Era sábado à tarde. Richard Zenith estava na biblioteca da Universidade de Georgetown, em Washington D.C., à procura de livros de poesia em português quando reparou num conjunto de grandes tomos que diziam “Cancioneiro”. Zenith estava familiarizado com a poesia dos trovadores provençais, que tinha lido na tradução de Ezra Pound, mas não sabia nada sobre as cantigas medievais galego-portuguesas. Ficou intrigado. Procurou por mais informação e começou a estudar o tema. Percebeu que havia algumas traduções para inglês, mas nenhuma em livro. Decidiu montar um projeto e traduzir e organizar uma edição bilingue.
O projeto começou a ganhar forma no início dos anos 80. Zenith tinha regressado do Brasil, onde passou três anos a estudar português. “Sempre gostei de escrever e tinha um fascínio por línguas estrangeiras. As línguas estrangeiras são outras realidades. Para mim talvez fosse natural começar a traduzir, porque unia o desejo de escrever com o meu fascínio por línguas”, contou, em entrevista ao Observador. Com as cantigas na mala, viajou, no final dessa década, para Portugal, com uma bolsa atribuída pela Fundação Guggenheim. Em Lisboa, reuniu a informação que precisava para o projeto e encontrou-se de forma definitiva com Fernando Pessoa. A sua vida mudou para sempre.
113 Galician-Portuguese Troubadour Poems foi publicado em 1995, pela Carcanet Press. Passados mais de 25 anos, Zenith considera que algumas das suas traduções são hoje “menos aceitáveis”, o que o levou a querer revistá-las. Só o conseguiu fazer após terminar o manuscrito da biografia de Pessoa, recentemente publicada em Portugal, que lhe ocupou 12 anos. “Pessoa tinha monopolizado a minha vida completamente”, admitiu. “Logo que entreguei o manuscrito, voltei às cantigas. Foi um grande prazer, mas também um grande trabalho, de tradução e de atualização dos estudos para o prefácio.” A nova edição, Cantigas: Galician-Portuguese Troubadour Poems, saiu em maio nos Estados Unidos da América, pela Princeton University Press, cerca de um ano depois da edição norte-americana biografia de Pessoa. A edição inglesa vai ser publicada em julho.
Celebrar a vida e o amor cantando
As cantigas são os mais antigos textos literários que se conhecem em galego-português, uma língua falada na faixa ocidental da Península Ibérica entre os séculos IX e XIV. Um género autóctone, as cantigas são inspiradas pela tradição lírica provençal, surgida no sul de França no século XII e imitada por trovadores em diferentes pontos do território europeu. Com ela partilham os temas e linguagem utilizada, mas também a composição musical. Como o nome indica, as cantigas eram compostas para serem cantadas por intérpretes ao serviço das cortes ou casas nobres, onde os trovadores estavam integrados. Os primeiros textos datam de finais do século XII, numa altura em que o processo de formação das nacionalidades ibéricas estava ainda em curso, e os mais recentes de meados do século XIV. A maioria foi escrita nos reinos de Leão e Castela, antes e depois da sua unificação, no ano de 1230, mas existe um número significativo que foi produzido em Portugal. Todos os trabalhos que sobreviveram foram escritos por homens. A cantiga mais antiga é datável de 1196 e atribuível a um nobre português, Joam Soares de Paiva, que vivia em Castela ou Aragão.
Regra geral, os trovadores pertenciam a classes sociais elevadas. Já os jograis, responsáveis por interpretar as composições dos trovadores, parecem ter originários de um estrato social mais baixo. Alguns destes jograis teriam talento para a composição. Sobrevivem algumas canções em que os trovadores atacam os jograis por se julgarem capazes de se dedicarem à sua arte. Zenith acredita que essas canções de escárnio não seriam tão literais quanto parecem, mas antes uma “disputa amigável” entre os dois grupos. “Imagino que existisse mais igualdade no mundo artístico e que essas cantigas a gozar com os jograis menos nobres eram um desperto. Não significa que tivesse uma má relação ou que achassem que esses jograis não sabiam compor”, afirmou.
