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Ricardo Salgado não hesitou quando foi confrontado com as alegadas declarações incriminatórias de Hélder Bataglia que estiveram na base da constituição de arguido do ex-líder do BES na Operação Marquês por suspeitas de corrupção e de mais quatro crimes. Classificou-as como uma vingança do ex-líder da Escom e manifestou arrependimento por ter confiado naquele que era o ‘seu’ homem em África.
Cerca de 15 dias antes de o ex-banqueiro depor nos autos do caso que tem José Sócrates como principal arguido, Bataglia tinha afirmado ao procurador Rosário Teixeira que transferiu 12 milhões de euros para Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates, a pedido de Ricardo Salgado. Uma declaração relevante que permitiu ao Ministério Público reforçar os indícios de que boa parte dos mais de 20 milhões de euros que Carlos Santos Silva (sinónimo, para os investigadores, de José Sócrates) acumulou na Suíça teve origem no Grupo Espírito Santo (GES).
Ao que o Observador apurou, Salgado apenas terá admitido que tinha dado ordens à empresa Espírito Santo (ES) Enterprises (o famoso ‘saco azul’ do GES) para transferir os 12 milhões para o ex-líder da Escom mas a propósito de uma comissão contratual por contratos petrolíferos no Congo Brazzaville — e não com o objetivo de o dinheiro chegar a José Sócrates. Aliás, terá acrescentado, nem conhecia Carlos Santos Silva. Como poderia ordenar transferências para uma pessoa que desconhecia? — terá argumentado o ex-banqueiro.
Estes são alguns dos pormenores do interrogatório de Ricardo Salgado na Operação Marquês. O Observador contactou a defesa do ex-líder executivo do BES que optou por não fazer qualquer comentário.
O afastamento de Sócrates
Sendo suspeito de alegadamente ter corrompido o ex-primeiro-ministro José Sócrates de forma a obter benefícios para o GES nos negócios da Portugal Telecom, Ricardo Salgado tentou afastar-se o mais possível de José Sócrates. A conselho dos seus advogados, terá salientado ao procurador Rosário Teixeira dois grandes pontos de discórdia com Sócrates:
- A oposição de Sócrates à venda da Vivo. Um argumento clássico do ex-líder do BES que já tinha sido utilizado por Salgado durante o interrogatório no caso BES/GES. Enquanto Salgado queria vender a participação da PT na Vivo, Sócrates opunha-se enquanto a empresa portuguesa não assegurasse a continuidade no Brasil;
- A compra de títulos de dívida do Estado português e a chamada da troika. Apesar de o caso ser conhecido da opinião pública, é a primeira vez que Salgado invoca este argumento num dos três processos em que é arguido. Acrescentando, contudo, várias novidades até agora mantidas no segredo dos deuses.
Para pormenorizarmos este último ponto, é necessário regressar aos últimos tempos do Governo Sócrates, mais concretamente ao dia 30 de março de 2011.
José Sócrates preparava as eleições antecipadas depois de ter apresentado a sua demissão a 23 de março na sequência do chumbo na Assembleia da República da famosa quarta versão do Programa de Estabilidade e Crescimento. A sua narrativa baseava-se no facto de só ele se opor ao pedido de assistência financeira que o Presidente da República, o governador do Banco de Portugal, o PSD, o CDS, os líderes das principais instituições europeias e os principais banqueiros defendiam que devia ser dirigido o quanto antes à troika. O Estado estava a ficar com os cofres vazios e o mercado exigia juros acima dos 10% para emprestar dinheiro a Portugal.
A 30 de março Sócrates, na companhia de Fernando Teixeira dos Santos (ministro de Estado e das Finanças), recebeu na residência oficial do primeiro-ministro os banqueiros Ricardo Salgado (BES), Faria de Oliveira (CGD), Fernando Ulrich (BPI), Carlos Santos Ferreira (BCP) e Nuno Amado (Santander Totta), segundo contam David Dinis e Hugo Filipe Coelho no livro Resgatados (Esfera dos Livros). O motivo da reunião era simples: Portugal não conseguia financiar-se nos mercados com juros acima dos 10%.
