer: “Epá, coitados dos nazis”. Portanto, não é negligenciável a hipótese que nos Estados Unidos tenha acontecido uma coisa parecida.
Há um caso muito citado que é o da eleição de Jacques Chirac. Na primeira fase da campanha, ele estava em último nas sondagens e todos os amigos o tinham abandonado para integrar as campanhas eleitorais das pessoas que tinham verdadeira hipótese de serem eleitas. Por isso, num programa que era um espécie de Contra-Informação francês, o boneco do Jacques Chirac era uma figura patética cheia de punhais cravados nas costas, abandonado por todos. E os outros bonecos perguntavam-lhe “então Chirac, está tudo bem?”, e ele dizia “está, tenho uma comichãozinha nas costas só, não sei o que é isto”. No fim, quando ele foi eleito, houve analistas que disseram que talvez isso tivesse desempenhado um papel para mudar a opinião pública porque talvez a figura patética daquele homem abandonado por todos tivesse contribuído para condoer os eleitores. Isso serve para ilustrar que o humor não tem assim tanto poder e, quando tem, não é manobrável ao gosto de quem o faz.
Isso não entra nos seus cálculos quando faz comédia?
Repare: optei por não esconder as minhas convicções. Toda a gente sabe que eu sou meio comuna, ateu, gosto de bacalhau com batatas e sou do Benfica. A minha experiência é que as pessoas se estão borrifando para as minhas opiniões. As que têm interesse em mim não têm interesse nas minhas opiniões, querem é saber se tenho ou não capacidade para as fazer rir. Quando vou ao Porto e entro num táxi, o taxista diz-me sempre: “Você só tem um defeito” e eu já sei do que é que estamos a falar, que é curiosamente da minha única qualidade. Aquela ideia de que as pessoas vivem num concurso de popularidade e querem dizer coisas com as quais os outros concordam para que os outros gostem delas é bizarro. Essa divergência é um fator de aproximação.
Quando fizemos o sketch sobre o Professor Marcelo, toda a gente sabia a nossa tendência de voto naquele referendo, mas não fiz o sketch para ter influência no referendo. Seria absurdo achar que ao fim de dois Prós e Contras, de tempos de antena, blogs a favor e contra, ia chegar ali e dizer: “Espera aí que eu resolvo este referendo. Sabes como? Dá-me aí uma peruca e num minuto e 55 segundos vou dizer ‘podes fazer, mas é proibido’ e está ganho”. Fiz aquele sketch por uma única razão: achei que tinha graça. Dou sempre este exemplo, acredito que vão gostar: é possível que o sketch tenha tido alguma influência mas também é possível que se estiver sol no dia das eleições isso tenha influência. Ora, nem eu nem o sol estamos a fazer política. Eu gosto deste exemplo porque permite comparar-me com o astro-rei. Nem um nem outro está a fazer política — estamos só a brilhar muito alto.
Toda a gente que queira seguir esta entrevista pode utilizar o Facebook, o Twitter, hashtags, etc. e a verdade é que o Ricardo não está a usar nada disto para promover o livro nem para brilhar mais alto porque não tem conta em redes sociais. Porque não precisa ? Não quer estar mais próximo dos leitores?
Percebo a sua questão e percebo até a ideia de estar mais próximo. Tenho dúvidas dessa proximidade que se obtém através das redes sociais porque as pessoas, acho eu, não são bem elas nas redes sociais. E ainda bem, porque se as pessoas são aquilo… Deus nos livre! As pessoas às vezes ficam com a ideia de que eu não gosto de ser abordado na rua, e é o contrário. Gosto, até porque as pessoas são sempre de uma gentileza muito maior do que mereço. Nunca tive uma má experiência, tirando uma vez com um bêbado à noite mas só porque ele se agarrou… É uma pessoa que, enfim… Tem tendência a tornar-se pegajosa. De resto, as pessoas vêm dizer-me coisas simpáticas e até comoventes. Quando às vezes me vêm agradecer como se eu estivesse a prestar-lhes um serviço, como se não me pagassem para fazer isto.
Mas talvez possa argumentar que não preciso de redes sociais. Percebo os pontos positivos, mas não gosto muito da ideia. Não gosto da mentalidade de gangue que se junta às vezes. “Vamos todos atirar pedras para ali! Espera que aconteceu outra coisa que me está a indignar noutro lado.” Esse tipo de ajuntamento de chacais, às vezes organizados outras vezes só informalmente organizados, não me agrada muito. Aborrece-me também uma certa tendência que as pessoas têm para fazerem do Facebook aquilo que Peter Ustinov, que faz de Nero no Quo Vadis, faz com uma garrafinha para as lágrimas. Ele diz: “Vou verter uma lágrima por esta tragédia, deem-me a garrafinha!”. Às vezes há pessoas que usam o Facebook assim. “Vou agora comover-me com este massacre!”, e dizem coisas que servem apenas para uma manobra mais ou menos pornográfica de dizer “não se esqueçam que eu continuo cá”. “Estamos todos muito tristes com isto que aconteceu em Boston, mas eu estou especialmente triste. Olhem para mim.” Bom, nem toda a gente usa o Facebook dessa forma.
