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O jeito para a informática quase sempre esteve lá. Chegou a um ponto em que Rui Pinto, quando andava apenas no 7.º ano, teve de ser proibido de mexer nos poucos computadores que, na altura, estavam disponíveis para os alunos da Escola Básica Soares dos Reis. É que, em algumas ocasiões, era lá que optava por pôr à prova a sua “habilidade de mexer nos sistemas e descobrir passwords” da escola. José Parreira, antigo professor de História do 3.º ciclo, é quem recorda este episódio. Do gaiense, além do gosto pela tecnologia, ficou ainda com a imagem de um rapaz de “ar miudinho”, “sempre rodeado pelos colegas, atento, perspicaz e com uma assertividade muito forte”.
Rui Pinto, um aluno de nota 5 a História que não perdia uma boa oportunidade para debater, começou por ser o “Simpson” — uma alcunha dos tempos de escola por causa do cabelo espetado que já o caracterizava na altura. O cabelo manteve-se praticamente igual, mas a alcunha mudou. Passou, por volta do 3.º ciclo, a “Sony”, por saber muito sobre tecnologia, incluindo telemóveis. “Era ele quem trazia as informações sobre tudo o que havia de novo a nível tecnológico para os colegas. Até ao nível dos telemóveis, os miúdos perguntavam-lhe tudo o que era novidade. Ele sabia de tudo”, conta ao Observador José Parreira.
Fanático pelo futebol — e adepto do Futebol Clube do Porto —, ouviu do pai, desde cedo, que isso ia acabar por destruir-lhe a vida. E foi quase como um presságio: “Simpson” ou “Sony” passou mais tarde a ser “John”: o pseudónimo sob o qual criou o Football Leaks — a maior fuga de informação de futebol da história. Depois, por breves momentos, foi “Artem Lobuzov”, o nome que é acusado de ter criado para chantagear e extorquir a Doyen em troca do seu silêncio. Agora, arguido prestes a ser julgado pela prática de 90 crimes, Rui Pinto é só Rui Pinto.
Os que viram as suas informações pessoais devassadas e publicadas na internet, os que viram os seus crimes expostos por causa dele ou mesmo os que entendem que não há fim que justifique os meios veem-no como um vilão. Mas para os que o viram crescer — e os que acreditam que a informação que divulgou é mais importante do que a forma ilegal com que a terá obtido —, o “miúdo de Gaia” não é menos do que um herói.
Entre a investigação haverá quem aponte para um intermédio: desde que foi detido (e decidiu colaborar com a justiça portuguesa, disponibilizando, por exemplo, as passwords para aceder aos discos que lhe foram apreendidos), terá trocado “o poder de fazer” pelo “dever de fazer”.
Na sua própria perspetiva, porém, sempre fez isso. Rui Pinto descreve-se, aliás, como “um cidadão que agiu em nome do interesse público”. Desta vez, porém, o castigo que recebeu foi mais do que uma simples proibição de mexer nos computadores da escola: foi detido no ano passado, esteve em prisão preventiva e o julgamento começa esta semana.
A “luz” de Budapeste e um negócio de livros antigos. Rui Pinto queria ficar na Hungria “para sempre”, mas acabou detido ao chegar a casa
Rui Pinto regressava com o pai e a madrasta do supermercado quando, ao virar a rua onde ficava o seu apartamento na capital da Hungria, foi abordado por dois polícias à paisana. Foi ele próprio quem relatou este episódio, ocorrido a 16 de janeiro de 2019, na entrevista que deu à Der Spiegel duas semanas depois, na qual admitiria pela primeira vez que era o autor do Football Leaks, a maior fuga de informação da história relacionada com futebol. “Eles verificaram a minha identidade e tive de esvaziar os meus bolsos e a mochila. Depois, mostraram-me o mandado de detenção europeu, tudo em húngaro, e algemaram-me”, contou, acrescentando: “Despedi-me dos meus pais e disse-lhes que ia tudo correr bem“.
O hacker passou as duas noites seguintes numa cela, na esquadra da polícia, com outro homem. “Um guarda aparecia a cada meia hora e acendia e apagava a luz acima do meu beliche. E só fazia isso comigo”, garantiu à revista alemã. Acabaria por voltar para o seu apartamento em Budapeste, onde ficou em prisão domiciliária, por decisão de um juiz húngaro a 18 de janeiro de 2019.
