Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Os alunos portugueses do ensino básico terão, no terceiro período de aulas, uma nova ferramenta à sua disposição. A RTP passará a emitir módulos com conteúdos pedagógicos, alinhados com o currículo nacional, em sinal aberto. Os conteúdos serão integralmente da responsabilidade do Ministério da Educação, que está a coordenar esforços para tornar este novo formato de “telescola” numa solução útil para o trabalho dos professores e alunos, num contexto particularmente inesperado e exigente. E, não é segredo, o objectivo é alcançar especialmente os alunos que, por falta de condições materiais (internet e computador), são os maiores prejudicados pela ausência de ensino presencial nas escolas, ficando excluídos de uma continuidade pedagógica com os seus professores.
Portugal não está isolado neste tipo de iniciativas. Por todo o mundo, emissoras de televisão estão a introduzir conteúdos educativos na sua programação, com ou sem intervenção dos respectivos ministérios da educação. Em alguns países, a existência desse tipo de programação já está consolidada e os conteúdos criados — por exemplo, em Itália, a Rai Scuola tem mais de 20 anos de operação. Noutros países, conteúdos estão a ser preparados para responder às necessidades desta crise sanitária e, em tempo recorde, abrir uma “escola na televisão” — exemplo do que acontece no reforço dos conteúdos educativos na BBC (Reino Unido) ou na Letónia. Ora, independentemente do seu nível prévio de desenvolvimento, todas estas iniciativas partilham objectivos: na medida do possível, manter um acesso universal à educação e minorar o impacto do isolamento social no percurso escolar dos alunos.
É então que se chega à questão-chave do ponto de vista da aprendizagem: pode a televisão ser uma ferramenta educativa eficaz? A investigação na área demonstra que sim, é possível ser uma ferramenta útil, mas isso depende sobretudo da qualidade dos conteúdos transmitidos. E, no plano das políticas públicas, depende igualmente do seu alcance — nomeadamente, se consegue ou não chegar aos alunos mais desfavorecidos.
Como torná-la eficaz, então? Aprendendo com as boas práticas. Existem casos célebres em que a televisão ajudou verdadeiramente a qualificar a população mais jovem. E, nesse domínio, nenhum exemplo é mais impressionante do que o do programa televisivo ‘Rua Sésamo’, que marcou gerações em todo o mundo. Passados 50 anos desde a sua primeira emissão, ainda temos muitas lições a aprender com esta série infantil de grande sucesso educativo. Neste ensaio, olharemos para aquela que foi a melhor escola que a televisão alguma vez conheceu e analisaremos a extensa investigação académica sobre o impacto que ‘Rua Sésamo’ teve na aprendizagem das crianças.
Pré-escolar ou ‘Rua Sésamo’? Uma experiência natural na década de 1970
Quando o programa ‘Rua Sésamo’ estreou, em 1969, os EUA estavam imersos num contexto social e educativo muito particular. Os movimentos de luta pelos direitos civis haviam empurrado as prioridades das políticas públicas para o apoio às populações socialmente desfavorecidas. Como seria de esperar, a Educação assumiu um papel de destaque nesse impulso. E, em particular, na primeira linha foi colocado o acesso ao pré-escolar, através de um grande plano nacional chamado Head Start, fundado em 1965 e ainda hoje existente, que visava dar a alunos desfavorecidos um “avanço” desde cedo na aprendizagem e no contacto com a escola. Ou seja, ‘Rua Sésamo’ nasceu num contexto em que era prioridade nacional garantir um acesso mais alargado à Educação e, em particular, ao pré-escolar.
Essa prioridade tinha uma (boa) razão de ser: os estudos sempre foram inequívocos sobre a importância da frequência do pré-escolar para a probabilidade de sucesso escolar e profissional. Independentemente do país, os estudos longitudinais (i.e. com dados recolhidos durante vários anos) mostram que quem frequente o pré-escolar por 2 ou mais anos ganha uma vantagem sobre os que frequentarem apenas por 1 ano, e uma vantagem muito significativa sobre aqueles que não passarem pelo pré-escolar. Assim, desde há muito que é evidente que a correcção das desigualdades sociais na educação é mais eficaz se aplicada logo nos primeiros anos de formação.
