Nesse aspeto, está de acordo com o Governo: o pacote anti-inflação de 2,4 mil milhões de euros apresentado pelo Executivo para conter os efeitos sobre as famílias não deverá pôr em causa a meta do défice, de 1,9% do PIB. Mas Rui Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), não isenta o novo plano de críticas. Desde logo porque não concorda com mexidas nos impostos, como aquelas que o Executivo quer manter no ISP ou fazer na redução de uma parcela do IVA da eletricidade , ou limites nas rendas.
Em entrevista ao Observador, defende que é preferível atribuir cheques porque mais facilmente ajudam os consumidores a ajustar o consumo. Mas alerta que o valor não deve ser demasiado generoso, sob o risco de poder contrariar a política monetária e dar gás à inflação — um problema que 125 euros não trazem, um montante “tão pequeno face à perda do salário real”. Já a redução da parcela do IVA da luz a 13% para 6% é uma medida com um elevado “custo macroeconómico para o país para um benefício praticamente nulo das famílias”. O Governo contabilizou em 90 milhões de euros a perda de receita fiscal com esta medida até dezembro de 2023.
Na mesma entrevista, Rui Baleiras avisa ainda para os riscos de uma recessão no horizonte, que a acontecer poderá ser já em 2023. Perante esses receios, e a incerteza sobre a evolução futura da Covid-19, recomenda ao Governo que é “prudente” guardar dinheiro para um novo layoff. “É natural que o abrandamento da atividade económica — não sei se vai chegar ao ponto do produto cair no próximo ano face ao produto de 2022 — deixe algumas empresas com excesso de trabalhadores e seria bom que essas pessoas não fossem despedidas”, defende.
O pacote anti-inflação anunciado pelo Governo tem alguns apoios às famílias. Ainda não conhecemos os cheques para as empresas. Mas, segundo o ministro das Finanças, houve uma preocupação em preservar as contas públicas e de alcançar o objetivo de défice orçamental de 1,9%. Fez bem o Governo em ter esta preocupação com o défice e também com a dívida pública?
Tem que ter. A sustentabilidade das finanças públicas é uma condição necessária para o Estado ter políticas públicas nas várias áreas da governação. Não é um objetivo em si, mas é uma condição necessária para que as políticas públicas possam funcionar eficazmente e, portanto, é natural que o Governo seja prudente no envelope financeiro. É engraçado que, na terça-feira, no Financial Times o tema de destaque por volta da hora do almoço era uma fotografia do primeiro-ministro António Costa com o título: ‘pacote anti inflação do governo português assegura o cumprimento dos objetivos orçamentais’. É aquilo que a imprensa internacional financeira destaca. Isso é muito importante para a credibilidade da política orçamental nos mercados financeiros.
A UTAO já fez as contas a este pacote? Mesmo com estas medidas, Fernando Medina ainda vai conseguir fazer um brilharete nas contas públicas?
Nós não tivemos tempo nem informação para fazer essas contas, e, portanto, nem sei se esses 2.400 milhões são ou não são, se vão cair todos nas contas de 2022, se são em contabilidade pública ou contabilidade nacional, mas eu acho que isso é o menos importante. Eu já tinha afirmado, com base no desempenho do primeiro semestre, que em caso de não haver medidas novas — se não houvesse este pacote nem provavelmente o que virá para a semana — havia uma elevada probabilidade de as contas encerrarem com excedente. Julgo que não serão estes 2.400 milhões que impedirão esse superávite, a menos que o último trimestre do ano, em termos macroeconómicos, corra mal. Acho que continuará a ser possível, e isso é mais prudente afirmar, que o saldo não será inferior a menos 1,9% do produto. Embora dependa do que se passar daqui para a frente, do próximo pacote de medidas e da dimensão da desaceleração da economia no último trimestre.
O cenário macroeconómico pode deteriorar-se no segundo semestre já que Portugal estagnou no segundo trimestre?
No quarto trimestre penso que sim. Até diria que, em certo sentido, é salutar porque poderá ajudar a política monetária, que vai ser dolorosa para as pessoas — temos que ter consciência disso, que é infelizmente um mal necessário –, pois quanto mais depressa a procura agregada abrandar mais depressa nós conseguiremos estabilizar os preços no tal intervalo de 2%, que é aquilo que se pretende a médio prazo.
Mas vê riscos de recessão?
Em 2022 não, não. Não vamos fechar as contas anuais de 2022 com recessão.
E em 2023?
Em 2023 é possível. Impossível não é. Depende de muitas coisas.
BCE sobe juros (enquanto é tempo) e admite recessão em 2023, num cenário “muito negro”
Devido à atuação dos bancos centrais? Ou seja, a política de subida de taxas de juro dos bancos centrais vai levar uma recessão?
É preciso perceber que este fenómeno inflacionário que estamos a viver no mundo há praticamente cinco trimestres tem duas origens na procura agregada e tem umas cinco ou seis do lado da oferta. Já há estudos empíricos, nomeadamente de alguns bancos de reservas federais nos Estados Unidos para a economia norte-americana, que mostram que os choques contracionistas do lado da oferta são os que mais explicam a subida dos preços junto do consumidor norte-americano. E os choques do lado da oferta levam à desaceleração do crescimento económico e a uma subida dos preços. E alguns destes choques são estruturais, não vão desaparecer.