Há ainda um terceiro ponto: às vezes o Facebook parece-me aquela história do velho, do menino e do burro. Eles passam por várias aldeias e na primeira aldeia vão os dois a pé e as pessoas da aldeia dizem: “Estupidez! Têm um animal e vão os dois a pé”, e eles põem-se em cima do burro. E na segunda aldeia dizem: “Ai, o bicho a aguentar com os dois! Um para baixo, pelo menos!”, e o menino sai. E na aldeia seguinte dizem: “Ai, o velho refastelado e o puto vai a pé” e eles trocam. Na aldeia seguinte dizem: “Ai, o menino ali e o velho coitado!”.
Portugal entrou numa espiral de Web Summit, estratégia internacional para o empreendedorismo, startups tecnológicas. Acha que vamos conseguir tornar-nos num país tecnológico reconhecido lá fora ou isto é uma piada para si?
Uma vez escrevi uma crónica sobre a igreja universal do reino do empreendedorismo, como aquele rapaz que foi contratado pelo Relvas. Sempre que esse rapaz fala fico com a ideia de estar a ouvir o Pastor Jorge Tadeu aplicado às novas tecnologias, ao milagre da técnica. Sou muito reacionário nesta matéria, tenho alguma repugnância pela terminologia inglesa mindset e do feedback que eu vou obter após os inputs e tenho alguma repugnância também pela ideia de que toda a gente pode fazer o seu próprio emprego… Epá, não tens emprego? Faz a tua própria startup. É facílimo, inventas um… E não é assim. É como estar a gritar com uma rã sem pernas: “oh pá, corre”. E depois eles próprios encarregam-se de me dar material. Por exemplo, esse mesmo rapaz tinha uma frase célebre: “Peguem na palavra empreendedor. Já viram como é que a palavra acaba? Acaba na palavra ‘dor’, porque realmente é a palavra mais difícil…” Canalizador também acaba… Curiosamente. E mais, e esse era o meu ponto, a palavra desempregado, acaba em “gado”. E eu sinto que essa gente costuma tratar os empregados como uma manada de… vacas. E isso aborrece-me.
Mas o Ricardo também pode ser considerado um empreendedor.
Não sei se hei-de agradecer isso ou não, mas o Web Summit é um conjunto de… totós… eu sei que a vossa palavra é diferente. Há uma que tem mais prestígio. No meu tempo informáticos eram pessoas em quem a gente batia no recreio… Eu digo cada vez mais a expressão “No meu tempo”. No meu tempo os filmes de aventuras eram com piratas, eram sobre estrelas e hoje são sobre piratas informáticos, estrelas que inventaram o Facebook, piratas informáticos, o Matrix, aquilo é ficção científica. A parte principal da ficção científica é que todas aquelas pessoas são informáticas. São craques dos computadores e não há uma única borbulha naquelas caras. Olhamos para aquela gente e não são informáticos, não há óculos, não há acne, não há nada…
O Ricardo já fez uns investimentos. A expressão em alguns jornais foi “um gato entalado”. Onde está a investir neste momento, para podermos dizer aos leitores “não invistam aí”?
Custa-me um pouco falar disto. Não só porque é uma coisa da minha vida mas também porque há gente que tinha o dinheiro exatamente onde eu tinha e que perdendo menos do que eu ficou sem nada. Estar-me a queixar parece-me absurdo. Mas já agora fica a experiência. As pessoas que mexem com o dinheiro perguntam-nos se somos um investidor conservador, médio ou ousado. Digo sempre conservador porque aquilo custou-me a ganhar, mais ou menos. Eles disseram “não se preocupe porque vamos pôr isto num negócio que não falha”. Só que o banco tinha alguma coisa a ver com o BES, tinha um parentesco com o BES e quando se começou a falar do BES comecei a ficar inquieto e disse: “Olhe, já agora tirava o dinheiro daí”. E ele disse: “Já não dá”. Porque o dinheiro estava na Rio Forte e eu nunca tinha ouvido falar da Rio Forte. Às vezes vou ao banco e digo “posso ver as notas?”. Dizem-me que não funciona assim. Fico muito surpreendido, confesso que não percebo como é que um banco perde dinheiro. Porque no meu tempo o negócio era infalível. É comprar dinheiro barato, aquilo é papel, o produto não se gasta. Mesmo assim eles conseguem enterrar. Não consigo ajudar os leitores mas fazer o contrário do que eu faço é uma boa ideia, de facto.
O nosso colaborador de desporto, Rui Miguel Tovar queria estar aqui mas não pode e ele pergunta: qual o jogador que já viu no estádio da Luz a dar a maior sarrafada?
No primeiro jogo que vi na minha vida, fui para o Estádio da Luz. Sou ateu mas morava ali ao pé da Rua dos Soeiros e quando aquela massa de gente vestida com a minha cor começa a subir e eu integro a peregrinação, sinto-me irmanado por todos aqueles consócios, sinto qualquer coisa religiosa. Portanto, no tempo do Estádio da Luz antigo, eu integrava essa massa, chegava lá acima, aquilo cheirava a tabaco e a relva, cheirava a uma série de coisas inesquecíveis. Era Benfica-Porto e ganhámos 1-0. A certa altura, João Alves, que foi, aliás, o autor do golo, deu uma estupenda sarrafada no Frasco, que já merecia há muito tempo. Ficou a contorcer-se no chão e um dos meus consócios gritou, com muita humanidade: “se ele está a sofrer o melhor é abatê-lo”. Nunca mais me esqueço. E talvez Luís Andrade, não sei se as pessoas se lembram mas Andrade jogou várias vezes no Benfica e tinha uma maneira de arrancar adversários do chão que talvez não tenha par.