Ora, este contexto social e político nos EUA é importante de ser assinalado neste ensaio por duas razões. Desde logo, para assinalar que a aposta nacional no pré-escolar foi acompanhada do apoio ao financiamento de algumas outras iniciativas que visassem promover a aprendizagem dos alunos nessas idades. Uma das iniciativas apoiadas foi, precisamente, o programa televisivo ‘Rua Sésamo’, que beneficiou inicialmente de algum financiamento público — até que o seu sucesso internacional o tornou financeiramente sustentável.
[Veja no vídeo o genérico de abertura da primeira temporada nos EUA, 1969]
Muitíssimo mais importante, o facto de Head Start e ‘Rua Sésamo’ terem coexistido no tempo permitiu estabelecer comparações sobre os seus respectivos efeitos na aprendizagem das crianças, tanto no curto como no longo prazo (no percurso escolar dos alunos). Ou seja, o contexto formou uma espécie de experiência natural, em que, ao mesmo tempo, houve crianças de perfil social equivalente que, de um lado, tiveram apenas acesso ao programa Head Start e outras que, de outro lado, tiveram apenas acesso ao visionamento de ‘Rua Sésamo’.
O que aconteceu foi que, na década de 1970, cerca de um terço das crianças assistia ao programa (uma audiência elevadíssima), mas um outro terço das crianças não tinha a possibilidade de assistir por falta de antena televisiva capaz de captar o sinal do canal que emitia o programa. A divisão não era regional, estadual ou social: era quase aleatória, porque havia dois tipos de antena para captação de sinal televisivo — UHF (pior sinal) e VHF (melhor sinal) — e a regulamentação local definia quais podiam ser adoptadas. Para ver a ‘Rua Sésamo’, a residência teria de ter VHF, algo que, por exemplo, não se verificava em Los Angeles ou Washington, mas sucedia em Nova Iorque ou Boston. Essa circunstância criou dois grupos de crianças praticamente aleatórios e permitiu que os percursos escolares de milhões de alunos fossem analisados e comparados, de modo a avaliar a eficácia da ‘Rua Sésamo’.
A análise dos percursos escolares desses alunos foi alvo de centenas de estudos, alguns dos quais muito recentes. Os resultados serão apresentados e explicados neste ensaio. Mas se não consegue esperar para saber, aqui vai o resumo numa frase: ‘Rua Sésamo’ teve um impacto inequivocamente positivo na aprendizagem das crianças e, na década de 1970 nos EUA, o seu impacto equiparou-se mesmo à frequência do pré-escolar presencial.
A ciência por detrás dos episódios
O sucesso comercial e educativo de ‘Rua Sésamo’ não foi um acaso, como existem muitos na história da televisão. Pelo contrário, foi resultado de um trabalho metódico, que começou na definição das motivações do programa televisivo. Os criadores e produtores da série infantil nunca olharam para o seu trabalho como entretenimento, mas sim como um programa estritamente orientado para a aprendizagem e aquisição de competências. O lado lúdico seria, assim, um meio para prender a atenção das crianças, de maneira a que se mantivessem concentradas e assim assimilassem melhor os conteúdos educativos. Daí os criadores terem estabelecido, desde o arranque, um conjunto de metas de aprendizagem, que pretendiam fazer as crianças atingir com o visionamento dos episódios da série televisiva. Metas, essas, que eram formativas e cognitivas, de modo a preparar as crianças para a frequência da escola. Não se tratava, portanto, apenas de ensinar a contar (matemática) ou a soletrar (literacia), mas também de preparar as crianças a lidar com questões do seu desenvolvimento emocional — ou seja, competências sociais, como a tolerância, foram promovidas em vários segmentos e episódios.
