A compra de 55% do Hospital da Cruz Vermelha pela Santa Casa não foi sustentada em avaliações e estratégias racionais, claras e sustentáveis. Este alerta é feito no relatório e contas de 2023, segundo o qual as participações que a Santa Casa detém na área da saúde não estão “sustentadas em avaliações e estratégias racionais, claras e sustentáveis. O documento, a que o Observador teve acesso, coloca uma “especial relevância na aquisição a 14 de dezembro de 2020 de 55% do capital social da sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha”.
Esta transação foi realizada em 2020, no mesmo ano em que foi lançada a polémica estratégia para a internacionalização e também durante o mandato de Edmundo Martinho. O ex-provedor é uma das várias personalidades ligadas à gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) que começam a ser ouvidas no Parlamento esta quarta-feira, 8 de maio.
A entrada em cena da SCML foi vista como uma forma de ajudar a ultrapassar as dificuldades sentidas pelo Hospital da Cruz Vermelha, nomeadamente a falta de estratégia e de recursos da sua maior acionista, a Cruz Vermelha Portuguesa. A situação tinha sido aliás assinalada pela acionista minoritária, a empresa do Estado Parpública.
Parpública alerta para “total ausência de orientação estratégica” no Hospital da Cruz Vermelha
Nas contas de 2020, a Parpública registava a “degradação das condições operacionais” e a falta de estratégia para a unidade que tinha tido os piores resultados da história (prejuízos de 7,3 milhões de euros), apontando como solução a tomada de controlo por parte da Santa Casa e a nomeação de um novo conselho de administração que “traduzir-se-ão, certamente, no reforço das competências de gestão e de visão estratégica que se espera seja o ponto de inversão no desempenho daquela entidade”.
O Hospital da Cruz Vermelha veio somar-se aos negócios na saúde da Santa Casa que já são cronicamente deficitários — o hospital ortopédico de Sant’Ana na Parede e o Centro de Reabilitação de Alcoitão. As três entidades geraram no ano passado prejuízos de 21,2 milhões de euros — Sant’Ana: 8,5 milhões de euros, Alcoitão: 8,5 milhões de euros; e a sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha (HCP): 4,2 milhões de euros. No caso das primeiras duas unidades, a Santa Casa fechou um acordo, ainda no tempo do anterior Governo, com o Ministério da Saúde para o pagamento da prestação de cuidados ao abrigo do Serviço Nacional de Saúde.
Hospital da Cruz Vermelha atingirá equilíbrio financeiro em 2024
Já no Hospital da Cruz Vermelha foram feitos investimentos e uma reorganização que tem permitido reduzir as perdas da instituição (em 2023, os prejuízos baixaram 26%). Daí que três anos depois de ter assumido o controlo na gestora, a SCML tenha colocado à venda a sua posição (na qual será acompanhada pela acionista minoritária Parpública) e para a qual existiam potenciais interessados.
Santa Casa garante empréstimos bancários à gestora do Hospital da Cruz Vermelha
Mas neste período, a Santa Casa tem sido chamada a suportar o financiamento da tesouraria do hospital através da emissão de garantias a passivos bancários do HCP que, no final do ano passado, tinham atingido os 13,8 milhões de euros. Este valor é comparável com os 14 milhões de euros de garantias bancárias assumidas no quadro das operações de internacionalização.
A Santa Casa assinala que “as garantias prestadas à CVP — Cruz Vermelha Portuguesa [sociedade gestora do hospital] sob a forma de cartas de conforto garantem os empréstimos bancários daquela participada. Por limitação da Parpública que detém cerca de 45%, a Santa Casa garante, sem prejuízo de exercer o direito de regresso, a totalidade das responsabilidades assumidas nesse âmbito”.