Os dois grandes patronos das cantigas medievais galego-portuguesas foram Afonso X de Leão e Castela (primeira metade do século XIII) e D. Dinis de Portugal (segunda metade do século XIII). Além de terem incentivado a produção desses textos, foram também autores. No caso de Afonso X, o monarca ficou sobretudo conhecido por um conjunto de cerca de 400 poemas religiosos, dedicados a Nossa Senhora, as Cantigas de Santa Maria, que ajudou a compilar. Esses têm a particularidade de terem chegado aos dias de hoje com as pautas de música originais, o que é raro. Além dessas, o rei ajudou a compor muitas outras canções, sobretudo de escárnio e maldizer, algumas das quais “muito picantes”.
Não se sabe por que razão Afonso X decidiu escrever as suas canções em galego-português, língua que terá aprendido na infância, passada na região da Galiza. “O rei também tinha uma produção de prosa notável em castelhano, mas na poesia preferiu sempre o galego-português.” A razão é um “pouco misteriosa”, admitiu Zenith, e poderá estar relacionada com o estatuto de língua literária que o galego-português parece ter adquirido durante a Baixa Idade Média. “Antigamente, os estudiosos diziam que o galego-português era intrinsecamente mais poético, mas não é verdade. Há poesia muito, muito bonita em castelhano”, defendeu. D. Dinis foi o equivalente em Portugal de D. Afonso X. Incentivou a produção poética (muitos trovadores convergiam para a sua corte) e foi também autor de inúmeras canções. Foi, aliás, “o mais prolífico de todos os trovadores” ibéricos, tendo escrito cantigas de amor, amigo e escárnio e maldizer. “Era muito lírico”, comentou Zenith. “O que prezo mais são as cantigas de amigo e também as de amor. Tinha um dom lírico muito, muito forte.”
Quando descobriu as cantigas na biblioteca de Georgetown, o que mais impressionou Zenith foi a modernidade dos temas abordados. Apesar da sua antiguidade, as cantigas galego-portuguesas “revelam muitos problemas, situações e ansiedades que são muito modernas. E falam de amor, claro, um tema universal”. O investigador achou particularmente interessantes as cantigas de amigo, escritas do ponto de vista de uma mulher, ao contrário das de amor, que têm uma figura masculina como narrador. “Embora existam canções escritas do ponto de vista de uma mulher noutras tradições, na Alemanha e em França, na região da Occitânia”, considera-se que o género nasceu na Península Ibérica e que terá tido origem numa antiga tradição de canções com voz feminina, não se comparando em “termos de números” com os textos semelhantes que sobrevivem noutras regiões da Europa. Existem vários tipos de cantigas de amigo. “Algumas são ingénuas e parecem próximas da tradição oral. São muito musicais, muito singelas. Noutras, são descritas relações [amorosas], relações sexuais também. Depois, há outras em que os trovadores, que eram todos homens, distorciam a forma original para cumprir os seus próprios objetivos”, afirmou o investigador.
Apesar do número elevado destas cantigas, as mais numerosas são as de amor, o que leva a crer que este seria o género mais apreciado. O mais elevado dos três géneros deste tipo de poesia, é o “mais exigente a nível formal. A maneira de rimar e a métrica são mais complexas. Por esses motivos, essas cantigas eram as mais apreciadas enquanto objeto artístico. Mas acho que hoje a maioria das pessoas considera os outros géneros mais fascinantes”, comentou Zenith. As cantigas de amor, que descrevem os sentimentos de um homem em relação a uma mulher, são aquelas que denotam uma maior influência provençal, nomeadamente na forma como o narrador se dirige ao objeto do seu afeto, uma mulher perfeita e inatingível. Seguindo o código do “amor cortês”, também com origem em França, a relação entre os dois, necessariamente platónica e desigual, é relatada com recurso a termos que podem ser usados para descrever uma relação feudal — o homem é o servidor e a mulher o senhor que ele tem de honrar e servir. Este amor impossível leva sempre o narrador a lamentar a sua sorte nos versos finais, onde descreve o seu sofrimento por um amor não correspondido.