Uma ambição desta natureza implicou que a equipa por detrás de ‘Rua Sésamo’ fosse composta por profissionais de televisão, especialistas em educação e investigadores (figura 1). Em conjunto, estes definiram a estrutura da série, à volta de um currículo educativo feito à medida de crianças entre os 3 e os 5 anos de idade, com base nas mais recentes evidências científicas. Um dos coordenadores científicos da equipa foi Gerald Samuel Lesser (1926-2010), psicólogo que leccionava na Universidade de Harvard e que se especializou no impacto da televisão em crianças. No livro que lançou em 1974, “Children and Television: Lessons From Sesame Street” (Random House), Lesser explica o processo de concepção teórica que deu corpo à série infantil, documentando como cada detalhe foi orientado pelo conhecimento empírico trazido pelos investigadores.
Nesse livro, assim como noutros testemunhos, há três exemplos particularmente simples de como a investigação científica e a produção televisiva se aliaram em ‘Rua Sésamo’. Primeiro, adoptou-se a repetição sistemática dos exercícios em cada segmento. Por detrás dessa opção estava a observação empírica de que as crianças interagiam mais e tinham maior interesse em conteúdos que entendiam e que conseguissem antecipar. Ou seja, através da repetição, as crianças ganhavam tempo para adquirir confortavelmente as competências e treiná-las com sucesso, aumentando a sua satisfação com a experiência à medida que viam os exercícios repetidamente — sem repetição, seria mais provável as crianças ficarem frustradas por não conseguirem atingir os resultados esperados. E, claro, esta era também uma forma de as preparar progressivamente para as etapas seguintes do processo de aprendizagem. A repetição estava de tal modo enraizada no método de trabalho dos produtores da série que, ao longo de uma temporada de episódios, alguns segmentos ou episódios reapareciam.
O segundo exemplo de como a investigação científica moldou a produção e o conteúdo da série é a ausência de distracções cénicas. Perante a constatação empírica de que as crianças muito facilmente se distraem com elementos secundários, sobretudo em contextos de repetição sucessiva, os produtores tiveram a preocupação de despir os segmentos de quaisquer elementos que pudessem constituir focos de distração. Ou seja, em vez de se optar por um estímulo sensorial elevado e por múltiplos pontos de atenção, como se faz em vários desenhos animados, preferiu-se manter as crianças concentradas num único ponto, maximizando a sua concentração no conteúdo educativo. Isto, claro, com o desafio de manter a experiência visualmente apelativa, embora sobretudo apoiada em cenários estáticos e com o mínimo necessário de elementos.
O terceiro exemplo é a compreensão de como as crianças aprendem rapidamente com “role-models”, isto é, pessoas ou personagens de ficção que possam mimetizar, reproduzindo as suas expressões, as suas atitudes e os seus comportamentos. Isso implicou um cuidado especial na representação dos personagens. Por um lado, evitando comportamentos negativos ou de risco que as tornassem mais humorísticas mas também menos educativas. Ou, por outro lado, fazendo com que as personagens assumissem uma atitude positiva, incutindo curiosidade e entusiasmo pelo acto de aprender.
Há um aspecto-chave para compreender como é que este processo de concepção funcionava: através de testes e de avaliações, a equipa multidisciplinar que produzia os episódios sabia se estava a ser bem-sucedida nos seus objectivos, tanto em termos de metas de aprendizagem como em termos de eficácia de cada um dos segmentos dentro dos episódios.
A produção de ‘Rua Sésamo’ encarregou a ETS (Educational Testing Service), uma reputada ONG especializada em avaliações sumativas, de testar a eficácia dos segmentos em crianças de 3 a 5 anos de idade. Para além disso, uma equipa interna avaliava sistematicamente os conteúdos preparados, de forma a aferir o seu impacto e a melhorá-los quando algo no segmento despertava reacções indesejadas nas crianças — fosse esse um elemento de distracção que devesse ser eliminado ou um comportamento de determinada personagem que devesse ser alterado. Em várias ocasiões, os conteúdos foram revistos depois de testados, de modo a confirmar a teoria ou para afinar a mensagem, conforme os resultados desses testes.
