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Roda o Centro: a comunidade que está a redesenhar o mapa do hip hop português

Todas as quintas-feiras, centenas de rappers, DJs, bboys, writers, beatboxers ou entusiastas desta cultura juntam-se no skate park de Coimbra. Batalhas épicas a fazer história desde há um ano.

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Há um ano, nascia uma roda dedicada ao hip hop que revolucionaria esta cultura na zona centro do país e afirmaria Coimbra, de todas as cidades, no mapa do rap nacional. A Roda o Centro celebrou um ano em agosto e provou ser um exemplo de persistência e amor à camisola numa cidade eternamente universitária e nostálgica sobre o período glorioso do rock ‘n’ roll, onde as cenas artísticas emergentes e alternativas raramente estabelecem raízes profundas o suficiente para terem longevidade.

“Principalmente no primeiro semestre deste ano, foi sem dúvida a roda mais competitiva, mais atrativa de ver, com mais espetáculo e adesão de público”, afirma SANJ, que ao longo do último ano se tornou num dos rappers mais ativos do projeto, tendo ganho uma posição de destaque no mundo das batalhas de freestyle a nível nacional. Afinal, é o campeão da Roda o Centro — não houve ninguém que tenha conquistado mais edições do que ele.

O fenómeno da Roda o Centro explica-se por vários motivos. O fator geográfico é um deles, uma vez que Coimbra — não tendo um enorme historial ligado ao hip hop — fica a meio caminho entre Lisboa e Porto. “Chegou a um ponto em que vinham os melhores de todo o país e não havia outra roda com esta competição. Porque os melhores do norte não iam todas as semanas para Lisboa e os melhores de Lisboa não iam todas as semanas para o norte. Então criou-se ali um ponto central para toda a gente.”

Às quintas-feiras à noite, é sagrado, “dia de missa”. O skate park, debaixo de uma ponte às portas de Coimbra, enche-se religiosamente de centenas de rappers, writers, bboys, DJs, beatboxers ou entusiastas desta cultura, que partilham momentos de convívio, em comunidade, assistindo às batalhas mas também a todas as outras demonstrações. Essa é a característica que melhor distingue a Roda o Centro das dezenas de outras organizações que promovem batalhas de rua de improviso pelo país: a aposta em todas as vertentes da cultura hip hop, com showcases de rap, beats, dança, poesia, beatbox e street artists que criam no papel uma obra que o vencedor das batalhas leva sempre para casa.

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Já se pensa na hipótese de as próprias batalhas de rua, espalhadas pelo território nacional, se possam unir para criar — em paralelo — um campeonato nacional de rua, como acontece no Brasil

A quinta-feira não foi escolhida ao acaso, como é evidente — é a noite universitária, o dia em que os milhares de estudantes de Coimbra mais saem para se divertir. “Mesmo que não sejam pessoas que consumam rap muito assiduamente, acabam por ir lá como uma alternativa aos convívios boémios normais”, salienta o rapper. Shark, o mentor e fundador do projeto, atesta: “A minha irmã estuda Psicologia aqui em Coimbra e quase toda a gente que ela conhece daquele meio pelo menos uma vez por mês vai à Roda o Centro”.

Isto não é verdade apenas em relação ao público. Também muitos rappers começaram a aparecer e a participar na roda por estudarem em Coimbra. É o caso do próprio SANJ, estudante de Jornalismo e natural de Aveiro, que começou a fazer rap na adolescência e a frequentar as rodas do Grande Porto, aquelas que ficavam mais perto de casa.

“A existência da Roda o Centro foi algo que senti que não poderia desperdiçar. Pode ser algo muito comum para quem tem uma batalha na sua zona, algo semanal que podem frequentar, mas para mim foi uma porta fixe que se abriu, porque sabia que todas as quintas-feiras tinha algo com que podia contar. Este foi o melhor ano da minha vida em termos de aprendizagem e evolução como MC. Fiz coisas que não sabia que conseguia fazer sequer. O melhor sentimento que tive este ano foi quando comecei a ir a estúdio com pessoal que conheci na roda.”

As consequências têm sido notórias, até porque o espírito comunitário em torno da roda uniu o movimento hip hop local e reacendeu a faísca para vários dos nomes mais históricos da cidade, como Gonçalo Guiné ou MC Ruze. “Senti que houve malta que estava estagnada e que se viu na obrigação de voltar à atividade por ver algo que estava a crescer tanto”, afirma SANJ.

