“É russo? Nós não estamos a abrir contas a russos.” Depois de inúmeras negas, Alexander tinha entrado numa das sucursais do Santander no concelho de Oeiras com expectativas baixas – mesmo estando, desta vez, acompanhado por um “amigo português” (que é, na verdade, um cliente-mistério do Observador). E confirmou-se: após escassos segundos de conversa, a funcionária do banco recusou abrir conta: “A Rússia é um país de risco e não abrimos contas a russos“. Não é isto que o Santander e os outros bancos dizem quando se lhes pergunta, oficialmente, o que está a ser dito aos russos que tentam abrir conta.
Alexander, nome fictício, estava fora da Rússia quando Putin anunciou a “operação militar especial” na Ucrânia, a 24 de fevereiro. Em conjunto com a mulher, decidiu logo que a família não podia voltar para o país, sobretudo por medo de poder ser chamado a combater numa guerra com a qual não concorda. Escolheu Portugal como destino para si e para os dois filhos, mas está há meses sem conseguir abrir uma conta bancária.
Também não vai conseguir a conta após a visita a este balcão do Santander. Horas mais tarde, Alexander é chamado para levantar uma carta onde se confirma a nega, agora por escrito: “Após análise subsequente” à visita, o banco decidiu não abrir conta. Uma “análise subsequente” que foi feita sem que lhe tivessem pedido quaisquer documentos – nem sequer o nome.
Os problemas começaram logo após a invasão da Ucrânia. Órgãos de comunicação social como a RTP e o Expresso noticiaram em maio a recusa de contas a russos – e até mesmo alguns russos que já viviam em Portugal (há vários anos) terão visto as suas contas subitamente bloqueadas, segundo a CNN. Um gestor de conta num dos bancos a operar em Portugal garante, ao Observador, que “esses problemas iniciais foram ultrapassados”, mas, agora, mantêm-se algumas limitações: “Não estamos a abrir a novos clientes – até podemos não lhes dizer na cara que não abrimos, mas… Vamos pedindo mais e mais documentação, até que a pessoa acaba por desistir”.
Poderá ser isso que a Caixa Geral de Depósitos está a fazer com Alexander, que se dirigiu ao banco público porque leu em fóruns online de russos em Portugal que essa era a instituição onde seria mais fácil abrir conta – ou onde seria menos difícil. Mas Alexander já entregou todos os documentos da lista pedida e o banco público até lhe pediu para entregar uma cópia dos contratos de arrendamento das suas casas em Moscovo – papéis que já tinham sido entregues, semanas antes, e voltaram a ser pedidos novamente.
A Caixa poderá estar a “Они кормят меня завтраками”, receia o russo – uma expressão que, literalmente, se traduz por “estão a dar-me o pequeno-almoço a comer”. Em português, é o equivalente a dizer: “Estão a enrolar-me”.
SEF só dá residência com conta. Bancos recusam dar conta sem residência
Tirar dinheiro da Rússia não é fácil, devido aos controlos de capitais impostos pelo Kremlin, mas são as rendas em Moscovo que dão a Alexander o “rendimento passivo” que acumulou e do qual vive: como não tem contrato de trabalho, está em Portugal com o chamado “visto D7”, para quem vive de rendimentos ou investimentos/dividendos.
Mas por estar no País com este tipo de visto, está numa corrida contra o tempo: não está a conseguir abrir a conta bancária portuguesa que tem obrigatoriamente de levar para a sua marcação no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), agendada para meados de fevereiro. Ou seja, para que a família saia do SEF com uma autorização de residência, Alexander tem de apresentar uma conta bancária com IBAN português – uma conta para onde tenham sido transferidos largas dezenas de milhares de euros (para provar que tem meios de sobrevivência).
Porém, “vários bancos onde fui dizem que não me abrem conta porque não tenho ainda a residência atribuída pelo SEF. É como a história do ovo e da galinha“, diz o russo.