Como por exemplo?
Um é o choque energético porque isto decorre de uma aposta estratégica muito forte da União Europeia seguida por outros países, nomeadamente agora pela Administração norte-americana, de fazer a transição energética, dar ao planeta menos emissões de gases com efeito de estufa. E é por isso que os preços dos combustíveis, das fontes de energia primária de natureza fóssil, já estavam a subir antes, não foi agora com a guerra na Ucrânia que isso começou. E vai continuar. Quanto mais depressa conseguirmos, enquanto consumidores e empresas, incluindo as que produzem energia, dirigir-nos para fontes renováveis — ou que, pelo menos, de menores emissões de gases com efeito de estufa –, mais depressa essa inflação nos preços da energia se reduzirá. Mas está aí para durar. E há outra, que tem sido pouco falada, que tem a ver com o mercado de trabalho e com a oferta de trabalho. Nós já estávamos a sentir antes da pandemia, nomeadamente na economia europeia, os efeitos dos cabelos grisalhos, ou seja, do envelhecimento da população, com uma diminuição tendencial da oferta do número de indivíduos disponíveis com idade para trabalhar. Aliás, mesmo com esta retoma fortíssima que houve viu-se este ano a falta de pessoal disponível para trabalhar em inúmeras áreas e a importação significativa de pessoas de outros continentes para exercerem essas funções. Esse também é um fenómeno demográfico de longo prazo que está aí e a política monetária não consegue combater nem a política orçamental.
É “prudente” guardar dinheiro para novo layoff
Acredita que a inflação já atingiu o pico, vai abrandar?
Não sou bruxo… acho que as duas coisas podem suceder. Se não houver novos choques contracionistas do lado da oferta julgo que poderemos, no quarto trimestre, entrar numa trajetória descendente progressiva, mas lenta. Isto é o cenário otimista. O cenário pessimista é haver uma continuação dos choques, ou mais dos mesmos, por exemplo, o choque com origem russa na oferta de cereais, de fuelóleo, de diesel, de petróleo, de gás natural e outras coisas que não sabemos — por exemplo eu não sei se não vamos ter uma nova vaga de Covid-19. Há aqui muita incerteza e é por isso que as pessoas e os governos e os bancos centrais têm de ser prudentes.
E os governos também na sua política orçamental?
Com certeza. Não podem pôr a carne toda no assador no princípio e depois como é?
O governo não pôs a carne toda no assador neste pacote?
Não pôs e eu acho que devemos preparar-nos — não estou a dizer que isso vá acontecer — mas acho que é prudente pôr dinheiro de parte para um novo regime de layoff. Foi uma medida que se mostrou muito positiva durante a pandemia em Portugal e noutros países porque manteve ligados os trabalhadores às entidades empregadoras e permitiu uma retoma melhor sucedida do que se tivesse o desemprego escalado. É natural que o abrandamento da atividade económica — não sei se vai chegar ao ponto do produto cair no próximo ano face ao produto de 2022 — deixe algumas empresas com excesso de trabalhadores e seria bom que essas pessoas não fossem despedidas. E aí eu acho que a política pública de natureza orçamental pode dar um jeito. Digo mais, aquilo que a política orçamental pode fazer em matéria de inflação não é combater as causas da inflação, infelizmente não é capaz, o que pode fazer é mitigar os efeitos negativos no poder de compra das famílias. Acho que a política deve focar-se em atribuir rendimento às famílias que são os consumidores. Não é dar subsídios às empresas.
Mas o layoff não é um subsídio às empresas?
É a exceção. A subsidiação às empresas deve ser a exceção e não a regra. A melhor forma de nós apoiarmos as empresas é manter a procura final com capacidade de compra. Se uma empresa tem um aumento de custos mas consegue continuar a vender, porque passa parte desse aumento de custos para os consumidores, a empresa não fica muito mal. O consumidor é que não tem a quem passar, a quem repercutir esse aumento dos seus custos, que é a sua despesa de consumo. Aquilo que se conseguir repor no rendimento disponível líquido de impostos para mitigar a erosão do poder de compra que o imposto inflação está a provocar é positivo, mas tem de ser com conta, peso e medida porque não podemos ter a ilusão de que a política orçamental, mesmo que tivesse recursos ilimitados que não tem, devesse compensar a 100% a perda do poder de compra das famílias. Isso seria uma contradição com a política monetária a quem nós estamos a pedir que faça exatamente o contrário, que é que retire poder de compra às famílias e também às empresas através da subida das taxas de juro.
É melhor distribuir dinheiro às famílias do que descer o IVA
Neste pacote há cheques para quase todas as famílias e para todas as crianças. As medidas deviam ter sido mais direcionadas para os mais vulneráveis em vez de ser dado o mesmo apoio de 125 euros a uma pessoa que ganha um salário mínimo e a outra ganha o triplo desse valor?