[No vídeo, o actor James Earl Jones recita o alfabeto num segmento de ‘Rua Sésamo’]
Um exemplo dessas avaliações internas, que ficou famoso, foi uma experiência sobre o efeito da repetição na aprendizagem das crianças. A equipa de investigadores associada à produção colocou crianças a ver repetidamente um segmento sobre o alfabeto, em que o actor James Earl Jones soletrava pausadamente cada letra. No primeiro visionamento, as crianças diziam o nome de cada letra depois ou ao mesmo tempo que o actor. À medida que o segmento era repetido, as crianças começaram a dizer o nome das letras antes do actor e, por fim, mesmo antes de a letra aparecer. Este efeito de antecipação foi apelidado, dentro da equipa de ‘Rua Sésamo’, de “efeito James Earl Jones”: a repetição levava à assimilação e antecipação dos conteúdos. Foi com base neste tipo de experiências que o programa infantil decidiu apostar fortemente na repetição dos segmentos, conforme acima se explicou.
Ou seja, não só os episódios de ‘Rua Sésamo’ eram desenhados tendo por base evidências retiradas da literatura académica como eram alvo de validação científica, garantindo-se que os conteúdos dos segmentos estavam de facto alinhados com os seus objectivos. O seu sucesso esteve, assim, assente num método de trabalho que, décadas depois, continuou a ser estudado e referenciado como boa prática.
O impacto educativo de ‘Rua Sésamo’
O programa ‘Rua Sésamo’ foi dos mais estudados da história da televisão. Existem, literalmente, centenas de artigos académicos sobre este programa infantil, muitos deles focados na aprendizagem, outros dedicados a aspectos sociais e comportamentais. Neste ensaio, o foco será exclusivamente no impacto de ‘Rua Sésamo’ na aprendizagem.
Como foi explicado na secção anterior deste ensaio, a produção de ‘Rua Sésamo’ foi acompanhada por uma equipa de investigadores, tanto para moldar os seus conteúdos como para avaliar o seu impacto. Não surpreende, por isso, que muitos dos artigos académicos que surgiram inicialmente integrassem elementos ligados à produção — o que, na teoria, poderia levantar dúvidas sobre a sua isenção, embora a sua fiabilidade científica não tenha sido contestada (o que não significa que os seus resultados tivessem sempre gerado consenso).
Entre esses estudos, um que se destacou foi publicado em 1990, visando avaliar o impacto na aquisição de vocabulário. Analisando diários de uma amostra de dois grupos de crianças que visionaram vários episódios de ‘Rua Sésamo’, durante cinco semanas, os investigadores identificaram um efeito positivo nas crianças entre os 3 e os 5 anos de idade, que enriqueceram e diversificaram o seu vocabulário. Em relação às crianças entre os 5 e os 7 anos, os benefícios não foram significativos. Ou seja, o estudo confirmou que, para o grupo-alvo de ‘Rua Sésamo’, havia um impacto positivo mensurável no vocabulário.