Chegara àquela cidade seis anos antes para fazer Erasmus, um programa de intercâmbio de estudantes europeus, na Elte Faculty of Humanities, onde esteve inscrito de fevereiro de 2013 a julho do mesmo ano. E foi a primeira vez que esteve fora de Portugal, segundo revelou à Der Spiegel. No final do semestre, voltou para casa, mas com a certeza de que “queria voltar para a Hungria rapidamente”. Em 2015, cumpriu o desejo e emigrou para Budapeste, a cidade que diz amar. Lá tinha “muitos amigos”, a namorada e o negócio de antiguidades com o pai — que permanecia em Portugal. “A luz, o rio Danúbio, os castelos e as pontes. Gostava de ficar aqui para sempre”, contou à revista alemã depois de ser detido.
Vivia de um negócio online de venda de livros que tinha com o pai, segundo explicou no interrogatório para aplicação das medidas de coação, divulgado pela revista Sábado. Foi uma “grande oportunidade de negócio” que descobriu em parte por causa do seu interesse por história e que explicou à juíza de instrução, dando-lhe uma verdadeira aula: “A Hungria fazia parte do império austro-húngaro — a língua oficial era o alemão — e existia diverso comércio, comercialização de livros da Alemanha para o império austro-húngaro. Depois, com o início da II Guerra Mundial, muitos desses livros, na Alemanha, desapareceram por causa das listas dos livros proibidos pelo regime nazi. E, felizmente, em Budapeste existiu uma grande oportunidade de encontrar esse tipo de livros”. Rui Pinto comprava um livro por um ou dois euros e vendia-o por 150 ou mais, explicou na entrevista. Era a sua forma de sustento.
O seu desejo de ficar “para sempre em Budapeste”, porém, não se concretizou: em março de 2019, acabaria por ser extraditado para Portugal. É que o negócio de venda de livros não era a sua única atividade online. Pelo contrário, foi tudo o resto que, alegadamente, fazia que o viria a tornar simultaneamente um nome conhecido internacionalmente e um alvo da justiça.
O seu apartamento em Budapeste era a base para essa atividade. Ali, instalou dezenas de programas informáticos e ferramentas que lhe permitiam, segundo a investigação, entrar em caixas de correio eletrónico e sistemas informáticos de outras pessoas em vários pontos do mundo de forma anónima para de lá retirar conteúdos que considerava relevantes, sempre com o cuidado de esconder as provas das suas “intrusões” e registos de navegação — como acusa o MP e como o pirata informático admitiu, em parte. “Todos os dias passava horas sentado em frente aos documentos e analisava cada um deles. Quanto mais lia, mais chocado ficava“, disse à Der Spiegel.
Fanático pelo futebol, foi o caso Bosman que o levou a criar o Football Leaks
É difícil desassociar o nome Rui Pinto do site Football Leaks — ou não fosse ele o seu ou um dos seus criadores. Mas nem sempre foi assim. Quando o criou, em setembro de 2015, ninguém podia desconfiar que era o gaiense, à data com 26 anos, sob o pseudónimo John, quem estava por detrás daquela que viria a torna-se a maior fuga de informação no futebol — apesar de o próprio Rui Pinto garantir, quer em entrevistas, quer perante a justiça, que não era o único responsável pelo que ali foi sendo revelado. No interrogatório, disse à juíza de instrução que o site era “um coletivo de pessoas, de whistleblowers“. “Com o tempo, mais e mais novas fontes foram adicionadas, que compartilharam o seu material comigo, e o banco de dados cresceu”, disse à Der Spiegel.
O pirata informático atribui à sua paixão pelo futebol “desde criança” a razão pela qual lançou o site. O pai incentivava-o a não ver futebol “de forma tão fanática” ou acabaria por eventualmente destruir-lhe a vida, costumava dizer-lhe quase que prevendo o futuro do filho, contou Rui Pinto à Der Spiegel.
Football Leaks. Os negócios milionários, as cláusulas estranhas, Ronaldo e o delator português
Mas o incentivo serviu-lhe de pouco. O interesse pelo futebol era de tal forma que o hacker consegue apontar o momento exato em que percebeu “que o futebol estava a evoluir na direção errada”: aquando da decisão do caso Bosman, em 1995, que alterou as regras do futebol, retirando direitos aos clubes — já que deixaram de poder cobrar pela transferência de jogadores em final de contrato — e dando poder a empresários e agentes. “Os melhores jovens jogadores estavam a ir para os melhores clubes. Toda a competição estava a dar vantagem aos clubes de topo“, explicou à revista.