O pacote ‘famílias primeiro’ tem atributos fortes e tem características menos positivas, e que deverão ser tomadas em conta não só pela oposição quando reformular as suas propostas como também pelo Governo numa próxima visita a este tema. Como muito positivo destaco a preocupação de abrangência destas medidas, a preocupação de acolher, no leque de beneficiários, cidadãos que as políticas públicas de redistribuição costumam ignorar, que são as pessoas com rendimentos superiores ao salário médio ou à pensão média. Tipicamente as medidas de redistribuição em Portugal são muito focadas a quem ganha menos de 1.000 euros, a quem tem pensões de 800 euros. E acho que é positivo esta preocupação de abrangência porque contribuiu para passar a ideia de que os menos pobres não podem ser só contribuintes.
Não seria preferível os apoios serem em sede fiscal nomeadamente nas tabelas de retenção?
Foi a primeira vez que em Portugal se assumiu com clareza a atribuição de transferências de rendimento incondicionais, isto é, a pessoa recebe o dinheiro e tem a liberdade de o aplicar como quiser, sem que o Estado condicione essa escolha das pessoas.
Uma espécie de rendimento básico universal?
Os economistas chamam transferência lump sum, que, no fundo, é uma transferência bancária para a conta das pessoas, que é a forma mais eficaz, do ponto de vista económico, de passar dinheiro dos contribuintes para o orçamento das famílias e é por isso que eu, em geral, não sou favorável à passagem de rendimento para as famílias através do sistema fiscal para combater a inflação.
Entregar os cheques não pode contribuir para aumentar a inflação?
Qualquer uma das outras medidas que estão neste pacote têm esse efeito e é por isso que não podemos exagerar no montante. Acho que o montante, em si, é tão pequeno face à perda que já aconteceu de salário real, de pensão real, de dividendos reais, de apoios sociais reais que não tem esse problema. Agora é evidente que não se pode multiplicar isto por 10, isso não, porque então aí estamos a tornar ainda mais difícil e cara a política monetária. Se o objetivo do Estado for atribuir rendimento às famílias, a melhor forma de o fazer é através de um cheque, através de uma transferência para a conta bancária. Passá-lo através de uma redução na tributação indireta, como por exemplo baixar taxas de IVA ou de ISP, é pior. Fazê-lo através da imposição de tetos a determinados preços, como as rendas, como as comissões bancárias, é pior.
Qual é a diferença?
Imaginem uma pessoa que todos os meses compra maçãs e laranjas. Antes da inflação as laranjas custavam um euro o quilo e a pessoa comprava por mês 20 quilos. Agora imaginem que as laranjas subiram 30% para 1,30 euros. Para comprar o mesmo cabaz vai precisar de mais 6 euros por mês. Imaginem que essa pessoa tem um amigo chamado Estado que lhe diz assim ‘olha eu vou compensar-te, eu vou dar-te 6 euros, vou tirar 6 euros à generalidade dos contribuintes e vou-te dar’. Se essa pessoa receber esse dinheiro sob a forma de um subsídio, por exemplo no IVA, que faça o preço regressar a um euro, essa pessoa fica tão bem como estava antes. Agora imaginem que a mesma despesa pública, 6 euros, é depositada na conta bancária desse indivíduo que agarra no dinheiro e tem a opção de comprar exatamente o mesmo cabaz e a mesma quantidade de laranjas. Ou seja, dar um cheque bancário é, pelo menos, tão bom como uma redução do imposto indireto, mas esta pessoa pode pensar que pode ficar melhor. Se a laranja ficou mais cara significa que as maçãs ficaram mais baratas relativamente às laranjas, então porque é que eu não reduzo as minhas compras mensais de 20 kg de laranjas para 18 e compro um bocadinho mais de maçãs? Eu fico melhor estritamente com uma transferência bancária do que com uma redução no IVA.
Ajustando o consumo?
Exatamente. E isso conduz-me a outra mensagem muito importante. O combate aos efeitos da inflação e à própria inflação tem, em primeiro lugar, que ser feito por todos e cada um de nós, enquanto consumidores e enquanto empresas.
Disse que tinha visto neste pacote pontos positivos e pontos negativos…
Aqueles subsídios sob a forma de tetos à formação de preços ou sob a forma de subsídios via impostos indiretos são maus. Acho que há medidas a mais.
Quais? Nos combustíveis?
Sim nos combustíveis ou na eletricidade.
Não se devia mexer nesses impostos?
Para já não são todos os consumidores de eletricidade que têm esse escalão de consumo [100 kwh] a 13%. Por cada quilowatts/hora fica na casa dos 18 ou 20 cêntimos…
O impacto é pouco para a medida que é?
Claro. Estamos a falar de menos de dois euros.
Considera que devia haver uma medida com impacto mais lato ou que não devia haver sequer essa medida?