O que é que preferia: o Benfica campeão europeu ou…
Sim, é esse… Próxima pergunta! Não interessa o que vai dizer a seguir, nem que seja ser sodomizado, é sempre a primeira.
…ou o PCP governar o país?
Atenção, já agora deixem-me esclarecer que eu voto muitas vezes no PCP com a consciência que não vão ganhar e isso tranquiliza-me em certa medida. Voto sempre em partidos que nunca ganharam, não sou responsável por nada do que se está a passar. Aliás, o partido em que votei nas últimas eleições teve 30 mil votos. Acho eu que era o único que achava que uma geringonça era capaz de ser uma coisa gira… Mas não há nada que me possa dar à escolha entre o Benfica campeão europeu e outra coisa qualquer. O meu sonho, minha senhora, já agora digo-lhe, é falecer, falecer ao minuto 94 quando o Benfica faz o 3-0. Se for este ano pode ser, eu estou pronto. Senhor, leva-me, eu estou pronto. 3-0, eu tenho um ataque, faleço ali e acabou.
Já agora: a geringonça está a correr como?
Está a correr de uma maneira pelo menos divertida, ver o que as pessoas disseram e ir aos jornais, se calhar fazer uma pesquisa no Observador e ver o que é que escreveram há um ano sobre isto. “Isto não dura nem três meses. Está bem, este orçamento talvez passe mas o próximo não passa de certeza”, coisas desse tipo. Miguel Pinheiro a escrever, José Manuel Fernandes… E nisto António Costa — que já na campanha eleitoral, com aqueles saltos nos comícios, tinha dado a entender que é um daqueles gorduchos que são ágeis — está a fazer um exercício de equilibrismo maravilhoso, conseguir pôr o PC com o Bloco e ainda por cima ir ouvindo da União Europeia e mesmo assim satisfazer toda a gente. Aquela ideia do Trump de “Eu tenho um genro muito bom, este rapaz ainda há de resolver o conflito israelo-árabe”… é óbvio que isso tem de ser o Costa. Aparentemente, o Costa chega a Jerusalém, senta os muçulmanos e os judeus na mesma mesa, põe todos de acordo e acabam a comer bifanas. “Experimente, experimente esta bifana.” Quer dizer, digamos que não está espantoso mas o facto de não ser a catástrofe que se previa e o diabo, a igreja de Satã. Há um certo sabor amargo nisso, de termos sido a economia que mais cresceu no último trimestre… Porque repare: está sol em dezembro, a economia cresce mais do que na Europa toda, estamos ótimos e o resto do mundo está a cair. Na altura em que finalmente conseguimos, o resto do mundo faz a desfeita de acabar. Fico com mau perder em relação a isso.
Em Portugal há espaço e capacidade para fazer um Daily Show? O Ricardo aparece pontualmente em programas desse género, colado a eleições, mas é uma coisa pontual. É porque isto não resulta cá ou porque tem medo de deixar de ter piada se aparecer com essa frequência?
É por várias razões, nenhuma delas é porque não resulta. Porque, de facto, a coisa que mais audiência teve na minha carreira televisiva foi esse tipo de programa. Sobretudo quando converso com a doutora Manuela Ferreira Leite — há dois milhões de portugueses que ligam a televisão. A razão pela qual não fazemos mais é porque de facto não é possível. Nos Estados Unidos, um programa desses tem 30 pessoas a escrever, outras 30 a fazer a pesquisa, e depois é apresentado por outros. Nós somos quatro, no último éramos três e somos nós que fazemos a pesquisa, a escrita e a seguir ainda vamos apresentar, ainda ofegantes. Também se dá o caso de os Estados Unidos não serem bem um país, são 50 países e cada um daqueles 50 estados tem canais televisivos e quase não há uma declaração pública de um responsável político que não esteja filmada. Temos uma dimensão menor e isso dificulta muito. É divertido, mas ao fim de um mês de campanha é como estar na tropa. Foi muito giro mas agora deixem-me ir para casa, fazemos a nossa tatuagem, e tal, mas agora vamos descansar um pouco.
Um leitor, Fred Seruya, pergunta: numa escala de zero a Eusébio, como é que classifica a performance do nosso Presidente da República?
Eusébio é algo muito elevado, se é uma escala feita de jogadores do Benfica desde Martin Pringle até Eusébio… Mas Martin Pringle em princípio está antes de zero, está um pouco abaixo… Mas o Professor Marcelo… o que é que eu hei-de dizer, há bocado estava a dizer que não me iam apanhar a apoiar um governo, mesmo que seja este que é parecido com aquilo que eu acho que devia ser. Mesmo assim: aquilo para que me pagam é para fazer pouco deles e é isso que eu faço com todo o gosto. O Professor Marcelo… há muita ternura, há muita ternura e eu gosto disso. Já falei sobre esse assunto, até escrevi sobre isso, na altura, uma crónica que se chamava “Assim também eu”. Porque toda a gente adora o Marcelo e é compreensível porque o antecessor dele era o Cavaco e ser Presidente a seguir ao Cavaco é como casar em segundas núpcias com Tina Turner — a seguir àquele primeiro marido, qualquer pessoa é um príncipe e, portanto, a tarefa está muito facilitada para o Professor. Ainda assim, eu tenho simpatia por ele. No outro dia encontrámo-nos e tratou-me com uma cordialidade que tive de ser eu a impor aquela distância, tive de ser eu a dizer “Oh Senhor Presidente, por amor de Deus, não vamos agora para os copos.”