“Quando entrei no mundo mais ligado à produção tentava perceber que projetos ligados ao hip hop é que havia em Coimbra, que de vez em quando pudéssemos propor, por vezes até para abrir artistas nacionais maiores, mas era algo muito residual”, recorda João “Jorri” Silva, diretor da Blue House, plataforma artística de Coimbra e um dos principais players do tecido cultural do município. “Não havia propriamente um movimento hip hop, estava tudo muito fragmentado, muito pouco associativismo em termos de colaborações.”

As batalhas são feitas ao som de instrumentais, vários dos quais produzidos por músicos da zona centro que colaboram com a roda, que vão do clássico boom bap às tendências mais contemporâneas do trap e do drill. Seja qual for a sua praia, o MC que entre em campo terá de se adaptar à velocidade do beat e entregar as rimas com um flow a condizer. Todos dizem que isso também tem ajudado a quebrar barreiras e preconceitos dentro do próprio hip hop, a aproximar gerações distintas.

"A zona centro sempre foi uma margem do hip hop, tal como o interior. Fora do Porto e Lisboa, as oportunidades são outras. Mas atrevo-me a dizer que, neste momento, o centro é a zona com mais movimentos de freestyle do país", diz Shark.

“Inicialmente considerava as batalhas o lixo do hip hop. Não conseguia perceber, achava que era ridículo. Aquelas coisas do ‘comi a tua mãe’… Parecia que não havia um objetivo”, conta a rapper Intermediária. “Entretanto o Shark falou comigo, já tinha visto alguns concertos meus, falou-me do projeto, que iria ter imensas coisas e isso pareceu-me super interessante. Depois convidou-me para ser jurada, até porque oiço muito hip hop, também dou explicações de português e ele achou que faria todo o sentido eu estar a fazer essa análise. Comecei a ir mais, a ver coisas incríveis nas batalhas e a perceber que o freestyle é um grande skill, e que é muito importante na vida real teres a capacidade de seres atacado e te aguentares e manteres. E teres que conseguir responder rápido e bem. Porque vejo as batalhas como um debate, como se estivesse a ver o ‘Prós e Contras’ na RTP.”

Natural de Abrantes mas a viver em Coimbra há sete anos, Intermediária acabou por se tornar numa das juradas mais frequentes da Roda o Centro. “Tento seguir uma coisa lógica, tento não ser muito emocional, até porque já conheço muitos deles. Claro que há o skill, o flow, mas para mim é muito mais o wordplay, a construção, se respondeu realmente àquilo que o outro disse…”

Também a rapper atesta que “a nova escola inspirou a velha escola a voltar”. “Havia muita gente que estava meio parada e que ressuscitou. Isso é incrível. Foi um marco essencial para o rap em Coimbra, ninguém se lembra de uma coisa semelhante.”

O legado de uma roda (responsável e ecológica) que inspirou tantas outras

O aparecimento em força da Roda o Centro ao longo do último ano inspirou muitas outras pessoas a criarem os seus próprios movimentos espontâneos ligados às batalhas de rua nas suas cidades e vilas — sobretudo ali mesmo, na zona centro do país.

“A Canta Free nasceu logo a seguir, por parte de miúdos que frequentavam aqui a roda e que perceberam que em Cantanhede também era preciso”, conta Shark. “Depois disso nasceu em Oliveira do Bairro a Batalha da Oliveira, de pessoal que cá vinha e organizaram lá um movimento. Há cerca de quatro meses organizámos a feira do livro em Soure. Não só nos deram autorização para pintar numa zona histórica, como se criou ali um movimento de freestyle. Fiz um apanhado dos rappers que lá existiam e encontrámos 10 rappers e dois produtores. E se Coimbra já é esquecido, Soure então… Há muito trabalho de base para fazer.”

