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Diana Rosa

Diana Rosa

Rituais, camisolas às riscas e uma mesa no Castelo para o jantar: as horas de Noiserv numa maratona de concertos

A sorte numa peça de roupa, o gengibre e o chá de perpétuas roxas para a voz e as histórias entre pratos para contar ao público. Estivemos com David Santos, antes e depois do Teatro da Garagem.

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Foi numa rua íngreme da freguesia de São Vicente, em Lisboa, que ouvimos o assobio de David Santos (que em disco ou em palco conhecemos por Noiserv). Eram quatro e meia da tarde, estava ele a sair dos correios quando nos reconheceu ao longe, enquanto procurávamos a porta do estúdio onde trabalha. Tirou a chave do bolso, abriu a porta e ligou as luzes daquele que é o refúgio onde, normalmente, passa mais de metade do dia.

Neste espaço com várias salas, as paredes estão forradas com cartazes de concertos e festivais onde já atuou, mas também com recordações que lhe ofereceram: “Estes desenhos aqui foram feitos por miúdos de uma escola primária em Amarante. O professor gostava da minha música e fez uma atividade com eles” e os desenhos ficaram expostos aqui juntamente com outras lembranças. Há ainda um armário antigo em madeira, com duas portas envidraçadas, onde guarda objetos especiais que foi juntando ao longo de mais de uma década.

Oiça aqui a reportagem completa em podcast

Durante a conversa, há um aspirador automático que vai deambulando pelas salas. David aproveitou o facto de ter tirado alguns instrumentos do espaço para fazer uma limpeza: “Isto foi a melhor coisa que inventaram, é uma revolução!”. Mas tem também um desumidificador a trabalhar para que não se estraguem os instrumentos, que são perto de 100. Todos funcionam. David dirige-se a um deles, um toy piano, e toca uns acordes de uma das suas canções: “Este é pequeno e em plástico e por isso falha algumas notas, mas o som faz lembrar as canções de Yann Tiersen”.

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Neste estúdio, com uma carpete colorida exatamente com o tamanho do espaço que utiliza nos concertos, não foram muitos os convidados que aqui entraram. Apesar de ter outros projetos musicais, como os You Can’t Win, Charlie Brown, David não vê este lugar como um espaço de confraternização, mas sim como um local reservado ao processo criativo solitário. “As gravações de outros projetos são feitas noutros lugares. Aqui é onde eu preciso de estar sozinho a pensar e a criar coisas”, explica.

Era o segundo dia de uma série de concertos de Noiserv no Teatro da Garagem, em Lisboa, mas nem por isso David planeou as rotinas de forma diferente: “Tenho sempre várias coisas para fazer, de logística, por exemplo. Hoje respondi a uns e-mails, embalei uns discos, e fui ali abaixo enviá-los”. Mas num dia em que o concerto seja longe de casa, carrega-se o carro pela manhã, faz-se a viagem até à sala de concertos, seguida do soundcheck e, muitas vezes “janta-se com pouco tempo”.

Superstições, rituais e uma caminhada de 2km

A quatro horas do concerto, David decide ir a pé até ao teatro onde vai tocar. Fecha a porta do estúdio, baixa a grade e liga o alarme. Dali ao Castelo são pouco mais de dois quilómetros por ruelas estreitas, muitas delas a subir: “Em Lisboa gosto sempre de andar a pé ou de bicicleta”. Mas neste dia, a duas-rodas ficou encostada num canto, em casa. Enquanto caminha vai contando alguns dos rituais que pratica em dias de espetáculo.

Para preparar a voz, costuma comer gengibre às fatias, ainda que “pique na garganta”. Houve, no entanto, um detalhe que nunca pôde faltar nestes últimos 15 anos, sempre que subiu ao palco. Uma camisola às riscas. Começou por vesti-la nos primeiros concertos e, como correram bem, já não foi capaz de tocar sem uma peça de roupa com este padrão.

Acorda cedo, por volta das oito e meia da manhã, e ao pequeno-almoço come torradas com chá mas também gosta de cereais de chocolate. À hora do banho ouve sempre música, mas nunca canta: “Hoje ouvi Sam the Kid e Valete, mas não é só hip hop”, conta David que tem os Radiohead como banda preferida: “Se a minha vida tivesse uma banda sonora, certamente estariam lá músicas deles”.