Acabaste de sugerir que Portugal foi vítima de violência doméstica por parte do Professor Cavaco Silva. Foi uma bonita comparação. Tens uma teoria absolutamente ridícula: não te cansas de propagar que esta coisa do talento na verdade não existe, existe mesmo é trabalho. E então isso significa que não tens medo que a fonte esgote, no sentido que não existe fonte e, portanto, desde que continues a trabalhar muito vais continuar a ser um grande humorista até teres 90 anos de idade?
Eu de facto não acredito em talento, ao que se chama talento, aquilo que as pessoas acham que é. Normalmente é definido pelo quê? Por uma espécie de dom, a pessoa nasce com… Acho que a gente nasce com jeito para duas ou três coisas, comer, dormir, respirar vá. Há duas ou três coisas que a gente sabe fazer quando nasce, se nos deixarem em paz mantemos essas capacidades, não adquirimos em princípio muitas outras e acho que… Estavas a dizer “Não tens medo?” Claro que tenho medo, eu tenho medo de tudo, aliás. Essa é uma preocupação que eu tenho, trabalhar de maneiras diferentes porque o meu trabalho parte muitas vezes de uma espécie de surpresa e, se faço sempre o mesmo tipo de surpresas às pessoas, elas deixam de se surpreender, como é evidente. Dou por mim muitas vezes a tentar pensar de outra maneira, arranjar outro modo de raciocinar, tentar ser outra pessoa.
Tenho essa ideia que uma pessoa que queira dedicar-se a uma determinada atividade, se tentar dedicar-se a fundo, em princípio consegue desempenhá-la. Há um livro que se chama Bounce que é escrito por um senhor que é jornalista hoje, mas foi campeão de pingue pongue no passado. Aliás a história de como foi campeão de pingue pongue é, em si mesma, divertida: de repente, na rua dele, num vilarejo qualquer, ele era campeão de pingue pongue, o irmão era vice-campeão, o da frente era campeão júnior, a vizinha de baixo era campeã, portanto, para as pessoas que acreditam em talento, naquele ano Deus enganou-se porque concentrou tudo naquela rua. Depois ele começa a explicar que a questão era: há um conjunto de circunstâncias que levou a que aquilo fosse assim. O professor de ginástica daquela terra, adorava pingue pongue. Aquela terra tinha um clube de pingue pongue com uma característica que o distinguia de todos os outros clubes: os sócios ficavam com a chave. Hoje por acaso não podia ir ao treino às sete, não faz mal, às quatro da manhã podes ir. Ele cita um estudo que junta 60 violinistas, e dividem esses 60 violinistas em três grupos. O grupo dos 20 melhores, que são aqueles que, claramente, vão ser os solistas das grandes orquestras; um grupo intermédio, que são aqueles que vão integrar as melhores orquestras mas não são aqueles para quem a gente paga bilhete para ir ver; e um terceiro grupo de músicos que são muito bons mas vão ser professores de música e etc. E os cientistas fazem um inquéritos aos três grupos. Em média, as respostas são todas iguais. Quantos instrumentos praticou antes de se fixar no violino? 1,7 de média em todos os grupos. Com que idade começou a praticar? Oito, em todos os grupos. Há um único ponto em que os grupos divergem: o grupo dos 20 melhores esfregou lá a tripa mais seis mil horas do que o segundo, e o segundo esfregou mais quatro mil horas que o terceiro. E é isso.
Isso é um bocado como a história do empreendedor: se te esforçares o suficiente consegues fazer uma startup.
É muito diferente, porque a questão é que para esfregar o violino é preciso um investimento, é preciso comprar aquilo, é preciso que os pais sejam surdos — porque a minha filha mais velha tentou iniciar-se no violino e dava a sensação que 20 leitões estavam a ser mortos — e, portanto, há uma série de condições que têm de ser reunidas mas não são muitas, é preciso é dedicar-se àquilo. Por exemplo, para escrever é preciso uma folha branca e uma caneta. Agora, para montar uma empresa há um investimento a ser feito e é isso que eu critico nas pessoas que dizem que é só facilidades. Há um investimento a ser feito, há um risco a correr e há pessoas que não têm dinheiro.
Sendo Ricardo Araújo Pereira atualmente o humorista mais bem sucedido em Portugal, o Observador vai poder pôr em manchete: “Ricardo Araújo Pereira trabalha mais do que qualquer humorista em Portugal”?
Para já, a primeira frase depende da opinião. Aliás, o que isto tem de bom é que umas pessoas acham piada a umas coisas, outras acham a outras. Claro que eu trabalho, claro que é fundamental, claro que o facto de não me ter em alta conta me ajuda porque a primeira coisa que me ocorre eu desconfio dela e vou à procura de outras. Se há alguma recomendação que eu posso fazer às pessoas é essa: estudar e trabalhar. Pelo menos era o que a minha avó me dizia. Acho isso ótimo. Estuda e trabalha. E cala-te. Sobretudo cala-te. Há aquela coisa, hoje as pessoas têm uma paixão pelo Oriente, a cultura oriental, o silêncio, a quietude. A minha avó nasceu em Viana do Castelo e tinha os mesmos valores, as frases que eu mais ouvi a crescer foram “tá quieto” e “cala-te”. O silêncio e a quietude. É uma espécie de monge budista mas nasceu em São Martinho de Coura.