Unidas, várias destas organizações criaram a Brigada do Centro, um coletivo informal que junta ainda as batalhas Voz de Rua, em Leiria; a Batalha do Marquês, em Pombal; Batalha da Visa, em Viseu; e as batalhas que acontecem esporadicamente em Vila Nova de Anços e Mira. “Acho que também já se formou uma em Santarém, há uma Roda da Beira em Tábua, com pessoal que vinha aqui. Malta que não tinha nada, que vinham aqui e com a força que fomos dando perceberam: vamos fazer o mesmo lá na zona. A zona centro sempre foi uma margem do hip hop, tal como o interior. Fora do Porto e Lisboa, as oportunidades são outras. Mas atrevo-me a dizer que, neste momento, o centro é a zona com mais movimentos de freestyle do país.” SANJ acrescenta: “Quase todas as batalhas do centro surgiram por consequência da Roda o Centro, foi o reflexo de surgir uma maior, que inspirou e motivou pessoas a fazerem algo nas suas cidades”.

Dentro da própria Roda o Centro, o movimento foi-se alargando à medida que curiosos e entusiastas foram tomando o gosto e arriscando-se a entrar em campo. “Há pessoas que nunca tinham rimado e começaram a rimar depois de terem ido à roda”, conta Intermediária. “Pessoas que dançavam e já não dançavam há algum tempo, viram lá a malta e juntaram-se a elas. Pessoas que se calhar nunca tinham exposto nada mas viram ali um espaço seguro para expor os seus textos e poesia. E criou outras rodas à volta. Esta ficou tão grande que quase há necessidade de existirem sub-rodas, e apareceram tipo cogumelos.”

Em agosto realizou-se uma semana inteiramente dedicada à cultura hip hop no Verão a 2 Tempos Epicentro: “Houve oficinas com miúdos, residências artísticas e performances”

SANJ refere outro dos MCs mais regulares, Athal, como outro estudante de Coimbra que começou a rimar depois de presenciar as batalhas na Roda o Centro. “E lembro-me de o Molo tentar ir lá interpretar uma letra, mas com os nervos de estarem pessoas a ver nem isso conseguiu fazer. Passadas umas semanas, estava na roda semanalmente a fazer a sua cena. Isso é muito inspirador”, diz. “O Shakur começou a rimar connosco depois das rodas, incentivámo-lo sempre a participar e hoje está lá sempre batido. Temos muita gente assim, felizmente.”

Neste momento, a Roda o Centro está a gravar uma mixtape com a participação de rappers e produtores de várias zonas do país e que de alguma forma se associaram ao projeto. A ideia, sublinha Shark, é que seja o primeiro de vários volumes.

Um ano depois, o skate park de Coimbra tornou-se na “maior galeria de pintura a céu aberto” do distrito. “E eliminámos as mensagens obscenas que existiam pintadas no skate park”, comenta Shark, que tem apostado noutras intervenções comunitárias e artísticas em torno do projeto. “Chamámos 40 writers para pintarem um túnel que fica ali perto, que estava todo sujo e onde os moradores não passavam. Os moradores acabaram por ficar lá connosco e até se chegaram à frente para pagar o resto da pintura do túnel. A comunidade adorou.”

Para si, a componente ambiental também é fulcral. Em todas as edições da Roda o Centro, Shark e um grupo de voluntários limpam o skate park após o evento. Também costuma disponibilizar cinzeiros portáteis no local e oferece copos rígidos para que não se gastem descartáveis. Shark critica a autarquia, no entanto, por alegadamente se ter “descartado daquele espaço”. “Deixaram o skate park sem luz em condições, sem água, não arranjavam as casas de banho nem limpavam o lixo. Fiz esses pedidos formais, mas ainda falta fazer muita coisa.”

As batalhas de improviso e o hip hop na programação de uma câmara municipal

À medida que a Roda o Centro crescia e alargava o seu impacto, este movimento informal e espontâneo começou a ser acompanhado pelas estruturas culturais do concelho, atentas às culturas alternativas e das margens.

“O hip hop ganhou aqui uma expressão de agregação, de juntar pessoas para simplesmente quererem fazer parte de uma cultura, para se sentirem seguros em partilhar letras, beats, desenhos, que normalmente fazem em casa e de repente há um sítio seguro para mostrarem o que fazem e para terem pessoas com mais experiência de alguma maneira a poder indicar-lhes o que pode ou não ser feito. É uma partilha de experiências. O que se criou no skate park da roda é isso, um espaço seguro para poderes mostrar o que fazes e saberes que tens pessoas que te vão entender, que já passaram pelo mesmo sítio que tu e, em último caso, vão ouvir-te”, diz Jorri.