Zenith acredita que os temas explorados pelas cantigas de amor e de amigo não eram apenas literários — espelhavam a realidade social do período. “António Resende de Oliveira fez vários estudos que demonstram que havia na aristocracia dessa altura muitos homens que não podiam casar, para que a riqueza da família se conservasse e não se dividisse. O primogénito herdava tudo e fazia um bom casamento. Os outros filhos muitas vezes não podiam casar. As filhas ou faziam um bom casamento ou eram enviadas para o convento. O argumento de António Resende de Oliveira, que me parece consciente, é o de que as dificuldades que muitos destes homens tinham em se casar ficaram refletidas nas cantigas. Aquela mulher impossível das cantigas de amigo não era tanto uma idealização da mulher, mas uma mulher impossível, porque era difícil para estes trovadores conseguirem casar”, disse. “As cantigas de amor ou de amigo eram uma maneira literária de viver coisas que não se podiam viver ou de lamentar essa situação.”
Outro elemento curioso das cantigas de amigo e de amor é a presença do mar. “É uma coisa que me atraiu”, confessou Zenith. “Há muitas referências ao mar. Às vezes na cantiga de amigo, o amigo está ausente porque está no mar. Essa faceta também é única a essa escola de poesia trovadoresca. Não encontramos isso na poesia occitânica de França. Algumas das minhas cantigas favoritas, por exemplo, aquela cantiga única de Meendinho, falam sobre o mar.” Nessa cantiga de amigo, o narrador, uma mulher, diz que está sentada na ermida de Sam Simion, cercada pelas ondas do mar, esperando pelo seu amado. O poema termina com um lamento: sem um barqueiro que a leve, a donzela há-de de morrer, enquanto espera, no alto mar.
“O mar é uma presença muito forte nesta e noutras cantigas”, concluiu o investigador, destacando a forte ligação dos habitantes da região ocidental da Península Ibérica, em especial os portugueses, com o oceano. “Fala-se das Descobertas, e claro que o mar era central na consciência coletiva portuguesa, até hoje, mas as cantigas são muito anteriores. Já nessa altura existia uma presença muito forte do mar. Parece que já fazia parte da consciência coletiva dessa região”, sugeriu o investigador. Outra característica tipicamente portuguesa que surge nas cantigas é a “saudade”, que em galego-português se dizia “soidade”. “É uma palavra que existe também em galego moderno, mas não em espanhol”, lembrou Zenith. “Isso é muito interessante.”
O terceiro género são as cantigas de escárnio e maldizer, de tipo satírico. “Na tradição prevenção, existiam cantigas satíricas, mas têm outras características. Muitas são obscenas e muito mais obscenas do que o que se encontra noutros países. Parece-me que havia uma qualquer tradição anterior”, sugeriu Zenith, acrescentando que, na lírica provençal, as canções satíricas são geralmente morais e falam da atualidade. “Também há canções desse tipo nas cantigas galego-portuguesas, mas muitas são dirigidas a pessoas específicas”, algumas delas impossíveis de identificar. A linguagem é muitas vezes agressiva, mas faz parte da “gozação”. “E há muita alegria nisso — de viver, de amar”, disse o investigado. “Há várias cantigas que gozam com comportamentos homossexuais ou com mulheres cocotes, mas não para condenar. É rir-se, mas também rir-se com. Nesse mundo, há uma efervescência de vida, de fazer, de amar. Uma exuberância. E tudo isso é muito bonito.”
A alegria que as cantigas fazem transparecer contraria a imagem que muitas vezes se tem da Idade Média. “Contraria a ideia que temos às vezes de uma sociedade em que a Igreja reprimia muito. A Igreja estava lá, mas, nas cantigas, os próprios clérigos são alvos pelos seus comportamentos sexuais, por exemplo. A religião católica era um mundo muito vasto e em termos de teologia estava tudo menos definido. Com a contrarreforma, a resposta a Martinho Lutero, a Igreja viu-se obrigada a definir-se a tornar-se mais dogmática em termos de teologia e também em termos de comportamento.”