Anos depois, esses resultados foram confirmados e alargados por um novo estudo, publicado em 2001. Nesse novo estudo, crianças com perfil socioeconómico desfavorecido de dois grupos etários (2 a 5 anos; 4 a 7 anos) foram monitorizadas ao longo de 3 anos. Nesse período temporal, observou-se o visionamento de ‘Rua Sésamo’ e de outros programas com conteúdos educativos, outras actividades (leitura, videojogos, música) e factores de contexto (como a educação dos pais e outros que produzem efeitos no desempenho escolar das crianças) — e, em intervalos regulares, as crianças foram avaliadas através de vários testes estandardizados (de vocabulário, de literacia e de matemática) habitualmente usados nas escolas. Os resultados mostraram dois aspectos de grande importância. Primeiro, que as crianças com acesso a programas educativos (em particular ‘Rua Sésamo’) passavam mais tempo envolvidas em actividades educativas ou a ler. Segundo, essas crianças evidenciaram desempenhos superiores aos seus colegas (que não assistiram a esses programas televisivos) nos testes estandardizados nos vários níveis e em todas as áreas. Muitas outras investigações e experimentações, com diferentes abordagens metodológicas, vieram confirmar estes resultados. Para os interessados, uma grande análise e compilação de 30 anos de estudos sobre ‘Rua Sésamo’ foi editada em 2014, pela prestigiada editora Routledge.
A análise definitiva e de grande escala surgiu mais recentemente, num estudo publicado em 2015. Nesse estudo, tendo por referência os EUA, comparou-se o impacto (ao longo de todo o percurso escolar) entre o visionamento de ‘Rua Sésamo’ e a não-ida à escola ou a frequência do pré-escolar. Como anteriormente se explicou, as limitações técnicas das antenas e de emissão de sinal televisivo fizeram com que, no momento da sua estreia, em 1969, apenas uma parte da população tivesse acesso à série infantil. Isso criou um contexto para uma experiência de grande escala, que permitiu dar resposta à pergunta-chave: que impacto teve a série no longo prazo e que percurso escolar tiveram as crianças com acesso a ‘Rua Sésamo’, comparativamente às que não tiveram?
Para responder, os investigadores mapearam o território dos EUA em função do seu sinal televisivo (figura 2), identificando os concelhos onde, em 1969 e início da década de 1970, havia acesso ao sinal VHF e os em que não havia (ou seja, onde não era possível ver ‘Rua Sésamo’) — e ainda cruzaram com as audiências televisivas. Depois, fizeram a monitorização dos resultados escolares por concelho, acompanhando ao longo do tempo a progressão das crianças que frequentaram a escola depois de, em idade pré-escolar, terem visto ‘Rua Sésamo’. Os resultados mostraram aquilo que, tendo em conta a literatura académica, já era esperado: o visionamento dos segmentos educativos na televisão haviam tido um impacto muito positivo na preparação daquelas crianças para a escola. A surpresa nos resultados foi a escala: os efeitos encontrados foram muito elevados.
Vale a pena detalhar os resultados. Esse estudo confirmou que as crianças com acesso a ‘Rua Sésamo’ haviam começado a escolaridade formal no ano certo e tinham tido maior probabilidade de um percurso escolar de sucesso (isto é, sem retenções), comparativamente às crianças que não tinham tido acesso a ‘Rua Sésamo’. Como se observa na figura 3, as crianças que eram mais novas quando estreou a série infantil (e portanto tiveram mais tempo de exposição aos seus segmentos) viram a sua probabilidade de sucesso escolar aumentar de forma mais acentuada — ou seja, as crianças que já tinham 5 anos (1970) quando a série estreou tiveram menos tempo para tirar proveito dos seus segmentos e, por isso, também o benefício retirado foi menor.
Mais interessante é observar que as maiores diferenças comparativas foram detectadas entre as crianças com baixo perfil socioeconómico, demonstrando que estas foram as principais beneficiadas pelo acesso à série infantil. Como se vê na figura 4, nos concelhos onde havia uma elevada taxa de abandono escolar e mais famílias desfavorecidas, o impacto positivo de ‘Rua Sésamo’ foi particularmente forte. Concretamente, entre os grupos desfavorecidos, os rapazes afro-americanos foram aqueles que mais melhoraram com ‘Rua Sésamo’, reduzindo o risco de retenção em 16%. Estimativas dos autores apontam para que, caso naquela altura todo o país tivesse acesso a ‘Rua Sésamo’, as melhorias teriam sido ainda mais acentuadas — por exemplo, um ganho de 50% para as crianças afro-americanas. Na prática, se estas estimativas se materializassem, seria quase o equivalente a ganhar um ano ao longo de um percurso escolar.