Depois de um evento especial no Salão Brazil em que os rappers mais ativos da roda foram convidados para fazerem batalhas em colaboração com os músicos residentes de jazz, e de outros eventos em que a Roda o Centro acabou por agir como curadora, desta vez foram integrados na programação de verão da autarquia, com curadoria da Blue House. O Verão a 2 Tempos Epicentro — assim se chama a programação diferenciada que a Câmara Municipal de Coimbra promoveu este ano — tem-se prolongado durante três meses na Baixa da cidade.

O chefe da divisão de cultura da Câmara Municipal de Coimbra, Rafael Nascimento, acrescenta que esta lógica “é muito mais enriquecedora do que contratar uma coisa megalómana que é igual em Coimbra ou noutro sítio qualquer, em que se contrata um pacote feito que circula”.

Por um lado, tem sido um programa muito centrado em residências artísticas e apoios à criação, para tentar que os músicos convidados estabeleçam de facto uma relação com a cidade; por outro, é uma maneira de tentar dinamizar o centro de Coimbra, que enfrenta uma certa decadência simbólica, hoje mais desertificado e afastado de muitas comunidades locais, com muitas lojas vazias naquele que outrora foi o centro de comércio do município. A programação decorre toda na rua, de forma completamente gratuita.

“Coimbra, como qualquer cidade, tem público para espetáculos mas tem muito mais pessoas que não têm contacto com algumas áreas de expressão artística. O espaço público tem essa força. De manhã, quando as pessoas saem de casa, ainda não sabem que vão ser público de um concerto ou de uma performance que vai acontecer… Isso é a força do espaço público, chegares a pessoas que de outra maneira se calhar nunca teriam contacto. Neste caso, com o jazz, com a música improvisada, com performances, com o hip hop. E é ter a cidade como pano de fundo, no verão, quando os teatros e as salas estão fechadas. Também convidar essas estruturas a irem para a rua e ganharem público. A ideia não é ter uma programação de massas, há outras coisas que complementam isso e o verão está cheio de festivais. A ideia é fazer um trabalho contínuo num espaço complexo como é a Baixa, criar uma relação não só com os artistas mas com as pessoas daqui”, diz Jorri.

“A ideia é, quando sairmos daqui em setembro, que quem tenha esse sentimento de perda sejam as pessoas que vivem e trabalham aqui. Que percebam: ‘espera lá, isto era muito mais fixe quando este pessoal estava cá. Então vamos criar condições, porque se calhar esta loja que está aqui vazia é mais fixe se de repente se tornar na galeria de um artista, ou num espaço de trabalho, ou num escritório para uma associação que não tenha uma sede própria’. A longo prazo, estabelecem-se relações humanas que depois são muito mais difíceis de quebrar.”

O chefe da divisão de cultura da Câmara Municipal de Coimbra, Rafael Nascimento, acrescenta que esta lógica “é muito mais enriquecedora do que contratar uma coisa megalómana que é igual em Coimbra ou noutro sítio qualquer, em que se contrata um pacote feito que circula”. “Também é importante e isso deve ter o seu espaço, mas acho que se ganha muito mais camadas e interesse quando olhamos para o nosso tecido artístico, percebemos quem está a trabalhar e o município tem uma atitude de: vamos pensar nisto em conjunto?”

Na semana de aniversário da Roda o Centro, no início de agosto, a Câmara Municipal de Coimbra e a Blue House convocaram o projeto a dinamizar uma semana inteiramente dedicada à cultura hip hop no Verão a 2 Tempos Epicentro. “Houve oficinas com miúdos, residências artísticas e performances”, explica Jorri. “É super importante trazer estas culturas de margem para o espaço público, porque é a única maneira de as pessoas perceberem e muitas vezes tirarem alguns preconceitos sobre alguns géneros. Que o hip hop é uma cena de guetos, que só tem pessoal que se junta para fazer umas rimas e metade são palavrões… não é nada disso. Está aqui, na Praça do Comércio, as pessoas podem ver, as crianças estão a trabalhar com os mesmos artistas que fazem isto e percebem que não há papões nenhuns e que não se está a ensinar a falar mal dos políticos ou a dizer que a cidade não presta… Estão-se a ensinar coisas muito básicas, inclusive de português, e sobre como é que os miúdos podem aumentar a sua auto-confiança e auto-estima em poderem rimar, em poderem fazer beatbox, socialmente, a dançar… A cultura hip hop junta isso tudo. Claro que há pessoas que vão achar aquilo muito estranho. Mas há muitas outras que nunca tiveram um contacto a sério com aquilo e que vão adorar.”