Não devia haver medida que atue sobre os tarifários. É preferível darem esse dinheiro, depositarem esse dinheiro na conta bancária. A trabalheira que é operacionalizar uma medida como esta, que vai obrigar as empresas e o Estado a gastar em recursos administrativos para dar um euro ou dois euros no fim do mês. Esta é uma característica, não é só deste pacote, é de todos, e de todos os governos. Há uma ânsia de apresentar medidas sobretudo nas épocas do orçamento ou nas crises como se quanto mais medidas colocarmos no papel mais eficazes estamos a ser. Errado. É das tais coisas que aquilo que parece não é. É preferível concentrar as medidas em poucas e com impacto. Esta da eletricidade, embora seja risível para o beneficiário, tem um custo macroeconómico apreciável, se calhar serão umas dezenas de milhões de euros. Nós estamos a ter um custo macroeconómico para o país para um benefício praticamente nulo das famílias. Todos os anos, em todas as legislaturas, e em todos os partidos, há muito a mania de ir a tudo o que mexe e que está na comunicação social, mas esquecemo-nos de fazer uma análise custo-benefício às medidas.
Com decisão sobre atualização de pensões, Estado “está a dizer não acreditem em mim”
Uma outra medida no pacote anti-inflação, que tem sido a mais polémica, foi a da contenção das atualizações automáticas das pensões em janeiro que o governo já justificou com a sustentabilidade da segurança social. Entende esse argumento?
Eu entendo esse argumento, e acho que é bom termos essa preocupação. A sustentabilidade da segurança social tem de ser financeira, mas também tem que ser social, e não é no seio de um pacote anti-inflação que nós vamos discutir questões estruturantes. Há um grupo de trabalho nomeado para estudar o assunto e até digo mais: nós em Portugal precisamos de uma revisão conjunta da tributação do trabalho, e isto é IRS, certas formas de IRC que incidem sobre o trabalho, e também contribuições para a segurança social. Temos uma carga fiscal tremenda, excessiva, sobre o trabalho, que desincentiva o trabalho, que incentiva a emigração, que penaliza o talento. Mas isso não é no contexto do combate à inflação…
É no acordo de rendimentos?
Não estou nessa mesa. O que lhe digo é que precisamos de uma reforma profunda e conjunta da tributação do trabalho e isto implica olhar para o IRS, para o IRC e para as contribuições para a segurança social.
Diversificar as fontes de financiamento da segurança social e porventura reduzir a tributação sobre os rendimentos do trabalho, é isso?
Sim, em linhas gerais é isso. E temos que discutir com objetividade o que é a progressividade na tributação do rendimento. Em Portugal, infelizmente, quando mexemos nos códigos fiscais é, na prática, essencialmente — embora isso possa não ser assumido oficialmente — para dar mais receita ao Estado, porque é necessário esse dinheiro algures para outras despesas, para outras políticas públicas. E temos muito pouca reflexão económica sobre os impostos, os efeitos dos impostos na economia, as externalidades e reflexão sobre como é que as podemos corrigir, como é que podemos promover o desenvolvimento e a competitividade. A competitividade é um problema muito mais sério para Portugal do que a inflação. A inflação vai resolver-se, é evidente que vai doer a todos nós enquanto aqui estiver, mas a falta de competitividade da economia portuguesa está há dezenas de anos a atrasar o nosso desenvolvimento e estamos a desperdiçar talento que formamos e não aproveitamos.
Nesse capítulo da sustentabilidade da segurança social considera que o Governo fez bem em não atualizar as pensões em 2023 com base na inflação de 8%?
Isso é outra questão. O Governo terá porventura subavaliado um efeito perverso desta medida. Devo dizer que infelizmente e isso é muito comum quando se faz política económica — e portanto não é um reparo a este Governo, é a todos e também às oposições — normalmente desenham-se medidas baseadas no feeling do que parece ser. Só que em economia muitas vezes aquilo que parece não é. Esta medida das reformas tem, a meu ver, um sério problema de incentivos para os agentes — o Estado está a dizer não acreditem em mim.
Por mudar as regras? Não há previsibilidade?
Claro. A grande vantagem desta fórmula introduzida na lei de 2006 foi acabar com a arbitrariedade das decisões anuais sobre os aumentos das pensões. Isso era um must. Acontecia no outono, infelizmente em cima da feitura do Orçamento, quando nunca deveria ser, e foi uma das causas recorrentes dos desequilíbrios orçamentais em Portugal porque os aumentos eram tipicamente maiores em ano de eleições. E isto é mau. Esta fórmula veio trazer estabilidade. Agora, dado o estado da economia, crescimento do PIB real e da inflação, de 2006 até agora nunca, até 2023, os pensionistas puderam beneficiar daquela situação mais favorável: da taxa de crescimento real acima de 3% e da taxa de inflação acima dos 2%. Vejam o tiro na confiança que o Estado está a dar a si próprio. No primeiro ano em que isto ia compensar, depois de tantos sacrifícios feitos nas pensões ao longo dos últimos 12 anos, não há.
O Governo devia rever a fórmula?
O sistema político deve refletir sobre este tipo de efeitos perversos porque, no fundo, os jovens, que são aqueles que têm mais tempo para se adaptar às regras do regime contributivo, poderão começar a pensar: ‘será que vale a pena? Se eu tiver oportunidade de fugir aos descontos para a segurança social se calhar vale a pena…’ É uma questão que eu julgava que estava enterrada há 12 anos em Portugal, porque fez-se um caminho muito positivo de trazer para a segurança social profissionais que estavam fora e de acabar com o conluio implícito entre empregadores e empregados para fugir. Medidas deste tipo contribuem exatamente para destruir a confiança das pessoas na segurança social. E o mesmo se passa com as rendas. É outro tiro no pé.