Consegue queixar-se em repartições públicas ou restaurantes? E as pessoas levam-no a sério?
Acontece muitas vezes eu chegar a um sítio qualquer e dizer “bom dia” e as pessoas dizerem “lá está ele” e eu não estou, estou só a cumprimentar. Às vezes acontece, mas isso passa depressa, também. Nas repartições, a minha popularidade não dá para muita coisa. E ainda bem, não é? Seria injusto se desse. Não dá para muito mais do que conseguir uma mesa num restaurante que está cheio ou ir a repartições públicas queixar-me e eles dizerem-me “não faz mal, eu resolvo já…”. Nessa medida, passo à frente da generalidade do povo português, devo confessar aqui com alguma vergonha. Às vezes dão-me benesses dessas mas, como não desempenho cargos públicos…
Até ver…
… não posso ser punido. Até ver não, nunca será. Posso dizer com convicção “nem que Jesus Cristo desça à terra”, não se preocupem.
Nunca pensou em criar um partido? O Beppe Grillo parece estar a safar-se…
Não tenho nenhum apreço político por Beppe Grillo. Há uma coisa que me irrita sempre que um humorista se candidata. As pessoas dizem “hmmm, um humorista…”. Como se a gente se desse bem com engenheiros. “Engenheiro tudo bem, economista pode”. Na democracia é assim, não é? Não interessa a profissão. O que é que interessa se é um palhaço, se é um engenheiro, as pessoas parecem de facto achar… aliás, há filmes sobre isso. “Imaginem que agora um palhaço chegava a Presidente”. E um empresário, como o Trump, é menos absurdo que um palhaço? Lembro-me quando foi o Tiririca as pessoas disseram “pfff, Tiririca”. Escrevi um texto na altura chamado “O deputado Tiririca pede a palavra para defesa da honra da bancada”. Foi por causa disso. O problema do Tiririca é ser muito mau, como o Beppe Grillo, é ser um populista perigoso, não é a profissão dele, a profissão dele não está em causa, para mim. O que é curioso é não só as pessoas dizerem isso — “vai agora um humorista candidatar-se…” — mas também o voto que esse tipo de candidato recolhe costuma muitas vezes ser o voto da abjeção. O voto da pessoa que diz “eu como não concordo com nada disto, vou votar neste”. Como faria se o candidato fosse um chimpanzé. Recolhe o voto das pessoas que acham o sistema abjeto. “Como é que eu hei-de fazer a pior coisa? Já sei, vou votar no palhaço.” E isso aborrece-me um bocadinho, fere a minha honra profissional.
Ricardo, teria algum problema em apresentar a sua declaração de rendimentos? Ou preferia um regime de exceção.
Não teria nenhum problema, é bastante desinteressante.
Não há casas nem barcos para declarar?
Há casas, não há barcos. Por acaso devia haver, acho que a gente se devia relacionar mais com o rio e tal… Não há nada de muito interessante. Não teria nenhum problema em apresentar. O Correio da Manhã já tentou várias vezes fazer essa apresentação, mas basicamente no meu caso só iria satisfazer uma curiosidadezinha, não há nada de especial na minha declaração de rendimentos. Eu pago os impostos todos, devo dizer, o mínimo que consigo.
Como o Ronaldo…
Não, não, o Ronaldo faz mais do que eu faço. Eu não faço aquilo. Aquilo é diferente. O contabilista está lá a ver: “Se puser a cruzinha neste quadrado paga um pouco menos”. Não é andar a esconder e a pôr em offshores, isso não faço.
Mas sabe onde são as Ilhas Virgens?
Sei apontar no mapa mas não tenho lá nem um tostão. Tenho gosto em pagar impostos. Acho que era o Mário Castrim que tinha um poema que dizia “realizo-me quando pago as quotas do partido”. Eu paguei as quotas daquele mesmo partido e nunca me aconteceu, mas posso dizer que me realizo quando pago impostos, gosto desse esforço.
E são bem gastos em Portugal?
Quer dizer, são bem gastos para umas coisas são mal gastos para outras. Mas quem me dera que fosse “atenção, este é só para as coisas boas, escolas e auto-estradas”. Infelizmente não podemos, por isso metade vai também para o bolso de empreiteiros.
O Rui Miguel Tovar pergunta: o Rui Costa é o melhor jogador do mundo e quiçá do SLB ou vice versa?
Um excelente questão. Excelente. É muito giro como a gente passa da política para a bola e não há nenhum sobressalto. Tenho pena que o Rui Costa tenha gasto dez anos da sua carreira num clube como a Fiorentina. Porque se ele tivesse ido para o Real Madrid ou o Barcelona ou assim seria tão grande como… aliás, ele é tão grande como os outros mas teria essa… a repercussão pública teria sido tão grande como a do Figo e a do Cristiano Ronaldo e tal.