Revisitar as cantigas 25 anos depois
Há vários anos que Richard Zenith tinha o desejo de revistar a seleção e tradução das cantigas trovadorescas galego-portuguesas que publicou em 1995, que inclui poemas dos três géneros escritos por portugueses e galegos, incluindo os reis D. Afonso X e D. Dinis. Quando o conseguiu finalmente fazer, a tarefa revelou-se igualmente difícil. “É a poesia mais difícil que traduzi”, confessou. “Lembro-me de, há mais de 25 anos, passar horas e horas e horas em cima de uma cantiga, abandoná-la e depois voltar, até conseguir alguma coisa que me parecia aceitável.” Quase todas as traduções sofreram alterações e, em alguns casos, bastante substanciais.
“Sempre insisti que era importante traduzir a música das cantigas. Quando digo a música, falo dos jogos formais, que são fundamentais. Quando traduzimos um poema, temos de nos perguntar onde está a poesia. Em muita poesia moderna, a rima não é assim tão importante. É no conteúdo que muitas vezes está a poesia. No caso das cantigas, o conteúdo é muitas vezes pouco, sobretudo nas de amigo, mas também nas cantigas de amor. Há muitas situações que se repetem. A poesia está no ritmo, na rima, no paralelismo. Para mim era importante replicar isso na medida do possível. Então, é uma questão de equilibrar as perdas, porque não consigo replicar totalmente o poema. É impossível.”
Tentando ultrapassar essas dificuldade, na primeira edição, Zenith permitiu-se “algumas liberdades em relação ao conteúdo”, acrescentando por vezes “uma palavra inócua ou deixando cair palavras, porque assim podia conseguir melhor o paralelismo, a rima”. “Acho sempre importante ser transparente, então indiquei esses meus pecados nas notas finais. Desta vez também o fiz — indiquei nas notas finais onde saí do sentido literal estrito. Mas, na verdade, desta vez consegui ser mais literal, então há menos desses pecados. Com todos os anos que passaram e as muitas horas que agora gastei com as canções, tentei ser mais fiel aos conteúdos e, ao mesmo tempo, realizar alguma aproximação do caráter musical das canções.”
Um “pecado” de que Zenith não prescindiu foi o de dar títulos aos poemas. Habitualmente, os textos literários medievais não têm títulos (os títulos por que são conhecidos são criações modernas) e as cantigas também não os têm. “Pus títulos para ajudar a situar o leitor na cena, porque a cantiga de amigo não tem uma tradução satisfatória para inglês. Song about a friend. Concerning a friend, talvez. Não se percebe muito o que é. Aliás, em português só se percebe porque se estuda na escola. Os meus títulos servem para situar, sugerir qual é a situação e dar uma dica, digamos. Se é o ponto de vista de uma mulher, de um homem, se é uma cantiga que goza com alguém… Para orientar o leitor ou a leitura.” Admitindo que muitos não gostarão dos seus títulos, o investigador convida no prefácio os leitores “em protesto” a os apagarem.
“Foi um grande prazer, mas também um grande trabalho de tradução e de atualização sobre os estudos para o prefácio. É um longo prefácio, que discute as origens, variedades. O conhecimento sobre esse período melhorou muitíssimo. Quando traduzi as cantigas, havia umas teorias bastante especulativas. Através do estudo da genealogia dos trovadores e de trabalho feito nos artigos, foram sendo encontrados pequenos dados que, depois de cozidos, permitiram a chegar a ideias mais concretas sobre as origens das canções. Tento apresentar os frutos desse estudo, feito por outros, não por mim, no prefácio.”
Para já, Zenith está contente com a nova tradução, mas isso não significa que permaneça assim para sempre. “Não sei se daqui a dez anos… A tradução nunca acaba. Pode sempre ser melhorada. Mas estou grato por ter tido oportunidade de revisitar as cantigas e fazer esta nova versão.”