Há uma mudança de regras a meio do jogo?
Claro. A medida [das rendas] é bem intencionada porque seria um aumento de 5% quando nunca foi mais do que um ou 2%. Mas são as regras do jogo. As partes, senhorios e inquilinos, celebraram contratos convencidos de que essas eram as regras do jogo. Se as regras mudam a meio, o que vai acontecer no futuro? Se calhar os senhorios não vão estar disponíveis para arrendar por mais de um ano, se calhar vão exigir rendas iniciais muito mais elevadas do que exigiriam com o enquadramento que tínhamos até domingo passado, se calhar vão introduzir cláusulas nos contratos de arrendamento de atualização predefinida, afastando-se da portaria do Governo. Nas pensões, quando se diz que irão subir muito em 2023 por causa destas percentagens de aumento em 2023… isso era one shot. O próximo ano já não vai ter infelizmente taxas de crescimento real dessa ordem de grandeza. Nos outros anos para trás que a norma esteve em vigor a segurança social ganhou e os pensionistas perderam. E agora por causa de um ano vamos mudar uma regra estrutural?
Teletrabalho na função pública devia ser incentivado
Em setembro vão começar as negociações sobre aumentos salariais da função pública para 2023. Quão longe é que deve ir o Governo, sendo que os sindicatos têm pedido aumentos pelo menos ao nível da inflação?
Há uma medida que não custa dinheiro ao Estado e ajudava muito os trabalhadores da função pública a suavizar o efeito do imposto inflação sobre os seus rendimentos. Sabe o que é? Teletrabalho. Se para todos os trabalhadores que possam exercer as suas funções remotamente isso for incentivado, ou seja, se houver instruções aos serviços para que voltem a colocar as pessoas em teletrabalho, as pessoas vão poupar em viagens, em despesas de deslocação, em despesas de alimentação, e portanto isso é uma grande ajuda ao orçamento familiar e há imensos exemplos de aumento de produtividade no setor público quando as funções foram desempenhadas [em teletrabalho]. É preciso é haver uma mudança no chip, na mentalidade da gestão de recursos humanos, que infelizmente está demasiado ligada à observação física do trabalhador.
Poder-se-ia poupar dinheiro com teletrabalho na função pública?
Com certeza. E o Estado pouparia também, gastaria menos eletricidade, gastaria menos água, e as pessoas ficavam mais felizes, penso que é um negócio win-win.
E em relação às negociações salariais?
Isso [teletrabalho] pode ser incorporado nas negociações salariais. Os sindicatos porventura aceitariam uma aumento dos salários menor em troca de uma poupança de custos dos trabalhadores por via do teletrabalho. O Estado é o garante da solvabilidade das finanças públicas, mas o Estado também é empresário, digamos assim, ou patrão. As duas funções têm de ser compatibilizadas. Infelizmente, em matéria de administração pública, o Estado tem sido mais controlador das finanças públicas do que gestor de recursos humanos.
Apesar das críticas da UTAO, processo orçamental vai ficar na mesma este ano. “Até poderá ser pior”
Tem sido muito crítico sobre o processo de elaboração dos orçamentos. Vai ser diferente este ano?
Infelizmente, não. Não vai ser diferente porque as regras para fazer os orçamentos do Estado, para os negociar e fazê-los aprovar na Assembleia da República são as mesmas de há décadas. Não acho que vá ser diferente, até poderá ser pior.
Porquê?
Por causa do contexto de inflação que temos e, portanto, se calhar, vamos também ter uma inflação nas medidas que o Governo irá trazer em outubro e que os partidos na Assembleia da República irão propor através de alterações ao Orçamento de Estado. Vamos estar na mesma situação caótica e que tem objetivamente, como a UTAO demonstrou no diagnóstico que fez em março deste ano, custos para o desenvolvimento económico do país.
Deveria haver um limite às propostas de alteração que os partidos podem apresentar?
Esse é um aspeto negativo do processo legislativo orçamental, que é o de haver um número excessivo de propostas de alteração. Temos duas soluções: aquela que propusemos é uma solução de compromisso, mas eu pessoalmente até preferia uma outra que era a do Orçamento do Estado não ter medidas de política.
Como? Teriam de ser apresentadas antes?
Uma lei do Orçamento do Estado deve servir exclusivamente para possibilitar a execução do Orçamento do Estado e portanto [só] precisa de estabelecer tetos à despesa em cada uma das áreas da governação, teto ao endividamento das administrações públicas e um teto para transferências dos serviços do Estado para fora das administrações públicas. Em geral, não precisa mais do que isso. O que é preciso, depois, é que os mapas contabilísticos — que são um anexo também votado na Assembleia da República — reflitam com transparência as medidas de política que se sabe que vão ser executadas. Não faz sentido aprovar medidas de política que vão custar dinheiro depois de o Orçamento já estar feito, e é isso que acontece. A proposta de lei entra na Assembleia da República a 10 de outubro com os mapas da despesa máxima que cada serviço pode realizar e sai de lá com centenas de medidas de política, que não estavam previstas.
Agora com uma maioria absoluta já não acontecerá isso.