Teria sempre que sair do Benfica para isso, pelo que vejo…
Não não, só naquela altura, neste momento é perfeitamente possível fazer uma carreira no Glorioso. Naquela altura talvez fosse difícil. Mas sim, tenho muita admiração pelo Rui Costa. Chorei quando ele chorou, quando marcou ao Benfica, sou um mariquinhas. E, aliás, devo dizer-lhe mais. Eu estava presente no estádio na última vez que o Rui Costa jogou. Quando levantam a placa para ele ser substituído e ele em vez de agradecer os aplausos fez adeus pela última vez, nunca mais ia jogar e tal… E no dia seguinte fiquei magoado quando constatei que o sol voltou a nascer como se nada fosse. Apeteceu-me dizer como o Rei Lear, quando entra com a filha morta nos braços. Ele diz “porque tem vida um cão, um cavalo e tu já não respiras” e a mim apeteceu-me dizer “porque é que ainda joga…” não vou dizer nomes de jogadores porque seria deselegante, mas havia muitos que ainda jogavam e o Rui Costa já não jogava e pareceu-me uma injustiça flagrante.
Uma pergunta dos nossos leitores, esta da Cátia Domingues e da Joana Aragão, a reboque de um artigo de opinião do Rui Ramos…
E já tive oportunidade de falar com o professor Rui Ramos, aliás.
A pergunta pode resumir-se da seguinte maneira: também acha que todos os humoristas são de esquerda?
Atenção, o artigo do professor Rui Ramos dizia “porque é que todos os humoristas da rádio e da televisão são de esquerda?”. A pergunta era imediatamente marota, porque era só da televisão e rádio, não falava dos jornais. Por exemplo, o José Diogo Quintela escreve em jornais e é um reacionário irredimível. Assim como Miguel Esteves Cardoso também escreve em jornais. Portanto, o professor teve dedo para fazer a pergunta. E eu perguntei num artigo “Porque é todos os motoristas de táxi são de direita?”, que também é uma generalização abusiva. Há uma senhora chamada Alison Dagnes que tem um livro que se chama A Conservative Walks Into a Bar, um conservador entra num bar, não sei se esta formulação para título de livro lhe recorda alguma coisa… Ela faz essa constatação, não está tudo nas mãos da esquerda mas na grande maioria os humoristas têm uma tendência liberal, digamos. E ela atribui isso a uma razão, que é o facto de a comédia questionar o status quo. E que para a direita, mesmo quando o governo não é de direita, a direita tem um apreço pelas instituições, que se calhar refreia um pouco a vontade de questionar o estado das coisas. Eu acho que o texto do professor Rui Ramos tinha alguns problemas porque dizia por exemplo que na eleição do David Cameron havia um lado, que era a esquerda, que tinha ido conversar com o Russell Brand, como se dar-lhe importância fosse verdadeiramente válido, e que o David Cameron passava por cima de todos os humoristas e tal, quando o David Cameron também tinha tirado fotos de braço dado com o David Walliams, que é um humorista muito conhecido em Inglaterra, que integra aquele dueto humorístico chamado Little Britain e escreve aliás livros muito engraçados para a infância e juventude. É óbvio que qualquer político, seja de direita, de esquerda ou de centro, quando há uma figura conhecida que o quer apoiar, ele vai lá deixar-se fotografar com ela. Basicamente, era esse o meu ponto de discórdia. Mas se calhar é possível dizer que o status quo da comédia está à esquerda. E que se calhar o que é verdadeiramente transgressor é ser um humorista de direita.
A doença, o sofrimento e a morte entram no mesmo bar que o Ricardo: qual é a sua reação?
É de conformação. Estou à espera deles. Estou à espera deles há algum tempo, especialmente da última senhora. A última senhora sei que… temos um encontro qualquer. O que eu pretendi com esse título foi usar uma formulação humorística, uma formulação típica das anedotas, e depois misturar com essas três ideias que são ideias que normalmente não associamos ao riso, ou ao humor, erradamente, acho eu. Porque, como eu dizia no início, a boa disposição é capaz de ser inimiga do humor e a gente ri de facto dessas coisas. No céu, a existir, em princípio não há riso lá. O Molière escreveu comédias sobre misantropos, avarentos, hipocondríacos, hipócritas, as virtudes não têm graça, não é disso que a gente ri, a gente ri do que é mau, do que é triste, do que é infeliz, do que é errado. Basicamente era isso, era disso que eu estava à procura
E quando encontrar esta última senhora?