Às quintas-feiras à noite, é sagrado, “dia de missa”. O skate park, debaixo de uma ponte às portas de Coimbra, enche-se religiosamente de centenas de rappers, writers, bboys & girls, DJs e beatboxers

Fotos: João Silvano

Intermediária é rapper e jurada da Roda o Centro, mas o seu trabalho civil é dar aulas de português ao 1.º ciclo e explicações aos alunos do 9.º e 12.º ano, além de promover workshops de escrita criativa. A professora e artista considera que o rap pode ser uma ferramenta essencial para ensinar o português, por ser uma área que desperta interesse e curiosidade junto de tantos jovens. A arte do improviso, em particular, também pode ser útil.

“O improviso é muito bom para desbloquear e para depois começares a escrever alguma coisa. Nas oficinas que fiz com crianças durante estes dias, uma das minhas missões é fazer com que eles saibam que qualquer pessoa pode rimar. Mesmo que não saibas escrever, e podes demorar tempo, mas sabes rimar.”

As oficinas da Roda o Centro com crianças acabaram por também envolver todas as vertentes do hip hop, da palavra do rap aos movimentos de dança, passando pelo beatbox. “Cada criança é diferente e pode-se identificar com uma vertente. Por exemplo, houve um miúdo que esteve o tempo todo calado nas oficinas, mas quando foi o beatbox soltou-se imenso. Como não tem de falar, sentiu-se muito mais à vontade. Na dança também, sobretudo com as miúdas, e algumas andam na ginástica, então se calhar sentem-se mais à vontade para se expressarem com o corpo do que propriamente com a voz e a palavra. A ideia é também perceberem que podem fazer isto profissionalmente, mas isto também é interessante para quem não queira ser nada disto. Acrescenta sempre alguma coisa. Eu valorizo muito a escrita, acho que todos deveriam ter o seu diário: para se compreenderem, para despejarem, para daqui a 30 anos lerem aquilo… Pode ser algo aplicado no campo artístico mas também a nível pessoal, especialmente para os miúdos gerirem as suas emoções. Se isso se tornar arte, ótimo; se se tornar outra coisa qualquer, ótimo também.”

Rafael Nascimento — que curiosamente também faz música ligada ao campo do hip hop, com a banda Gana — destaca a “lógica coletiva” em torno de projetos como a Roda o Centro, que muito têm proliferado pelo território nacional, também graças à cada vez maior influência da cultura urbana brasileira por cá. “É curioso, até porque ao longo dos anos o hip hop foi perdendo um bocadinho essa dimensão e foi-se aproximando mais do trabalho de estúdio, mais isolado e individual. E depois surge numa cidade como Coimbra, que não diria que seria expectável à primeira, um movimento como a Roda o Centro que convoca todas as vertentes do hip hop e funciona muito numa lógica coletiva que acho que o hip hop estava a perder.”

“Do hip hop ao metal, tudo o que são géneros de margens ou de nichos, que não são tão socialmente aceites, convivem mal com esta cidade. Todos esses movimentos que retratam a cidade têm tendência a não ter espaço, porque a cidade convive muito mal por natureza com o defeito, com o erro, com assumir que tem falhas", diz João "Jorri" Silva.

Para ele, “é fundamental uma câmara municipal estar atenta aos movimentos emergentes, alternativos e underground”. “Porque o underground de hoje vai-se transformar e criar a paisagem artística de uma cidade. Por exemplo, em Coimbra ainda se fala muito numa paisagem artística que tem a ver com os Tédio Boys, banda punk, e essa influência ainda se sente muito no underground da cidade. Por outro lado, também acho que há determinados movimentos que se forem demasiado institucionalizados também se estragam. Porque uma câmara é uma estrutura formal com uma série de obrigatoriedades e, por vezes, isso pode matar uma parte da informalidade e da espontaneidade que esses movimentos têm que ter. Para não corrermos o risco de estarmos a instrumentalizar movimentos que são completamente espontâneos. Esta relação que encontrámos com a Blue House e os nossos outros parceiros… São entidades muito atentas a esses movimentos e que os podem trabalhar nessa informalidade. E a câmara pode apoiar da maneira que estamos a fazer.”