Mas “o grande impulsionador” foi o escândalo de corrupção da FIFA em 2015 — o ano em que acabaria por criar o site. “Além de todas as detenções que foram feitas na FIFA, vi que havia irregularidades em muitas transferências dentro de Portugal. Que mais e mais investidores invadiam o mercado. Comecei a recolher dados.”
Exatamente às 5h17 da madrugada de 29 de setembro de 2015, Rui Pinto carregou na tecla enter e fez cair a primeira publicação: um texto no qual explicava que o seu objetivo era “divulgar a parte oculta do futebol”, que considerava estar “podre”. E anunciava: “Irei divulgar aqui durante os próximos meses diverso material que me chegou às mãos nos últimos anos”. O hacker apelava ainda a doações “porque adquirir todo este material” tinha levado “imenso tempo”. “E é sempre bonito contribuir”, rematava.
O rapaz do “cabelito espetado e ar miudinho” que desde pequeno mexia em computadores
7 de março de 2016. O segredo é desvendado. O blogue Football Leaks Revealed divulga pela primeira vez o nome por detrás da fuga de informação — negado dois dias depois pelo próprio Football Leaks. É Rui Pinto, um português, à data com 27 anos. A sua fotografia começou a preencher várias capas de jornais e a abrir noticiários em todo o mundo.
Em Vila Nova de Gaia, cidade de onde Pinto é natural, muitos reconheceram-no imediatamente pelo “cabelito escuro, espetado e ar miudinho” — uma imagem de marca já dos tempos de infância e adolescência. Todos admitem terem recebido a notícia com surpresa, mas recordam um rapaz “tranquilo e sossegado”, com o gosto desde cedo por história e informática e uma atitude interventiva em alguns temas. “Como ele era na escola é como ele é agora. Não foge à regra”, garante ao Observador José Gonçalves, antigo funcionário da Escola Básica de Soares dos Reis, onde o gaiense estudou do 5.º ao 9.º ano.
Nascido em Mafamude a 20 de outubro de 1988, Rui Pinto vivia com a sua irmã, dez anos mais velha, e com os pais: Francisco Santos, designer de sapatos, e Maria Gonçalves Santos, doméstica. Aos sete anos, o pai comprou-lhe um computador Intel Pentium com uma conexão discada à internet, que instalou na sala de estar, para poderem comprar e vender moedas antigas online, relata a The New Yorker. Aos 11 anos, perdeu a mãe, vítima de um cancro. “Foram tempos complicados para mim”, contou à Der Spiegel.
Autodidata, quando começou a estudar estava já “um passo à frente” das outras crianças por ter aprendido a ler e a escrever sozinho quando tinha quatro anos. E atribui esse feito ao futebol: “Vi muitos jogos e desenhava sempre as camisolas e as cenas dos jogos. A determinada altura, comecei a apontar palavras individuais que o comentador dizia. Quem marcou, o resultado final e como correu o jogo”, contou o próprio à Der Spiegel. Na escola, os professores também notaram esta qualidade. “Já sabia muito naquela altura. Ele próprio autoconstruiu-se no mundo da informática. Era ele que procurava as coisas, foi sempre um daqueles alunos que sobressaíam nesse aspeto”, conta ao Observador José Parreira, antigo professor.
Nos tempos de escola — onde também integrou a equipa de futsal —, Rui Pinto gostava de questionar e aproveitava incertezas na matéria para lançar o debate nos temas que lhe interessavam. “Não era daqueles alunos que falava por falar. Falava com uma assertividade muito forte. E era muito atento”, recorda o professor. Clara Ferreira, ex-professora de História do 2.º ciclo, sublinha a mesma qualidade e relembra como, “desde o início”, o gaiense “sempre foi muito interessado e muito interventivo”. Era “aluno de 5 a História”, mas também muito seletivo nas áreas a que queria dedicar algum esforço: “Se as coisas não lhe interessavam, ele desligava”.
Só 12 dos 59 alvos de Rui Pinto apresentaram queixa. Um deles foi Bruno de Carvalho
Pelos corredores da escola básica, também José Gonçalves, antigo chefe dos funcionários, lembra-se da presença de Rui Pinto. Garante que “era um aluno cinco estrelas, sempre cumpridor e educado”, e salienta a capacidade para os trabalhos manuais: “Desde cartolinas, madeiras, fios para ligar lâmpadas….ele era muito à frente a nível de invenções e do desenrascar”. Hoje, o “senhor Gonçalves” — como é conhecido dentro da escola — só tem pena de “não lhe conseguir dar um abraço, como a quase todos os alunos que passaram por lá”.