Aí está uma grande questão porque precisamente o último capítulo do livro é sobre últimas palavras. Acho que são todas ou quase todas apócrifas mas isso também tem um valor. O facto de as últimas palavras nunca terem existido mas continuarem a ser transmitidas de geração em geração, o facto de as pessoas terem quase uma necessidade de inventar histórias em que uma pessoa no momento do último suspiro diz uma piada — e há muitas histórias dessas — mesmo o facto de elas serem falsas acho que é significativo, porque indica que as pessoas têm um apreço por essa ideia, a ideia de que mesmo antes de morrer a gente diz uma coisa engraçada. Eu creio que se espera de mim, tendo em conta a minha profissão, que mesmo no meu último suspiro eu diga alguma coisa que tenha graça. E eu ando doido à procura de saber o que será. Quero inventar uma coisa boa, quero escrevê-la num papel e quando for, sei lá, atropelado, quero puxar do papel e dizer ao senhor do INEM “tenho uma coisa para dizer”. E serão essas as minhas últimas palavras. Mas há uma tradição muito longa de palavras ditas na hora da morte. E o Thomas More, quando o Henrique VIII o mandou executar, ele já era velho nessa altura e ao tentar subir para o cadafalso o carrasco faz menção de o ajudar e ele diz-lhe “não se preocupe que eu depois desço sozinho”. Lá está, isso não se sabe se é verdade. Eu no livro falo de duas. A do Buster Keaton, que estava rodeado de amigos quando morreu e já está com os olhos fechados há muito tempo, os amigos não sabem se ele está morto ou vivo. E um dos amigos sugere “toquem-lhe nos pés”, porque quando as pessoas morrem ficam com os pés frios. E o Buster Keaton abre os olhos e diz “a Joana D’Arc não”, e morre. E a última é a mais conhecida de todas, que é a morte do São Lourenço, que morreu, segundo a lenda dourada, segundo aquela coleção “Vidas de Santos”, morreu grelhado, morreu numa grelha. E as suas últimas palavras terão sido “este lado já está, podem virar”. E São Lourenço é — e bem — foi nomeado pela Igreja Católica como padroeiro dos humoristas. Embora a Igreja Católica tenha nomeado também, num gesto de extremo mau gosto, São Lourenço como padroeiro dos chefes de cozinha. Com quem não tem nenhum parentesco tirando o churrasco.
Este livro é um bom presente de Natal?
Então não é, minha senhora?
A quem o vai oferecer?
A ninguém, só vou oferecer coisas como deve ser. Mas quem não tiver imaginação, sim, sim, eu recomendo isso. Tenho dado muitos autógrafos em sessões de lançamento, aliás, hoje é um dia refrescante para mim porque nos últimos quatro dias é o primeiro em que eu não lanço esse livro, já corri todas as Fnacs e tal. E aquilo que as pessoas me dizem é “é para assinar para o meu marido, presente de Natal”. E eu digo sempre “mas compre também alguma coisa de jeito, isto na noite de Natal pode dar divórcio”.
Alguns dos nossos textos mais lidos são sobre crianças, pais e filhos. E queria saber se tens uma receita para lidar com as birras com humor.
Na altura em que as minhas filhas faziam birras e tal, decidi não ligar às birras. As birras normalmente precisam de atenção, não é? A gente alimenta a birra se prestar atenção. Uma vez — já agora fica aqui uma nota biográfica ternurenta — a minha filha mais nova estava a chorar, que é uma coisa que ela fazia muito, e a minha filha mais velha fez umas macacadas e ela riu-se, a mais nova estava a chorar e começou a rir-se. E a minha filha mais velha, muito orgulhosa, veio dizer “eu ensinei-a a ficar contente”. E eu gosto dessa formulação, “ensinei-a a ficar contente”, porque é óbvio que ela não sabe o que está a dizer, não se consegue ensinar uma pessoa a ficar contente. Mas eu tenho apreço pelas pessoas que tentam. A minha estratégia era fazer pouco da criança birrenta. Resulta bem porque tomam consciência do seu próprio ridículo e abandonam aquela pose. Se eu começar “porque eu não quero ir tomar banho, sou tão infeliz” elas dizem “bom, vou-me embora”. Resulta muitas vezes.
Acho que há duas coisas que leva muito a sério: o clube de vermelho — e repare que disse clube de vermelho e não de encarnado — e a defesa da liberdade de expressão. Acha que o valor da tolerância é cada vez mais uma raridade?
Isso que diz é muito inquietante para mim. Até porque, sendo de esquerda, estava mais ou menos habituado a que, em geral, sempre que alguém dizia “ai que horror, isso não se pode dizer, não devemos ter este tipo de discurso ou esta imagem ou este videoclip ou esta música” que a pessoa que o dissesse normalmente era de direita. Muitas vezes era da direita religiosa, mas normalmente era de direita. E eu sinto infelizmente que hoje, na maior parte das vezes, numa frequência inquietante, a pessoa que diz isso é uma pessoa de esquerda e isso inquieta-me muito. Porque acho que foi imposta uma espécie de ortodoxia, e eu não gosto de ortodoxias, que começa acho eu na universidade, aquilo a que a gente chama politicamente correto, acho que há muitos enganos em relação ao que isso significa.
O politicamente correto é uma estratégia de controle do pensamento através do controle da linguagem e através do controle da academia. Por exemplo, há um caso muito célebre de uma senhora nos EUA que escreveu um texto sobre a razão pela qual ela achava que o currículo estava a mudar para pior porque nessa altura estava a ser ensinada na universidade uma teoria de acordo com a qual o Aristóteles tinha ido beber todas as suas ideias à Biblioteca de Alexandria e que por isso o berço da civilização não era a Grécia, era África. E essa senhora avançava com uma objeção à qual eu sou sensível: o facto de a Biblioteca de Alexandria só ter sido construída depois de o Aristóteles morrer. O que o impede de ir beber ideias a um sítio que não existe. Mas como é uma ideia agradável, ela passou mal, teve muita dificuldade, foi ostracizada na academia, etc., etc. Isso é uma coisa muito inquietante. Hoje, acho eu, a gente assiste ao facto de as pessoas muitas vezes batalharem pela liberdade de expressão das outras desde que elas digam o que elas gostam de ouvir. E assim também eu. E há vários problemas em relação a isso. Primeiro, há um problema de higiene. Eu gosto que um energúmeno possa falar para eu saber onde ele está. Um imbecil com a boca fechada parece uma pessoa. E portanto, até por questões de higiene, para a gente saber em que passeio é que deve andar, é muito bom que um idiota possa falar. A segunda razão pela qual eu não admito que os calem é porque não estão só a violar o direito deles de falar, estão a violar o meu de os ouvir. Quem é que disse que eu não quero ouvir? E eu acho bem que as ideias possam ser contestadas, mesmo que possam ser contestadas de maneira absurda. O Holocausto nunca existiu, a Terra é plana, não tenho nenhum problema em que ideias desse tipo sejam expressas. Acho que há até uma vantagem nisso, que é o facto de as nossas convicções serem contestadas. Porque uma convicção que não é contestada transforma-se muito rapidamente num dogma. E isso é o primeiro passo para eu deixar de saber defendê-la. Estas opiniões não são minhas, são de um senhor chamado Stuart Mill.