A Parpública não emite garantias, mas fonte oficial da empresa esclarece ao Observador que os apoios concedidos à Sociedade Gestora do Hospital da Cruz Vermelha (CVP SGH), “foram sempre na proporção do capital das acionistas da CVP SGH, a saber a SCML com 55% e a Parpública com 45%”, sem referir valores. Sobre o processo de venda da “CVP SGH”, diz que está a evoluir de acordo com o previsto”, sem revelar detalhes.
Nas contas de 2021, a Parpública explicava que, como a Santa Casa não avançou com a aquisição das ações de que era titular na sociedade gestora do hospital, foi negociado “um novo Acordo Parassocial, o qual visou ajustar e equilibrar os poderes e deveres das partes, em função da percentagem de capital detido, do esforço financeiro efetivo de cada acionista e do nível de gestão exigível, sem perder de vista o objetivo de transmitir a totalidade da posição acionista da Parpública na empresa”.
Além de ser responsável pelos empréstimos bancários, a Santa Casa refere que foram feitas injeções de capital na sociedade gestora, através de prestações acessórias, de 17,5 milhões de euros até 2022, não especificando as participações. Já o relatório e contas da Parpública para o mesmo ano revela outro número, falando de entradas de capital na sociedade gestora, via prestações acessórias dos acionistas, de 14,6 milhões de euros. Nesse mesmo exercício, a Parpública reforçou as imparidades para a participação que detém no Hospital da Cruz Vermelha para um valor de 10 milhões de euros.
O relatório e contas da SCML, a que o Observador teve acesso, indica também um investimento financeiro na Cruz Vermelha de 6,1 milhões de euros.
Quanto realizada em dezembro de 2020, as duas instituições afirmaram que a transação teve em conta “a responsabilidade pela recapitalização da Sociedade Gestora do HCV”, bem como o desenvolvimento a curto prazo de um programa de reestruturação da atividade operacional, que será assumida pela Santa Casa, na qualidade de acionista maioritária”.
As negociações existiam desde 2019, e ainda que a decisão tenha sido da mesa liderada por Edmundo Martinho, a transação teve a luz verde do Governo. Não só da parte do Ministério da Segurança Social que tutela a Santa Casa, mas também da Defesa que tem a tutela da Cruz Vermelha e das Finanças que é tutela da Parpública. O negócio inicial previa a aquisição da totalidade do capital, incluindo as ações da Parpública, mas acabou por não se concretizar. Isto porque, quando foi fechada a transação, a Santa Casa já sentia as dificuldades de tesouraria por causa da forte queda de receitas causada pela pandemia.
Santa Casa já reconheceu perdas de 53 milhões na internacionalização e admite que podem ser maiores
Santa Casa tem menos 10% de dirigentes
No relatório e contas de 2023 da SCML são também identificadas as perdas de 53 milhões de euros nas operações internacionais, noticiadas já pelo Observador. O documento que ainda é da responsabilidade de Ana Jorge, a provedora que foi (conjuntamente com a mesa) exonerada por ordem do Governo revela ainda que depois da correção em baixa realizada nas contas de 2022 e 2021 ao valor dos imóveis, houve uma valorização do justo valor deste património de 11,3 milhões de euros, face ao montante corrigido em 2022.
Santa Casa retira 54 milhões ao valor dos imóveis registado nas contas de 2021 e 2022
O documento mostra também que a instituição somava, no ano passado, um total de 309 dirigentes, menos 10% (35) do que um ano antes (face aos valores que constam no relatório de atividades deste ano). A Santa Casa atribui a diminuição nos dirigentes a uma “reestruturação interna” ocorrida em outubro de 2023.
Também diminuiu o número de cargos de chefia direta, em 18%, de 110 para 90. Já o número de diretores de estabelecimento manteve-se nos 107. Em termos globais, em 2023, a Santa Casa tinha 6.023 trabalhadores, menos 57 do que os 6.080 de 2022. Já os gastos com pessoal aumentaram cerca de 2,3%, de 147,6 milhões para 151 milhões. Esse aumento foi uma das críticas apontadas pela nova tutela.