Perto da casa de família — que fica no Monte da Virgem, apesar de ter crescido na zona da Praia de Lavadores,também em Gaia — também só tem quem o defenda. A casa está, por estes dias, de janelas fechadas e persianas corridas e tem novos vizinhos que foram surgindo com o desenvolvimento da cidade. Talvez por isso, nem todos o conheceram pessoalmente, mas grande parte lembra a sua imagem “da televisão” e não hesita na opinião: “Tenho a certeza que é um tipo impecável”, comenta o proprietário de um café.
No momento em que José Parreira viu Rui Pinto na televisão pela primeira vez, depois de muitos anos sem o encontrar, não houve dúvidas: “Olha, é o Ruizinho”. Quase nada tinha mudado: “O Rui que eu vi durante três anos na escola e o Rui de agora têm as mesmas características. Mais adulto, mas a mesma calma, o mesmo sorriso, o mesmo físico… é o Rui, pronto”. Os conhecimentos do gaiense na área da informática, acrescenta, deveriam ser aproveitados, “como nos outros países”. “Aquilo que o Rui fez tem alguns aspetos condenáveis, mas a maior parte deles, no meu entender, não são condenáveis, porque outros países aproveitaram o Rui. Nós não. O Rui não merece ser condenado, o Rui merece ser aproveitado”, refere o professor.
Também Clara Ferreira diz nunca ter visto Rui Pinto “como um criminoso”, mas sim “como alguém que tentou realmente fazer alguma coisa”. “Com certeza que ele tem interesse pelos comportamentos das pessoas na sociedade e, como também era muito bom a informática, foi uma tentação ele poder intervir quando sabia que algo realmente não estaria a correr da melhor maneira. Acho que era uma tentação para quem realmente tinha conhecimento do que era o comportamento do Homem em sociedade e como está sujeito a corromper e deixar-se corromper. Foi o que se verificou ao longo da História e também atualmente”, explica.
Foi na Escola Secundária Almeida Garrett, também conhecida como “Liceu de Gaia”, que concluiu o ensino secundário. Nessa altura, era “um rapaz muito tranquilo e sossegado”, segundo Pedro Pereira, responsável do café “O Garfo”, um estabelecimento a escassos metros da escola e onde Rui Pinto passava muitos finais de tarde com os amigos. “Já não o vejo há muito tempo, mas a carinha de menino continua igual“, assegura o proprietário.
Mais tarde, na altura de escolher o curso de Ensino Superior que queria seguir, Rui Pinto tinha várias áreas em mente, desde Arqueologia a Relações Internacionais, mas a escolha acabou por ser a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre 2008 e 2013. Tudo pela curiosidade em perceber melhor o mundo: “Se te queres entender a ti próprio, o mundo e o teu país precisas de olhar para a História. Porque o ser humano está sempre a cometer erros”, contaria depois à Der Spiegel.
Foi durante o percurso universitário, incluindo a experiência em Erasmus na Hungria, que a relação de Rui Pinto com Portugal mudou. Desistiu do curso depois de ver os amigos que “saíram do país porque não viam perspetivas para eles” e deixou de poupar críticas aos “políticos e os empresários gananciosos que arruinaram um país outrora bem-sucedido”.
Os alegados ataques do hacker que não se considera hacker, mas “um cidadão que agiu em nome do interesse público”
O Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD terá sido o seu primeiro alvo. Entre 20 de julho e 30 de setembro de 2015, Rui Pinto terá acedido a emails de várias pessoas — uma das alegadas intrusões terá sido feita a partir de um IP correspondente à Universidade do Porto — e recolhido documentos confidenciais. Costumava fazê-lo entre as três e as sete da madrugada, de acordo com a investigação. Depois, nas semanas seguintes, ia publicando no site do Football Leaks os documentos recolhidos. Mais: no dia 22 de setembro, o Sporting foi alvo de um conjunto de ataques ao servidor de correio, que o paralisaram durante três dias — o que fez, garante, sem querer. Certo é que Rui Pinto tinha conseguido definitivamente dar nas vistas.
Segundo a investigação, quase em simultâneo, o hacker terá acedido também ao sistema informático da Doyen Sports Investments Limited, uma sociedade com sede em Malta que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial, de onde retirou documentos que viria a publicar no Football Leaks.
Nessa altura, Rui Pinto passou a identificar-se como “Artem Lobuzov” e usou este nome para falar, via email, com o representante legal da Doyen, Nélio Lucas — como admitiu em tribunal. “A fuga é bem maior do que imagina“, ter-lhe-á dito num email onde, segundo a acusação, ameaçava que os documentos que tinha na sua posse podiam “aparecer online e logo de seguida em toda a imprensa europeia” e pedia “uma doação generosa” em troca do seu silêncio: entre meio milhão e um milhão de euros.