É claro que tem de haver uma ponderação em relação ao discurso, eu sou sinceramente avesso a censurar o discurso das pessoas. Acho que há muito poucas coisas que não podem ser ditas. O Supremo Tribunal americano tem a mesma posição. Mesmo uma ameaça de morte, se o Supremo Tribunal americano considerar que não há iminência, probabilidade, de ela ser cumprida, as pessoas podem dizê-lo. O próprio Stuart Mill faz esse exemplo, dá um exemplo de ponderação. Se uma pessoa disser “os mercadores de milho devem ser todos mortos”, é uma coisa. Escrever isso num jornal é uma coisa, por exemplo. Se uma pessoa à frente de um bando de esfomeados com armas, à porta de um mercador de milho, disser “os mercadores de milho devem ser todos mortos”, isso é outra coisa. Essa ponderação hoje não é feita. O que as pessoas dizem é “isto é inadmissível, cala-te”. Parece-me hoje que as pessoas têm, mais do que achar que têm o direito de se ofender, que têm — ninguém lhes tira o direito de se ofender –, acham que têm o direito de não ser ofendidas. E que portanto é legítimo para elas ver uma coisa que lhes desagrada e punirem a pessoa que a disse às vezes com uma pena que é perpétua. Há casos desses.
No outro dia uma senhora escreveu uma piada no Twitter, uma piada meio palerma mas que nem sequer era grave, e depois meteu-se no avião e foi para Joanesburgo. Quando aterrou já tinha sido despedida. Porque o Twitter movimentou-se e as pessoas têm um poder tão grande que a empresa se assustou com o poder das pessoas e disse “sim senhor, esta senhora é despedida”. E não perdeu só o emprego, quase que perdeu o emprego para sempre. Porque de cada vez que vai a uma entrevista de emprego põem o nome dela no Google e aparece aquela tempestade e por isso as pessoas têm alguma dificuldade em contratá-la. Nas universidades o que está a acontecer, os safe spaces, aquela prática de “no platform”, que significa desconvidar pessoas que estavam convidadas, aquilo não significa só “não vamos convidar este tipo que ele é nazi”, que eu acho que já seria… bom… o que se passa neste momento é que as pessoas estão a ser desconvidadas porque não são feministas da maneira certa. A Germaine Greer, que é um nome histórico do feminismo, é desconvidada porque no outro dia teve a má ideia de dizer “Epá, acho que é exagero considerar a Caitlyn Jenner a mulher do ano porque é mulher há dez minutos. É preciso nascer mulher para se suportar todo o peso que a mulher enfrenta na sociedade, que uma pessoa não sabe quando viveu a vida inteira como homem e teve filhos como homem, etc”. Essa opinião a gente pode considerá-la boa, má, absurda, abjeta, o que quiser, mas proibir a senhora de ir falar na universidade? A que propósito? Há essa ideia de que “vou ser confrontado com essas ideias e isto vai-me perturbar”. E então, pá? É assim, pá, a vida é assim. Fico muito preocupado com o tipo de pessoas que estão a sair dessas universidades em que são protegidas dessa forma.
Faço minha a pergunta de uma menina que teve vergonha de a fazer, mas eu também tenho essa curiosidade: vocês têm a trabalhar convosco aquela equipa da PJ que dá os nomes às investigações? É assim que conseguem o nome dos programas, não é?
Eles têm de facto criatividade, sim. Operação Marquês, aquele tipo de coisa… Remédio Santo quando é das farmácias. Há claramente, além do grupo de intervenção da PJ, dos operacionais que vão mesmo dar tiros e prender bandidos, há um núcleo de criativos que estão lá numa sala da PJ a dizer “epá, ainda não temos nome para esta operação”. O que eu temo é que, à falta ainda de um nome bem imaginativo para operações, haja bandidos que continuam à solta, só começam à procura deles quando a operação tem um nome que eles acham “este vai ser dos bons”.
Então e como é que vocês dão nome aos vossos programas?
Normalmente o nosso método é tentar perceber o que fica ridículo quando a voz de companhia da estação diz “já a seguir não perca ‘Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios’”. Se é ridículo com uma voz de estação a gente adere. “A seguir ao Jornal da Noite não perca ‘Isso é tudo muito bonito, mas…’” Pronto, em princípio está comprado.
[veja aqui a entrevista na íntegra:]