Agora, o dado mais surpreendente: o efeito positivo detectado foi tão elevado que se equiparou à frequência do pré-escolar. Ou seja, ver ‘Rua Sésamo’ ou frequentar o pré-escolar teve um impacto semelhante em termos de desempenhos escolares futuros. Dito isto, há duas nuances importantes. Primeiro, proporcionar o pré-escolar (através do plano nacional Head Start) para milhões de crianças desfavorecidas custou muito mais dinheiro (com edifícios escolares, professores, equipamento, formação) do que a produção dos episódios da ‘Rua Sésamo’. Ou seja, em termos de custo-benefício, o programa televisivo foi muito mais eficaz: produziu resultados equivalentes em termos de aprendizagem, mas custou apenas uma pequena fracção do orçamento do plano nacional Head Start — as estimativas são de 5 dólares por criança com acesso a ‘Rua Sésamo’ e de 7600 dólares por criança no Head Start. A segunda nuance é que, apesar disso, a frequência do pré-escolar é mais do que apenas desenvolvimento académico. Tratando-se de famílias desfavorecidas, o Head Start incluía apoio às famílias, desenvolvimento emocional e acesso a serviços de saúde — que inflacionaram os custos desta política pública e enriqueceram o seu impacto nas crianças noutras dimensões. Portanto, seria sempre precipitado sugerir que as crianças teriam ficado melhor servidas se apenas ficassem em casa com a televisão a emitir ‘Rua Sésamo’.
Por fim, uma reflexão adicional. Todos os estudos acima referidos partilham uma opção metodológica: todos olharam para os efeitos de ‘Rua Sésamo’ na aprendizagem após uma exposição prolongada (semanas ou anos) aos episódios da série infantil. Por isso, uma questão final será sobre os efeitos imediatos após uma exposição curta. Concretamente: o que acontece se uma criança assistir apenas a um segmento (que dura 2 minutos) ou a um episódio (que dura 25 minutos)? Houve investigadores que olharam para esta questão, em particular para testar a eficácia de determinados segmentos — embora, forçosamente, as suas conclusões sejam menos robustas do que nos estudos com períodos longos de observações. Estudos desse tipo foram feitos logo em 1977, avaliando a capacidade de resolver problemas das crianças com 5 ou 6 anos de idade. Após o visionamento de um segmento de 100 segundos (menos de 2 minutos) de ‘Rua Sésamo’, as crianças foram desafiadas a resolver dois exercícios, um deles idêntico àquele que viram no segmento e outro equivalente mas cuja estratégia de resolução teria de ser diferente. Os resultados mostraram que os efeitos positivos são ténues (e provavelmente efémeros), mas significativos. As crianças foram capazes de reproduzir a estratégia que viram no segmento, tendo depois evidenciado dificuldades com o exercício seguinte.
O impacto educativo de ‘Rua Sésamo’ em Portugal
O sucesso comercial (e educativo) da série nos EUA gerou interesse por todo o mundo e rapidamente produtores de vários países quiseram adquirir os seus direitos para transmissão nacional. Mas havia um obstáculo: a série original havia sido criada com base na realidade americana, tanto social como educativa (currículo). Ou seja, para a transmissão em cada um dos países, seria necessário fazer mais do que uma mera tradução ou dobragem das vozes. Seria preciso produzir novos conteúdos, que estivessem alinhados com o país de emissão, tanto cultural como pedagogicamente. Mais: para produzir conteúdos para ‘Rua Sésamo’, cada produtora nacional teria de adoptar a metodologia CTW ou “Sesame Workshop”, descrita na secção 2 e na figura 1 deste ensaio — ou seja, uma equipa multidisciplinar, com especialistas em educação e investigadores. Em média, as versões nacionais mantinham menos de 50% dos conteúdos originais dobrados, sendo assim indispensável produzir vários novos segmentos adaptados às respectivas realidades nacionais.