Durante o interrogatório no DCIAP, Ricardo Salgado terá afirmado o seguinte sobre esta reunião fundamental no processo que levou à chamada da troika:
- Perante duas amortizações de dívida previstas para abril e junho, o primeiro-ministro pediu aos banqueiros para continuarem a participar nos leilões de dívida, de forma a que a República conseguisse financiamento. Não era a primeira vez que Sócrates fazia esse pedido. Já no final de junho de 2010 tinha ocorrido uma reunião semelhante em São Bento;
- Os banqueiros, tal como já tinham combinado com Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, numa reunião que ocorreu quatro dias antes, garantiram-lhe que não tinham fundos para tal. Desde que tinham começado a acorrer aos leilões de dívida pública, a pedido insistente de Sócrates e dos seus governantes, os principais bancos portugueses tinham ficado com “90% dos títulos”, garantiu António Sousa, presidente da Associação Portuguesa de Bancos numa reunião com o Banco de Portugal. Boa parte dos 48 mil milhões de euros que os bancos portugueses tinham pedido emprestado ao Banco Cental Europeu tinha servido para comprar dívida da República Portuguesa, lê-se no livro Resgatados.
E todos, um por um, insistiram com José Sócrates para que chamasse a troika. Ideia imediatamente rejeitada pelo então primeiro-ministro.
A reunião com Mário Soares
Salgado terá contado ainda ao procurador a Rosário Teixeira que saiu muito preocupado da reunião e, em vez de regressar para a sede do BES na Av. da Liberdade, foi para casa, em Cascais. Nesta altura (estamos em março de 2011) tinha consciência de que o GES tinha dificuldades financeiras graves (as alegadas falsificações da contabilidade das empresas da área não financeira tinham começado anos antes) e também o preocupava a teimosia de Sócrates, que poderia levar o Estado para uma situação de incumprimento financeiro perante os mercados e arrastar os bancos com ele — um cenário que tinha de ser evitado a todo o custo. Pior: se as agências de notação financeira continuassem a cortar o rating da República, os títulos da dívida portuguesa não valeriam nada. O que significaria buracos insustentáveis nos balanços da banca.
Quando já estava a caminho de Cascais, Ricardo Salgado terá recebido uma chamada de Teixeira dos Santos. O ministro das Finanças, que o tratava por Ricardo, ter-lhe-á pedido para ir falar com Mário Soares. O papel do ex-Presidente da República seria ajudar a convencer Salgado a participar nos leilões de dívida.
Pouco depois, o motorista do BES parava em frente à Fundação Mário Soares — localizada em frente à Assembleia da República, a pouco mais de 500 metros da residência oficial do primeiro-ministro, onde Sócrates esperava pelo desenrolar da reunião.
Mas não foi. Mário Soares, terá contado o ex-banqueiro, disse-lhe que era fundamental que a banca continuasse a participar nos leilões de dívida pública que asseguravam o financiamento do Estado. Salgado explicou-lhe que os bancos não tinham mais capital para investir e arriscavam-se a ir ao fundo com o Estado.
E devolveu-lhe outro argumento: era um imperativo nacional chamar a troika. Ao que o ex-Presidente da República terá respondido em voz alta que já tinha tentado convencer Sócrates mas que ele não ouvia ninguém.
Mais tarde, já em 2012, Mário Soares recordou durante a apresentação do seu livro Um Político Assume-se que teve uma “discussão gravíssima” com Sócrates: “Queria que ele pedisse o apoio e ele não queria. Falei muito com ele durante muito tempo, duas horas ou três, discutimos brutalmente mas amigavelmente, eu a convencê-lo e ele a não estar convencido”, afirmou o fundador do PS, falecido a 7 de janeiro.