Durante o percurso, David leva na mão um saco de plástico branco. Lá dentro está um porta-moedas com trocos para a venda dos discos depois do espetáculo e alguns objetos que esteve a arranjar durante a manhã — entre eles, umas caixinhas de música com 16 botões cada uma. Tecla a tecla, escuta-se um som referente à carreira de mais de 15 anos. David clica num dos botões e explica-nos que “neste aqui podemos ouvir a minha irmã a dizer ‘Noiserv’ quando tinha apenas três anos”.

A meio do caminho entre o estúdio e o Teatro da Garagem, passamos pelo Campo de Santa Clara, onde às terças e sábados acontece a Feira da Ladra. David já comprou aqui alguns instrumentos antigos que foram posteriormente arranjados pelo pai: “Ele consegue arranjar tudo e pôr a funcionar”, mas nem todos são usados nos concertos.

Questionado sobre os rituais que segue em dias de atuação conta que, para preparar a voz, costuma comer gengibre às fatias, ainda que “pique na garganta”. Houve, no entanto, um detalhe que nunca pôde faltar nestes últimos 15 anos, sempre que subiu ao palco. Uma camisola às riscas. Começou por vesti-la nos primeiros concertos e, como correram bem, já não foi capaz de tocar sem uma peça de roupa com este padrão. “Às vezes parece que não ter riscas vai dar-me azar. Ainda ontem estava com frio e despi a camisola que tinha por cima, caso contrário, senti que ia correr mal. Tirei-a rapidamente”, ri-se.

Soundcheck, chá de perpétuas roxas e um bife de frango

David entra pela porta do Teatro da Garagem por volta das cinco da tarde, verifica as mensagens no telemóvel e dirige-se à sala onde vai tocar para 120 pessoas. Antes dos testes de luzes e som, desce as escadas por trás do palco até ao camarim. Pega na cafeteira elétrica e aquece água para beber um chá de perpétuas roxas, que tem dentro de um saco transparente com o tamanho de um palmo. Enquanto espera, corta uma fatia de um pedaço de gengibre que trouxe de casa: “Tem um sabor agressivo, mas faz bem, querem provar?”, e mastiga enquanto se queixa do sabor picante.

Na Ritinha do Castelo, onde cabem duas ou três mesas em frente ao balcão, sentam-se naquela que fica mais perto da porta, e fazem o pedido. David pede um bife grelhado, Miguel quer bacalhau e Berto pede um bife de frango apenas com dois ovos estrelados. “Nem come umas batatinhas fritas? Oh que desgraça!”, exclama o funcionário do restaurante em tom de lamento.
Funcionário da "Ritinha do Castelo"

O camarim tem três sofás em círculo, uma mesa comprida junto ao espelho que ocupa a parede do fundo e uma máquina de jogos. Em cima da mesa está pousada uma sonda de plástico com cerca de 20 centímetros de comprimento. Faz parte dos exercícios de aquecimento de voz que David vai fazer antes de começar a cantar: “Aconselharam-me a usar isto numas aulas de voz”. O chá fica em repouso, enquanto ele sobe ao palco para testar os instrumentos.

Lá em cima à espera está Berto Pinheiro, técnico de iluminação, que controla os 50 projetores com efeitos de luz durante o espetáculo. No palco está o habitual cubo de quatro metros quadrados que serve de cenário para 16 instrumentos e dezenas de pedais que acompanham David durante o concerto. Os dois começam por discutir o alinhamento que, nesta série de seis concertos, todas as noites é diferente. Miguel Pereira, técnico de som, também já chegou. David senta-se no banco redondo rodeado de instrumentos e verifica o som das teclas, guitarra, voz e bombo. Um dos teclados costuma desafinar-se com as mudanças de temperatura. “Podes dar-me luz?”, pede David ao Observador para encontrar o orifício onde introduz a chave de afinação.

O brinde fica para mais tarde, embora David prefira não dar ênfase a determinados momentos da vida, por acreditar que deve dar valor às pequenas coisas do dia-a-dia: “Isso significaria que estaria a desvalorizar os momentos normais que nos enriquecem”.

O ensaio dura cerca de uma hora. David e Berto já decidiram o alinhamento desta noite, que vai contar com temas como “Melody Pops”, “Mr. Carousel”, “Tokyo Girl”, “Neutro” ou “Bullets on Parade”.