Acontece menos, mas, para minha surpresa que acompanho isto há muitos anos, neste orçamento de maio houve 1.300 propostas de alteração — o pico foi no ano anterior no Orçamento para 2021 com 1.547 [proposta de alteração] — e foram aprovadas umas 80.
Mas muitas não alteravam os mapas, eram aprovação para estudos…
Sim. Termos uma maioria estável para quatro anos é a conjuntura política ideal para se rever este modelo.
Já houve alterações ao processo de elaboração orçamental, mas nenhuma das propostas da UTAO foi acolhida.
Pelo contrário. Aquilo que se fez — foi aprovado a correr em final de abril — foi uma alteração à lei de enquadramento orçamental. Esta lei é como a Constituição das finanças públicas e alterou-se essa Constituição em menos de uma semana, sem estudos prévios. A Assembleia da República dedicou-lhe uma hora e ainda assim surgiram propostas dos partidos nas 48 horas anteriores! O que se fez foi retirar da lei os resquícios que ainda havia de haver regras orçamentais de médio prazo. Neste momento vale tudo. Não há tetos à despesa de médio prazo. O que quer dizer que a qualquer dia do ano a Assembleia da República pode aprovar aumentos à despesa pública. Foi um retrocesso, infelizmente. O nosso estudo está disponível. Não tenho a pretensão de estarem lá as melhores medidas, mas até agora não vi ninguém desmentir o diagnóstico e a necessidade de se reagir porque é de facto uma reforma estrutural e esta é daquelas que não custa dinheiro. É preciso apenas vontade política e mudar o quadro mental sobre a forma como se faz o orçamento. Aquilo que é proposto não diminui em nada a capacidade de intervenção política das oposições, o que dá é mais seriedade e rigor às contas do orçamento.
Está à espera para 2023 de um orçamento expansionista ou contracionista?
A política orçamental não tem capacidade nem deve contrariar a retirada de rendimento que a política monetária vai fazer e vai acentuar nos próximos meses e no próximo ano. Seria um erro pretender uma política orçamental expansionista porque se o nosso problema é excesso de procura então não podemos pôr mais procura no mercado, temos é de retirar ou incentivar o aumento da oferta. Mas infelizmente as causas principais dos tais choques contracionistas não estão nas mãos do Governo português.
O Governo já não devia estar a promover mais investimento público? Temos um PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) que deveria estar já no terreno, mas não devia estar já também a aparecer nas contas públicas?
Uma das causas para a inflação que estamos a viver na Europa e no mundo industrializado é um choque expansionista da procura causado pelos Estados e pelas políticas orçamentais. O plano orçamental europeu — o NextGenerationEU — e o plano da Administração Biden foram desenhados e dimensionados quando ainda estávamos em pandemia e havia muito medo sobre o pós pandemia. O que está a contribuir para a subida de preços porque todos os países estão sincronizados no tempo e a comprar nos mesmos mercados, todos querem a transição climática, todos querem mais digitalização… os chips sobem de preço e a pressão sobre as fontes de energia e a transição para as renováveis é enorme. Aliás, precisamos de clareza na política ambiental, não podemos estar, por um lado, a dizer às pessoas que têm que descarbonizar e, por outro lado, a incentivar [o consumo] através de descontos nos preços ou nos impostos sobre os produtos energéticos. Quando comparada com o drama das alterações climáticas a inflação é um problemazinho, vai fazer doer muita gente durante algum tempo, mas não vai matar ninguém. E as alterações climáticas vão matar muita gente, é a própria sobrevivência da espécie humana que está em causa a longo prazo.
As cativações continuam a ser utilizadas e vão continuar. É um instrumento válido de política orçamental?
Num mundo ideal é péssimo. As cativações fazem parte de um paradigma, com o qual eu não me identifico, de gestão das finanças públicas hiper centralizado no Ministério das Finanças que desresponsabiliza os ministros setoriais pela questão orçamental e não confia nos ministérios setoriais para ajudar a cumprir os resultados. Precisamos de um quadro orçamental diferente.
Porquê?
O que nós precisamos é que o Ministério das Finanças se comporte mais como um gestor das finanças públicas do que como um controlador ou racionador da tesouraria das administrações pública. Nós precisamos que o Ministério das Finanças permita aos serviços e às empresas públicas executarem os orçamentos que o Governo propõe à Assembleia da República e que a Assembleia aprova. Não faz sentido haver um conjunto de normas legais, seja na lei do orçamento ou num decreto-lei de execução orçamental, que impedem os serviços de, pela sua autonomia, poderem executar a despesa em recursos humanos e em aquisições de serviços que foram aprovadas pela Assembleia da República. E ter de haver autorizações avulsas de dois membros do governo no caso de comissões de serviços ou de três membros do governo no caso de recursos humanos. Isto é um disparate. Desresponsabiliza as direções gerais, as administrações das empresas e desmotiva toda a gente. Infelizmente o que nós estamos a ver nos hospitais, em particular nas urgências, é a ponta do iceberg deste edifício, a demissão deste papel do Estado de gestor das finanças públicas e de garante da sustentabilidade, sendo excessivamente centralizador e não confiar nas partes. Devemos evoluir para um modelo em que se descentralizam objetivos de responsabilidade financeira e que os objetivos das políticas públicas sejam mensuráveis ou observáveis por todos e que se peçam responsabilidades no fim. Temos que saber conjugar descentralização com responsabilização.