Angola, Venezuela e o Congo unidos pelo petróleo
Ricardo Salgado terá feito questão de expor de forma pormenorizada ao procurador Rosário Teixeira a relação de Hélder Bataglia com o GES. Africanista por convicção, Bataglia era o homem forte da área não financeira do GES no continente africano, nomeadamente em Angola.
Com ótimos contactos no regime de José Eduardo dos Santos, o futuro líder da Escom começou por criar, com a ajuda de Luís Horta e Costa, oportunidades de negócio para o GES na área de import-export, vendendo produtos agrícolas e até jipes UMM para Angola em plena guerra civil, como noticiou o Expresso. Mais tarde, mercê dos seus bons contactos com o regime de José Eduardo dos Santos, Bataglia conseguiu alargar os interesses do GES ao mercado petrolífero e diamantífero — as duas principais fontes de riqueza de Angola.
Hélder Bataglia foi igualmente essencial para abrir as portas da Venezuela de Hugo Chávez ao GES. País com uma comunidade importante de portugueses (nomeadamente, emigrantes madeirenses), foi através de Bataglia que o BES desenvolveu uma rede de agências para captar as poupanças dos emigrantes portugueses. Mais importante do que isso: algumas empresas públicas, como a PDVSA — Petróleos de Venezuela, SA, assim como alguns dos membros da oligarquia venezuelana, abriram contas no BES.
Salgado terá explicado igualmente que, após a guerra civil na República do Congo no final dos anos 90, o GES entrou no mercado do país africano que passou a ser comandado por Dennis Sassou Nguesso novamente através da ação de Hélder Batalgia. Foi assim que a Escom passou a participar nos negócios petrolíferos do 5.º maior produtor africano.
Devido a todas estas tarefas bem sucedidas, terá acrescentando Salgado, Hélder Bataglia era remunerado numa base comissionista. Isto é, recebia uma espécie de success fee sempre que conseguia um negócio para o Grupo. Um exemplo disso mesmo é o contrato de prestação de serviços assinado entre a ES Enterprises (o famoso saco azul do Grupo Espírito Santo) e Hélder Bataglia para que este procurasse oportunidades de negócio em blocos petrolíferos em Angola, na região do Soyo, e nos setores petrolíferos e da construção do regime de Dennis Sassou Nguesso. Foi precisamente este contrato, que foi divulgado pelo jornal i em 2015 durante os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso BES/GES, que terá sido invocado por Ricardo Salgado no DCIAP para explicar o contexto dos 12 milhões de euros transferidos pelo ‘saco azul’ do GES para Bataglia.
E fê-lo para negar que tivesse pedido a Hélder Bataglia para transferir tal montante para Carlos Santos Silva. O ex-banqueiro terá dito mesmo que não conhecia o alegado testa-de-ferro de José Sócrates. Admitiu ter eventualmente conhecido os irmãos Barroca, do Grupo Lena, numa das habituais visitas que fazia às direções regionais do BES, nomeadamente num convívio social organizado pela direção da zona de Leiria, mas terá alegado que não se recordava de alguma vez ter visto Santos Silva nessas receções que permitiam a Ricardo Salgado conhecer os principais clientes de cada área de implantação do BES.
A vingança
Regressemos a Hélder Bataglia. Ricardo Salgado terá afirmado ao procurador Rosário Teixeira que o grande sucesso de Bataglia levou-o a querer premiar condignamente o ‘seu’ homem em África com 33% do capital social da Escom. Não foi propriamente uma oferta, porque Bataglia teve de pagar para entrar na sociedade (com uma parte das comissões que recebeu do GES), mas Salgado encarou-a como tal.
O assunto foi mesmo levado a debate na cúpula do GES, o Conselho Superior, onde estavam reunidos os cinco principais ramos da família Espírito Santo. Alguns dos primos de Ricardo Salgado (além de Patrick Monteiro de Barros, acionista do GES) não terão concordado com essa intenção do líder mas certo é que a proposta foi aprovada.