Portugal foi um dos países onde ‘Rua Sésamo’ teve uma versão própria. Maria Emília Brederode Santos, actual presidente do Conselho Nacional de Educação, foi quem assumiu funções de direcção pedagógica do programa ‘Rua Sésamo’ e da respectiva revista, entre 1987 e 1997. Numa entrevista recente, assumiu o valor educativo de várias escolhas tomadas pela equipa multidisciplinar na versão portuguesa. Por exemplo, nas personagens, a pensar no role-modeling. O Poupas representava um menino de 5 anos, para facilitar a identificação das crianças com ele. E o Gil era um médico luso-africano, profissão escolhida deliberadamente devido ao seu elevado prestígio social, desta forma quebrando estereótipos sociais e raciais na sociedade portuguesa.
É também da sua autoria um breve estudo sobre o impacto da série infantil na aprendizagem em crianças dos 3 aos 7 anos de idade, no pré-escolar, em Lisboa. Através de indicadores de audiências televisivas, inquéritos aos pais e educadores, e ainda observações às crianças (pré e pós visionamento dos segmentos da série), foi possível fazer uma avaliação de impacto no nosso país. Assim, primeiro, verificou-se que o alcance da série infantil era tremendo — 95% da amostra tinha algum contacto com a série infantil. Segundo, confirmou-se a percepção dos pais sobre a aprendizagem dos filhos: a maioria dos pais sentia que os seus filhos estavam a aprender através do visionamento dos episódios. Terceiro, quanto à avaliação sumativa, as crianças que viam regularmente ‘Rua Sésamo’ demonstravam ganhos (face às restantes crianças) em literacia e numeracia. Ou seja, mesmo que testado a uma pequena escala, os resultados de Portugal estavam alinhados com os dos estudos de grande escala nos EUA: os miúdos aprendiam com a televisão, em particular com as emissões de ‘Rua Sésamo’.
Seis lições da ‘Rua Sésamo’ para a nova “telescola” portuguesa
A iniciativa do Ministério da Educação português, com o #EstudoEmCasa, a nova versão de “telescola”, está a gerar interesse e curiosidade. Ainda bem. Mas importa ser-se claro desde o primeiro momento e gerir as expectativas de professores, alunos e pais: ninguém pode esperar que esta nova “telescola” seja a solução mágica para os problemas do ensino à distância que, nas actuais condições, discutidas neste ensaio, é um fraco substituto do ensino presencial. O objectivo desta iniciativa é coadjuvar os professores, servir de complemento para os alunos que mantêm as actividades através do ensino a distância e, para os que não lhe têm acesso, de garantir um nível mínimo de contacto com conteúdos educativos alinhados com o currículo nacional. Não resolverá tudo, mas ajudará alguns. E isso, por si só, justifica a iniciativa.
Dito isto, olhar para o passado, nomeadamente para um caso de sucesso como ‘Rua Sésamo’, permite retirar algumas lições que ajudarão a iniciativa da RTP e do Ministério da Educação a ser bem-sucedida.
Em primeiro, há que conseguir um equilíbrio entre conteúdo educativo e a forma como este é apresentado em formato televisivo. É naturalmente expectável que todo o conteúdo pedagógico seja articulado por equipas especializadas, no Ministério da Educação. Mas a eficácia na aquisição do conhecimento e das competências, por parte dos alunos, dependerá em grande medida do interesse que as sessões/ episódios terão para os jovens alunos. ‘Rua Sésamo’ era um programa educativo que parecia um programa de entretenimento. A iniciativa do Ministério da Educação, para ser bem-sucedida, tem de ter um apelo estético ou temático, que prenda a atenção dos alunos e os mantenha concentrados no conteúdo substantivo dos segmentos. E isto será particularmente importante para o 1.º ciclo do ensino básico.