Como é que viu a decisão de o secretário de Estado da Energia ter de controlar as faturas de eletricidade?
Coitado… nem ele imaginaria que ia passar o dia e a noite a controlar. É evidente que era uma medida que era inexequível e viu-se logo, na semana seguinte, como é que essa orientação ia ser cumprida, passando para as administrações. Num país a sério isso é uma obrigação natural do gestor, o de verificar a exatidão das faturas que os fornecedores emitem. Num país a sério, não deveria ser preciso haver uma ordem do poder político para isso, mas, infelizmente, — esse é um pecado estrutural que não começou com este governo nem com esta maioria nem com o PS — o nosso sistema político acha que se deve intrometer em tudo o que é matéria de decisão dos serviços. Há uma cultura de desconfiança generalizada entre as instituições e isto atrasa-nos, é mau. A expressão mais grave são as pessoas que não são atendidas a tempo e horas e com qualidade no SNS, que devia ser a política bandeira do país. Aquilo que está a acontecer no SNS e nas urgências está também a acontecer em inúmeros serviços da administração pública. Até os reguladores setoriais se queixam do excesso de intromissão política nas suas decisões de gestão e da incapacidade de poderem gerir pessoas e orçamento de uma forma profissional e com responsabilidade.
UTAO reclama estatutos próprios
Outra crítica que tem feito tem a ver com a disponibilização de informação pelas finanças e até disse que piorou nos últimos dois anos. O que é que piorou?
Essa minha afirmação já tem algum tempo, mas senti que piorou de 2019, 2020 até ao início deste ano 2022.
Melhorou agora com o novo ministro?
Melhorou com o novo Governo. Vamos ver se é para continuar ou não. Mas estamos a falar de coisas tão básicas quanto essenciais a uma entidade independente do poder político para poder apreciar as contas públicas que é, por exemplo, o acesso ao ficheiro Excel com os quadros do relatório do Ministério das Finanças que acompanha a proposta de Orçamento do Estado. Não faz sentido termos de andar a dividir centenas e milhares de milhões de euros pelo valor do PIB à mão, com os números que vêm arredondados ao milhão de euros, na melhor das situações, no papel, no PDF. Isto é um exemplo caricato. Deixou de nos ser dado em tempo útil, vem depois de fazermos o primeiro relatório, e, além disso, havia perguntas que fazemos com dúvidas, às vezes até gatos que encontramos no relatório, cuja resposta não vem ou vem fora de horas.
Porque é que acha que isso acontece?
A pergunta deve ser feita ao Ministério das Finanças. Sinceramente isto aconteceu uma vez, duas vezes, à terceira vez acho que há aqui um problema que não é meramente técnico.
Não gostam que a UTAO seja independente?
Talvez não… talvez por isso também é que até agora não houve uma reação do poder político ao pedido que a UTAO fez publicamente e já o tinha feito em privado na Assembleia da República para que lhe fossem atribuídos estatutos. Aliás o Conselho das Finanças Públicas que tem, desse ponto de vista, um enquadramento orgânico mais robusto também se queixa de falta de informação. A falta de acesso é um elemento que diminui, de facto, a independência, porque ficamos limitados na capacidade de realizar análise própria.
É por isso que diz que a sobrevivência da UTAO pode estar ameaçada?
Não temos salvaguardada a nossa independência. Basta dizer que a posição do líder da UTAO não existe. Se forem ver os documentos da Assembleia da República que falam sobre a UTAO não tem um dirigente. Eu posso ser demitido de hoje para amanhã. Também não há regras que estabeleçam condições mínimas de competência profissional para ser coordenador da UTAO. Depois temos um outro problema sério nos recursos humanos. Temos de viver com o estatuto do funcionário parlamentar que funciona muito bem para o tipo de competências profissionais que a generalidade dos serviços da administração pública e da Assembleia da República tem.
Que efeitos é que isso tem?
Estou à vontade para dizer isto porque ajudei a criar o Conselho das Finanças Públicas e conduzi várias operações de recrutamento, e sei que o nosso mercado relevante não está na generalidade da administração pública, mas sim em departamentos de estudos de bancos centrais, da banca comercial, na autoridade estatística, em organizações internacionais, nalguns serviços do Ministério das finanças como DGO, GPEARI, IGCP. Estando sob alçada do estatuto do funcionário parlamentar, as pessoas que vamos conseguindo contratar vêm com um salário pré-determinado, mas nenhuma empresa vai ao mercado sem ter uma palavra sobre o salário. Depois temos outra situação em que os funcionários da Assembleia da República têm uma progressão salarial muito mais rápida do que os outros. As regras de promoção são diferentes dos que são funcionários e dos outros. Isto não faz sentido porque dificulta-me ir ao mercado recrutar talentos. reter talento e motivar.
Quantas pessoas tem neste momento a UTAO?