É neste ponto que o “tipo impecável” de Gaia se torna, aparentemente, num vilão. E é também aquele em que admite ter errado, apesar de não assumir a alegada extorsão. No interrogatório para aplicação das medidas de coação disse que “foi um erro, não só pelos valores, mas pelo facto de ter feito a tal pressão”. E esclareceu que “nunca” teve “intenção de receber o dinheiro”. Disse, pelo contrário, que a explicação é mais complexa.
Entre os documentos que, na sua versão, recebeu através de fontes, encontrou “comportamentos muitos estranhos de negócios” entre a Doyen e o filho do presidente do FC Porto. Pinto da Costa é para ele “um dos maiores presidentes do futebol europeu” e o que encontrou deixou-o “nervoso”. “Deixou-me, olhe, nem sei explicar. Deixou-me mesmo… senti-me ferido. Sempre pensava que no FC Porto estas coisas não aconteciam“, disse à juíza. Rui Pinto achou então que a “melhor maneira” de descobrir se esses negócios eram “mesmo verdade” era perceber quanto dinheiro a Doyen estaria disposta a pagar para fazer desaparecer os documentos. “A melhor maneira que achei foi esta. Sei que não foi a melhor…”, admitiu durante o primeiro interrogatório judicial.
Rui Pinto nem sequer se considera um hacker, “mas sim um cidadão que agiu por interesse público” e um “utilizador normal de computador”. “Estou convencido de que o que fiz foi a coisa certa”, disse à Der Spiegel. Certo é que, para uma utilização normal do computador, a lista de casos que vieram a público é bem longa: os emails do Benfica, a fuga ao fisco em Espanha de Cristiano Ronaldo e a alegada violação a uma norte-americana e, mais recentemente, o caso Luanda Leaks.
Depois de um ano preso, Rui Pinto trocou o “poder de fazer” pelo “dever de fazer”
Depois de ter sido extraditado para Portugal, Rui Pinto ficou preso durante mais de um ano: de março de 2019 a abril de 2020, altura em que passou para prisão domiciliária. Nesse período, foi acusado pelo Ministério Público de 147 crimes. Ficou a saber-se que o alegado hacker teria invadido os emails de centenas de entidades e pessoas: de Bruno de Carvalho, de Jorge Jesus e de outras pessoas ligadas ao Sporting, de Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, da sociedade de advogados PLMJ, da Federação Portuguesa de Futebol, da própria Procuradoria-Geral da República e até do juiz de instrução Carlos Alexandre.
Já na fase de instrução, a juíza Cláudia Pina decidiu pronunciá-lo “apenas” por 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
A 7 de agosto, depois de várias pessoas o terem pedido publicamente, foi libertado definitivamente, continuando obrigado a apresentar-se à PJ semanalmente. A sua colaboração com as autoridades terá sido fundamental para a sua progressiva libertação — e fez até com que o juiz Carlos Alexandre desistisse da queixa contra ele. Nomeadamente, o facto de ter aceitado desencriptar os 10 discos externos que as autoridades judiciárias portuguesas apreenderam na Hungria.
As autoridades têm agora uma enorme quantidade de informação na sua posse, recolhida de um número desconhecido de instituições, pessoas ou empresas. Mas a sua utilização não é consensual, havendo o entendimento de que, por terem sido obtidos de forma ilegal, aqueles documentos e eventuais provas não podem ser utilizados em nenhum processo. O que não invalida que não possa ajudar a Polícia Judiciária e o Ministério Público a encontrar outras provas por via legal. A questão é polémica, mas certamente fará com que não se deixe de falar sobre Rui Pinto tão depressa.
Agora encontra-se ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas: ninguém sabe onde está e com quem está. Às autoridades, apresentou-se “tranquilo” e pouco extrovertido durante todo o processo. “Está sempre a pensar. Nota-se que é uma pessoa que tem alguma capacidade de introspeção, uma pessoa reflexiva”, disse ao Observador fonte da investigação.
Ao colaborar, diz a mesma fonte, o hacker ter-se-á “adequado à lógica do sistema e do processo”: “Tem percebido que há coisas que não pode fazer, mas que, contudo, poderá haver algumas coisas que saiba fazer e que seja interessante que faça: denunciar pelas vias adequadas situações que de outra forma ficam opacas“. No fundo, o “poder de fazer” do vilão terá dado lugar ao “dever de fazer” do herói.