Nos últimos dias, porém, Alexander ouviu numa sucursal do Millennium BCP que o banco deixou de abrir contas só com base no passaporte – seja a cidadãos russos ou de quaisquer outros países. Mas há uma exceção no Millennium BCP, que permite que sejam abertas contas a estrangeiros (sem especificar) que se apresentem com o visto D7, o que poderá ser uma forma de contornar a situação em que Alexander se encontra.
Oficialmente, o Millennium BCP garante que “não efetua qualquer discriminação negativa em função da nacionalidade, disponibilizando os seus serviços a todos os seus clientes, qualquer que seja a sua jurisdição de origem, em cumprimento da legislação e regulação vigente”. Mas o tempo passa, a data da marcação no SEF aproxima-se, e a resposta continua sem chegar a Alexander.
O problema, porém, está longe de se limitar a quem está com este tipo de visto (o D7). Nikolay, um outro russo que veio para Portugal logo em março – há mais tempo, portanto, que Alexander, que só veio em outubro – diz que já “desistiu” de tentar abrir uma conta.
Ao contrário de Alexander, que neste momento vive de rendimentos, Nikolay (também nome fictício) trabalha na indústria da música e tem um contrato de trabalho ao abrigo do qual está em Cascais a trabalhar remotamente. Veio para Portugal aconselhado por alguns amigos que lhe recomendaram a região perto de Lisboa e lhe garantiram que não iria ter problemas na abertura de conta bancária e outras burocracias.
“O que estes meus amigos se esqueceram de dizer é que, em muitos casos, são pessoas que têm duplo-passaporte, russo e ucraniano, e usaram o passaporte ucraniano para abrir conta“, diz Nikolay ao Observador. “Fui a vários bancos, pedi para abrir conta, levei toda a documentação mas muitas vezes o meu interlocutor levantava-se, trocava discretamente algumas impressões com outro colega do banco, e quando voltava a sentar-se dizia-me que não me podiam abrir conta pelo facto de eu ser russo”, relata.
Solução (provisória): pediu ajuda a um amigo, transferiu-lhe alguns milhares de euros e pediu-lhe para lhe ir pagando as despesas. “Para já, desisti”, diz Nikolay, que está em Portugal com a mulher e uma filha pequena.
Alguns russos em Portugal, diz Alexander, estão a ter tantas dificuldades na abertura de contas que, à falta de alternativas, estão a optar por uma conta no NickelBank – um banco digital que pertence ao francês BNP Paribas e que chegou ao mercado português há poucos meses.
Ao contrário de outros bancos digitais como, por exemplo, o Revolut Bank, o Nickelbank abre conta com IBAN português (Revolut dá ao cliente português um IBAN lituano). “Há quem esteja a conseguir a residência no SEF com conta no Nickelbank, mas é muito arriscado porque depende da pessoa que formos apanhar no SEF – há quem aceite mas há quem não reconheça o banco, por não ser uma marca tão estabelecida”, diz Alexander.
Banco de Portugal já teve queixas por discriminação
Apesar de oficialmente recusarem qualquer discriminação, quase um ano depois do início da guerra os bancos portugueses continuam a fechar as portas aos (cada vez mais) cidadãos russos que estão a entrar no país. Esta é uma prática sobre a qual já chegaram algumas queixas ao Banco de Portugal, sabe o Observador.
Fonte oficial do supervisor salienta que “o quadro legal em vigor não prevê uma proibição generalizada do estabelecimento de relações de negócio ou da realização de operações em que intervenham pessoas com nacionalidade ou residência russa”. “Excetuam-se, naturalmente, as situações em que a aplicação das sanções/medidas restritivas emitidas pela União Europeia impõe o congelamento de fundos ou a proibição de serem executados determinados tipos de operações ou contratos”, afirma o Banco de Portugal.