Sou eu mais quatro técnicos analistas. É absolutamente redutor e, portanto, nós temos o risco de fechar se não nos derem os estatutos novos com, pelo menos, algumas das características que o nosso documento propõe justificadamente. Há um outro aspeto dos estatutos que tem a ver com a nossa área de intervenção.
Como assim?
O país precisa desesperadamente que, na Assembleia da República, os deputados sejam aconselhados em matéria de economia dos impostos. A Assembleia da República tem um papel fundamental em toda a legislação fiscal neste país. Em Portugal aprovamos centenas de medidas de política na Assembleia da República todos os anos, sem nenhuma análise técnica. Para já, centenas é demasiado e esse é também um outro defeito estrutural que nós temos — legislamos por tudo e por nada–, mas ainda por cima legislamos sob um véu de ignorância. Temos centenas e centenas de privilégios fiscais em vigor e praticamente todos os anos há alguns que vêm à Assembleia para ser renovados e a decisão é tomada sem avaliação, sem se saber se os objetivos financeiros e extra financeiros subjacentes à criação desse benefício fiscal foram atingidos e se as causas ou as razões que determinaram a sua criação original continuam a justificar a sua existência. Isto é aprovado apenas muitas vezes na base do feeling e da pressão dos interessados. Os deputados teriam o seu poder de decisão reforçado se pudessem dispor de um apoio especializado na UTAO para esta matéria. Uma das propostas que eu assinei para esses futuros estatutos da UTAO é o de se criar uma unidade de assessoria económica em matéria de impostos. Sendo um mercado tão pequeno de especialistas nesta matéria faz-me confusão que se pense até em criar uma unidade — ainda por cima chamada também da unidade técnica que eu ainda não sei aonde é que vai funcionar — para análise fiscal, quando o que nós precisamos é de análises técnicas competentes independentes. E, se os recursos são escassos, porque é que não juntamos à UTAO?
Não foram chamados para essa unidade técnica de política fiscal?
Pelas autoridades portuguesas não, mas o departamento de assuntos orçamentais do FMI há cerca de dois anos realizou uma missão no sentido de aconselhar o governo português sobre o que fazer em matéria de benefícios fiscais e quis falar comigo, mas depois disso não sei mais nada. O nosso documento é público há seis meses e silêncio. O que me faz pena é que, para quem nós trabalhamos diretamente, que são os deputados da comissão de orçamento e finanças, é matéria que lhes interessa, devia interessar.
Por isso estranhou este anúncio do Governo de criação desta unidade técnica?
Não fiquei totalmente surpreendido, mas achava que, pelo menos, deveriam ver como é que se podia partilhar recursos.
Mas não vai ser independente?
Não sei. Não tenho informação sobre o que vai ser, não sei se vai ser uma unidade dentro da AT (Autoridade Tributária), se é uma nova direção-geral, uma unidade de missão. Agora, de facto, o adjetivo independente não lhe ouvi. Depois é preciso ver, na prática e na letra pequenina, quais as garantias de independência, se é que irá ter, porque admito que o próprio Governo precise de economistas fiscais porque, na verdade, esta política sempre teve em Portugal falta de fundamentação. Basta pensar que, quando se faz uma reforma ou uma mudança em código fiscal, normalmente há um painel de especialistas que faz uma primeira proposta e depois o poder político, o Governo e a Assembleia da República alteram e aprovam a versão final, mas nesse comité de especialistas há poucos economistas especializados em impostos, as contribuições mais relevantes são de fiscalistas, de auditores, de revisores de contas, que também são muito importantes. Precisamos de ter pensamento crítico nas instituições que decidem a política fiscal em Portugal: o Governo e a Assembleia da República.
Quem é Rui Baleiras?
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Rui Baleiras assumiu o papel de coordenador da UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental), unidade da Assembleia da República, em julho de 2018. Tem lutado para que esta entidade tenha estatutos próprios. Tal como tem o Conselho das Finanças Públicas que ajudou a fundar.
Nasceu em 1963 em Lisboa, e doutorou-se em Economia pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na Universidade do Minho também lecionou na China, Angola e Timor-Leste.
Tem no curriculum uma experiência governamental, tendo desempenhado a função de secretário de Estado do Desenvolvimento Regional no governo de António Guterres.
Alguma vez o pressionaram enquanto coordenador da UTAO?
Nunca me pressionaram nem indiretamente para alterar uma vírgula que fosse nos nossos textos, nem eu aceitaria. No dia em que isso acontecer eu falaria e punha o lugar à disposição. Agora já houve pressão, seja tanto do poder político como sobretudo do poder administrativo na Assembleia da República, para abraçar novas tarefas que eu achei que não tinham a ver com a missão da UTAO e na altura expliquei a quem de direito.
Como por exemplo?
Pôr a UTAO a avaliar o impacto na igualdade de género de medidas legislativas que podiam até nem ser de política orçamental. Francamente, não cabe no papel da UTAO. Se me derem 50 trabalhadores eu posso pôr um ou dois a tratar disso, agora quando temos quatro… É por isso que é preciso um estatuto, a UTAO não tem um estatuto, não tem uma lei orgânica própria em que essa separação de poderes e a responsabilização da liderança da UTAO sejam asseguradas e escrutinadas.