Diana Rosa

São já sete da tarde e estão nove graus lá fora. Os três vestem os casacos, sobem até à saída do teatro e caminham com as mãos nos bolsos durante cerca de dois minutos até chegarem à “Ritinha do Castelo”, o restaurante onde também jantaram na noite anterior. Neste pequeno lugar onde cabem duas ou três mesas em frente ao balcão, sentam-se naquela que fica mais perto da porta, e fazem o pedido. David pede um bife grelhado, Miguel quer bacalhau e Berto pede um bife de frango apenas com dois ovos estrelados. “Nem come umas batatinhas fritas? Oh que desgraça!”, exclama o funcionário do restaurante em tom de lamento.

A feira de tecnologia onde chegaram sem pilhas

Depois de pedirem a comida, cortam um pouco de pão enquanto esperam. Nos dias de concerto não se bebe álcool, pelo menos antes: “Acho que nunca fizemos um brinde à mesa”, lembra David, que é acusado pelos colegas de ser o “engraçadinho” dos três: “Ele muitas vezes pega em conversas que temos durante o jantar e conta tudo ao público durante o espetáculo. Por isso temos de ter cuidado com o que dizemos”, conta Miguel, enquanto arranca gargalhadas aos restantes.

O tempo para a refeição é curto, mas enquanto olham para o relógio há ainda espaço para recordar episódios inusitados que aconteceram antes de outros espetáculos. Exemplo disso foi um evento de tecnologia onde participaram na embaixada do Reino Unido, em Portugal. Nesse dia, David chegou com os dos teclados sem pilhas: “Foi o mínimo de tecnologia possível, em contraste com o sítio onde estava a tocar”, lembra David, que contou com a ajuda de um embaixador para trocar as pilhas de um instrumento para outro.

O brinde fica para mais tarde, embora David prefira não dar ênfase a determinados momentos da vida, por acreditar que deve dar valor às pequenas coisas do dia-a-dia: “Isso significaria que estaria a desvalorizar os momentos normais que nos enriquecem”. Mesmo depois de um trabalho que lhe corre bem, diz que prefere não entrar em êxtase.

1 hora de concerto e uma camisola de lã à venda por 12 euros

Faltam 10 minutos para subir ao palco quando David volta a descer ao camarim para os últimos preparativos, enquanto o público já começa a entrar na sala com lotação esgotada. O músico enfia a sonda que estava em cima da mesa dentro de uma garrafa de água e sopra até borbulhar. Para completar os exercícios de voz, canta alguns acordes à capela e está pronto.

Na sala oval com dois varandins com grades brancas, David sobe a escada de madeira, estreita, por trás das cortinas pretas. Caminha sobre as tábuas no meio do breu para entrar em palco, mas antes queremos saber quais são os primeiros acordes. A primeira canção será “Palco do Tempo”. David senta-se no banco, rodeado de instrumentos e um cubo com arestas iluminadas com várias cores, que vão mudando consoante os temas e o ritmo de cada um deles: “Com as luzes queremos também contar uma história, como se fosse uma viagem”, revela Berto Pinheiro, que acompanha cuidadosamente cada passo de David enquanto toca.

Nesta jornada de pouco mais de uma hora de canções, o artista faz questão de ir partilhando com o público, não só histórias, mas também muitas piadas que levam petizes e graúdos a várias gargalhadas. Exemplo disso é o momento em que fala do calor que sente com uma camisola que comprou por nove euros: “As que a minha mãe me oferece são boas. As que eu compro são de fibra, fazem muito calor e comichão! Tenho uma nova, já a meti à venda por 12 euros!“.

E lá está ele, em cima do palco, a desdobrar-se em múltiplas misturas de sons, vestido com a T-shirt às riscas coberta por uma camisola azul, calças de ganga e umas sapatilhas vermelhas que não têm descanso enquanto pisam nas dezenas de pedais.

Diana Rosa

O concerto termina por volta das dez e meia da noite com um longo aplauso, as portas abrem-se e no átrio já está uma banca com mechandising de Noiserv. Além da caixa de música com 16 sons, estão ainda gramofones em miniatura, discos, livros e vinis. Os fãs aproveitam para comprar alguns objetos onde não faltam os pedidos de autógrafos, além de beijos e abraços. David fica até que a última pessoa decida abandonar a sala.

Depois de uma ida aos correios, uma caminhada de dois quilómetros e mais de uma hora de concerto, David deixa escapar: “Agora sim, já estou ligeiramente cansado”. Mas no dia seguinte há mais, nesta série de seis concertos que, no Teatro da Garagem, só termina no domingo. Despede-se com um “até amanhã”.

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