O supervisor financeiro ressalva que “as entidades financeiras estão sempre adstritas ao cumprimento dos deveres legais de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (BCFT), que requerem a adoção de medidas reforçadas junto dos clientes que possam representar um risco acrescido“. Mas isso significa, apenas, que “as entidades financeiras devem recolher a informação necessária a aferir no concreto a existência de um risco acrescido, sem prejuízo de, num segundo momento e desde que garantido um acompanhamento permanente dos clientes, as medidas mais exigentes se deverem focar naqueles que efetivamente representam um risco mais elevado, por contraposição àqueles cujas características e padrão de movimentação suscitam menores preocupações”.
Qualquer banco que recuse, à partida, abrir contas a russos poderá estar a cometer uma irregularidade, salienta o Banco de Portugal. “Nos casos em que não tenha lugar a aplicação de sanções ou medidas restritivas e em que o cliente tenha disponibilizado toda a informação que lhe seja solicitada, o quadro legal de prevenção do BCFT não estipula qualquer proibição abstrata de realizar operações apenas em função da nacionalidade ou residência do cliente“, diz o supervisor.
O Banco de Portugal reconhece, porém, que existe uma “margem de discricionariedade de que as entidades financeiras dispõem no âmbito das suas políticas internas de gestão do risco”. No Santander, a justificação oficial foi a legislação que protege a “liberdade contratual” do banco, de abrir conta a quem quiser e recusar a quem não quiser – porém, aquilo que foi oralmente dito a Alexander, como testemunhou o Observador, determina que está a haver uma recusa apenas com base apenas na nacionalidade.
Também contactada, fonte oficial da Caixa Geral de Depósitos diz ao Observador que a CGD se “rege pelo escrupuloso cumprimento da legislação nacional aplicável e com os regulamentos europeus em matéria de sanções internacionais no desenvolvimento da sua atividade, tratando todos os cidadãos da mesma forma no âmbito da sua política de aceitação de clientes, que aliás é pública e pode ser consultada no site institucional da CGD“.
Resposta não muito diferente tem a direção de comunicação do Santander Portugal, o mesmo banco cuja sucursal garantiu ter feito “uma análise” mas recusou abrir conta a Alexander dirigindo-se a ele apenas como “Exmo. Sr.”, sem nome: “O Banco continua a abrir conta a cidadãos russos com autorização de residência ou nacionais de um dos países da UE, e a refugiados da guerra da Ucrânia”, afirma fonte oficial do Santander, garantindo que “desde final de fevereiro de 2022, foram abertas contas a 99 clientes com nacionalidade russa”.
“Todos os pedidos de abertura de conta são apreciados em função dos critérios internos do Banco“, remata a fonte oficial do Santander.
Bancos recusam discriminação a russos
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Oficialmente, os principais bancos a operar em Portugal garantem que não há qualquer discriminação a russos. O BPI afirma que “analisa qualquer processo de abertura e manutenção de relação de negócio no estrito cumprimento dos requisitos legais e regulatórios a que está sujeito. Neste quadro, são aplicados requisitos documentais baseados no risco e como em todas as relações estas são aceites ou recusadas mediante a informação disponibilizada pelos clientes, seja qual for a sua circunstância”.
Também questionado pelo Observador, o Bankinter diz que “atua, no estabelecimento de relações de negócio com potenciais clientes, de nacionalidade russa ou outra, no estrito cumprimento do quadro legal”. Outro espanhol também questionado, o Abanca, preferiu não comentar.
O Observador contactou, ainda, o Banco Montepio, que garantiu que “qualquer pessoa, independentemente da sua nacionalidade, pode abrir conta no Banco Montepio, desde que cumpra com os requisitos decorrentes do ato”.
“No caso concreto referido [cidadãos russos], tal como em outros em que está em causa o cumprimento de medidas restritivas impostas pela União Europeia e Conselho de Segurança das Nações Unidas, existe a necessidade de se proceder à aplicação de medidas reforçadas de identificação e diligência, que passam pela recolha de informação adicional, tanto sobre o potencial cliente, como sobre a relação de negócio que pretende ser estabelecida, em cumprimento ao previsto na legislação e regulamentação nacional em vigor”.
Mas, garante fonte oficial do Montepio, “o banco não pratica qualquer forma de discriminação, designadamente, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, sexo, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual”.