Mais tarde, a 28 de dezembro de 2010, foi assinado um contrato-promessa para a venda da Escom a Manuel Vicente, então presidente da Sonangol e futuro vice-presidente de Angola, e ao general Leopoldino Nascimento ‘Dino’, ex-chefe de comunicações do presidente José Eduardo dos Santos e apontado como um dos seus testas-de-ferro — tal como Ricardo Salgado já tinha declarado nos autos do caso Monte Branco em julho de 2014, como pode verificar aqui.
Para esconder a participação de Vicente e de ‘Dino’, terá sido solicitada a Álvaro Sobrinho, então presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA), a disponibilização de uma sociedade offshore que servisse de intermediária no negócio. Sobrinho escolheu uma sociedade por si detida, a Newbrook.
Num negócio avaliado em mais de 470 milhões de dólares (cerca de 438 milhões de euros ao câmbio atual), a Newbrook pagou um sinal cujo valor diverge, consoante a fonte:
- Cerca de 52,2 milhões de euros, de acordo com o que Ricardo Salgado afirmou a Rosário Teixeira em julho de 2014;
- Cerca de 85 milhões de dólares (cerca de 79 milhões de euros ao câmbio atual), segundo o que Álvaro Sobrinho declarou na Comissão Parlamentar de Inquérito do BES.
Independentemente da divergência do sinal, o Ministério Público conseguiu reconstituir o circuito financeiro da transferência e detetou uma sociedade offshore de Hélder Bataglia: a Ocean Private Limited.
Terá sido esta empresa que terá recebido o dinheiro da Newbrook e terá transferido o mesmo para a conta da Espírito Santo (ES) Resources no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça.
Ficou contratualizado no contrato-promessa que Bataglia tinha a receber cerca de 146 milhões de dólares (cerca de 136 milhões de euros ao câmbio atual) pela venda de 23%, ficando ainda com 10% do capital da Escom em seu poder. Não se sabe quanto dinheiro terá recebido Bataglia mas este ainda hoje diz que não recebeu nenhuma parte do sinal. Sendo igualmente certo que a totalidade do sinal pago reverteu mais tarde para o GES em virtude da rescisão do contrato-promessa assinada em outubro de 2013. E é aqui que os problemas começam.
Salgado terá afirmado no MP que Hélder Bataglia ter-lhe-á começado a fazer exigências monetárias para o compensarem no negócio da venda da Escom que não foram satisfeitas. Sendo esse motivo principal pelo qual o ex-líder do BES classifica as declarações de Bataglia como uma vingança por divergências financeiras.
O arrependimento e a mão atrás das costas
O ex-chief executive officer do BES terá acrescentado ainda que o seu maior problema foi ter confiado em duas pessoas: Álvaro Sobrinho, ex-lider do BESA, e Hélder Bataglia, igualmente administrador do BESA.
Perante o procurador Rosário Teixeira, o ex-banqueiro terá voltado a responsabilizar a gestão de Sobrinho pelo buraco de mais de 3 mil milhões de euros criados no BESA, com reflexos automáticos na situação financeira do BES. Salgado repetiu o que já disse publicamente várias vezes: o buraco do BESA é uma das causas fundamentais da queda do BES.
Para enfatizar o seu ponto de vista, Salgado terá chegado a passar a mão atrás das costas para sinalizar que os gestores do BESA alegadamente delapidaram o património do banco sem o seu conhecimento.
Estas declarações poderão ser relevantes no inquérito do caso BES/GES onde estão a ser investigadas as alegadas irregularidades na gestão do BESA — irregularidades, note-se, que tenham sido praticadas em território nacional ou que tenham tido reflexo na esfera patrimonial do BES.
Além de voltar a responsabilizar Sobrinho, Ricardo Salgado acrescentou o nome de Hélder Bataglia como um dos responsáveis por uma gestão que terá estado na origem da intervenção do Banco Nacional de Angola (o banco central angolano) no BESA e a sua transformação em Banco Económico — o que é uma novidade face ao interrogatório que Salgado fez em julho de 2015 no inquérito principal do caso BES/GES.