Em segundo, deve haver uma preocupação constante em testar o impacto dos segmentos educativos na aprendizagem, face aos objectivos propostos. Não é suficiente emitir esses conteúdos educativos, há que avaliá-los e aperfeiçoá-los. Seria, por isso, uma mais-valia que o Ministério se certificasse do impacto que estes têm junto dos alunos. Sendo uma oferta coordenada pelo Ministério da Educação, seria possível a coordenação da sua implementação com a DGEEC, o IAVE e uma unidade de investigação independente, no sentido de proceder a uma medição de impacto.
Em terceiro, há que reconhecer que é particularmente difícil criar simultânea e eficazmente conteúdos para faixas etárias tão díspares, cobrindo todo o ensino básico. Em ‘Rua Sésamo’, os seus criadores desde logo definiram um público-alvo concreto (crianças entre 3 e 5 anos de idade) e focaram todos os seus esforços em proporcionar-lhes a experiência mais enriquecedora possível. No caso da iniciativa do Ministério da Educação, trata-se de uma emissão de outro tipo de natureza. Mas a opção escolhida de grande abrangência de idades representará um enorme desafio em termos de eficácia e adequação do formato — com pouco tempo semanal por cada ciclo do ensino básico e com o risco de produzir resultados muito díspares entre as idades.
Em quarto, a emissão dos segmentos educativos deve ser abrangente, sim, mas pensada com um cuidado especial para com os alunos mais desfavorecidos — neste caso, não só os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem, mas também aqueles com menos meios em casa para acompanhar o ensino a distância e com menores possibilidades de suporte dos pais no processo de aprendizagem. Ou seja, os alunos que mais precisarão da televisão nestes tempos de ensino a distância. Como é que isso se faz? No momento de lançamento de ‘Rua Sésamo’, uma parte significativa do orçamento foi atribuída ao marketing, com publicidade que visava especialmente essas famílias, que eram o alvo principal dos criadores do programa. É uma boa prática a repetir: a RTP deverá publicitar amplamente esta nova oferta educativa, de forma apelativa e direccionada. Mais: em termos de conteúdo da “telescola”, há que reduzi-lo ao elementar, de forma a não excluir esses alunos. A experiência de ‘Rua Sésamo’ demonstrou que, nesta via televisiva, a repetição sistemática e a simplicidade dos conteúdos foram decisivas para reforçar a confiança das crianças na sua capacidade de aprender e progredir. Portanto, na medida do possível, esta nova “telescola” terá de ser construída sob os mesmos princípios.
Em quinto, não se pode esquecer que a escola é muito mais do que lições de matemática, sendo também um espaço privilegiado de formação pessoal e emocional. Por isso, a existência de conteúdos estruturados para o desenvolvimento de competências sociais não deve ser negligenciada. Sobretudo porque, se olharmos para esta iniciativa do Ministério e da RTP como uma forma de levar a escola à residência de alunos que não têm outros meios de lhe aceder, há que cobrir as várias competências da escola, tanto as cognitivas como as sociais. Uma forma de o fazer, por exemplo, seria aproveitar os intervalos entre “aulas” da grelha do canal para difundir conteúdos desse tipo.
Em sexto, há que apostar no longo prazo. É um facto que, hoje, vive-se uma necessidade imediata. Mas as respostas não devem ser só planeadas com base no imediato e devem ter maior alcance. A oferta complementar #EstudoEmCasa tem potencial para ser mais do que uma solução temporária e deve ser o primeiro passo na construção de conteúdos educativos para permanecerem à disponibilidade da comunidade educativa. Além disso, quanto maior for o tempo de exposição dos alunos a estes conteúdos, maior a probabilidade de terem um impacto positivo. Portanto, há que encarar esta oferta complementar como uma aposta no futuro, e não somente uma resposta ao presente.