João “Jorri” Silva lembra que, muitas vezes, a cidade manteve uma relação atribulada com os movimentos artísticos de contracultura — pelo que dar a mão à Roda o Centro representa um progresso significativo.

“Do hip hop ao metal, tudo o que são géneros de margens ou de nichos, que não são tão socialmente aceites, convivem mal com esta cidade. Todos esses movimentos que retratam a cidade têm tendência a não ter espaço, porque a cidade convive muito mal por natureza com o defeito, com o erro, com assumir que tem falhas. E muitos destes géneros de margens refletem isso, porque nascem nessas linhas e refletem sobre o que está mal no sítio onde vivem e o que é que poderia mudar. A canção e o fado de Coimbra faziam um pouco esse trabalho, era uma espécie de música de intervenção que retratava as coisas que não estavam bem. Só que simplesmente estagnou e as canções que se cantam hoje são as mesmas que se cantavam nos anos 60, então perdeu esse peso. Estes géneros artísticos é que não nos fazem esquecer dos sítios onde vivemos, porque não andamos iludidos com um retrato constante do passado. E numa cidade tão antiga como Coimbra e com um passado muito importante, ainda mais difícil é as pessoas viverem um presente e projetarem o futuro, quando estão sempre a relembrar o passado. Nesse aspeto, o que se passou neste último ano com a Roda o Centro é importantíssimo.”

Uma roda que deixa sementes

O movimento na zona centro cresceu de tal forma que a maior estrutura formal no circuito de batalhas de improviso, a Red Bull Francamente, abriu este ano pela primeira um pré-qualifier no centro do país, para que os rappers locais se possam candidatar à competição nacional sem ser através de Lisboa e Porto. “Este foi sem dúvida o ano em que o freestyle mais cresceu em Portugal. E falo tanto em adesão do público como em termos de competitividade”, realça SANJ.

Já se pensa na hipótese de as próprias batalhas de rua, espalhadas pelo território nacional, se possam unir para criar — em paralelo — um campeonato nacional de rua, como acontece no Brasil. “A Brigada do Centro também surgiu porque todas as batalhas do país estão a querer desenvolver-se individualmente, o pessoal focava-se em ter um ranking ou um sistema próprio para a sua batalha”, refere Shark. “Essa uniformização existe, por exemplo, no Brasil. Em todos os estados, as batalhas maiores percebem que têm de pensar nas batalhas mais pequenas. Só consegues ter o top de MCs que existem na Roda o Centro porque nas outras batalhas mais pequenas à volta a fasquia está a ser desenvolvida. E no Brasil há um sistema muito linear: ganhas a batalha do teu bairro, vais à batalha da cidade, e por aí adiante.”

"O que se criou no skate park da roda é isso, um espaço seguro para poderes mostrar o que fazes e saberes que tens pessoas que te vão entender"

Fotos: João Silvano

Depois de algumas divergências, vários rappers muito regulares na Roda o Centro afastaram-se da organização e começaram a idealizar uma alternativa, a Batalha Clandestina, que tem tido alguns eventos-piloto nos últimos tempos.

“Acho que é positivo para não monopolizar as coisas e haver uma alternativa numa cidade”, explica SANJ, um dos rappers que fizeram esse trajeto. “É como haver um McDonald’s e um Burger King no mesmo sítio. É bom para o público e para as duas rodas. A ideia é ser uma cena mais descontraída, com as várias vertentes, e sempre em sítios diferentes da cidade, não só nas ruas.”

Independentemente do futuro e da maior ou menor longevidade destes projetos, Jorri remata: “A Roda o Centro tornou-se um excelente exemplo em Coimbra, ainda para mais vindo desta comunidade hip hop onde nunca houve tanta agregação. Mesmo quando isto surgiu, disse logo que não interessa se dura seis meses, um ano… É importante que exista e que as pessoas usufruam enquanto existir. Se um dia desaparecer, já vai deixar sementes. Claro que, quanto mais tempo durar, mais sementes vai largar. E outros projetos vão surgir porque houve uma roda antes”.

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