Em entrevista à RTP, a ministra do Trabalho, Rosário Palma Ramalho, voltou a acusar a liderança da Santa Casa de não “fazer nada”, nem ter um plano de reestruturação, ao mesmo tempo em que aumentou as despesas com pessoal. “Não fez nada, nem passava pela cabeça que ela não tivesse um plano de reestruturação financeira, que não tivesse nenhum dado sobre execução orçamental do primeiro trimestre, que não tivesse feito nada e tivesse aumentado as despesas com pessoal”, atirou Palma Ramalho.
A ministra revelou outros números sobre a evolução dos cargos de topo: a informação que tem é que a provedora cortou 19 cargos dirigentes, sendo que essas pessoas não saíram da instituição mas mantiveram-se sem os suplementos remuneratórios da função. Palma Ramalho acusou mesmo a mesa e a provedora de terem aumentado os seus vencimentos e apontou a divergência significativa entre os salários mais baixos e os mais altos.
A Santa Casa reconhece, no relatório e contas de 2023, que o peso das despesas com pessoal, em 2022, representava 63% das receitas totais devido a uma “estrutura de grande dimensão, excessivos níveis hierárquicos e inúmeros cargos de chefia, o que limitava fortemente os recursos utilizáveis a atividades diretamente relacionadas com os seus fins estatutários”.
A instituição mostrava preocupação com o envelhecimento dos trabalhadores e antecipava uma “potencial necessidade de recrutamento nos próximos cinco anos, nomeadamente por aposentações e reformas, que tem vindo continuamente a aumentar”. No final de 2022, 930 trabalhadores estavam nessas circunstâncias e em 2023 foram mais 985.
No documento, a mesa da SCML considerava como “indispensável” a melhoria da gestão e da sustentabilidade da instituição, indicando como necessárias medidas que visassem “o aumento de receitas e forte contenção de despesas” e dava alguns exemplos: uma “cultura organizacional rigorosa, austera e transparente”; um novo plano estratégico “eficaz”; um sistema de planeamento e controlo integrado de atividades e financeiro; sistemas de “forte e permanente controlo interno e externo de todas as áreas funcionais”; assim como “sistemas eficazes de escrutínio e total transparência interna e externa”; a revisão dos estatutos; uma “nova estrutura orgânica e novo sistema de governance“; e um “aumento de receitas relacionadas com o jogo, com o vasto património imobiliário e com a obtenção de apoios e patrocínios de projetos”.
Em dois anos, os NFT renderam 1.605 euros em vendas
Em novembro de 2021, o então provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, foi à Web Summit anunciar a aposta da instituição no mercado digital dos NFT — sigla para “non-fungible token” (ficheiro infungível e único, ou imagem digital encriptada). A ideia era que, a partir de dezembro, peças de arte do espólio com mais de 500 anos, como relíquias, pinturas, artefactos, pudessem estar disponíveis no mercado como NFT. A plataforma criada e que serviria para essa venda era a Artentik e, segundo foi noticiado na altura, apenas aceitaria pagamentos em criptomoedas.
“Esta é uma oportunidade única não apenas para mostrar o nosso trabalho e a nossa herança artística, mas também abri-la ao mundo e torná-la conhecida”, disse, então, Edmundo Martinho num dos palcos da Web Summit.
Artentik ou como a Santa Casa de Lisboa vai entrar no mercado digital dos NFT
Segundo uma análise do Observador aos relatórios e contas da Santa Casa, em 2021 os NFT renderam à instituição 1.040 euros em vendas; em 2022, 565 euros. De acordo com os relatórios, estes valores tratam-se do rédito de vendas de NFT. Como noticiou o Público em outubro do ano passado, foram investidos meio milhão de euros pela Santa Casa mas o projeto foi encerrado pela fraca procura. Nas contas de 2023, já não aparece qualquer rendimento associado aos NFT.