A carta tem uma página e é fácil de ler — dificilmente haverá português que não a entenda. No topo, escritos à mão, os pratos do dia: segunda-feira, há açorda de gambas; terça-feira, mão de vaca com grão; quarta-feira, filetes de pescada com arroz de tomate e coentros. Depois, as entradas — há rissóis, pasteis de bacalhau, presunto de porco alentejano e saladinha de polvo. Seguem-se os principais, com direito a bitoque e a secretos. Para finalizar, sobremesas descomplicadas. Os guardanapos são aos quadrados brancos e verdes e os pratos de barro. Neles, lê-se o nome do novo restaurante do número 27 da Rua da Escola Politécnica: Pica Pau. Ouve-se falar em português, a comida é a do aconchego do lar. Aqui não vamos ao engano: são mesmo os sabores da nossa terra.
Luís Gaspar está entusiasmado. Chef executivo da Sala de Corte, outro projeto do grupo Plateform, é como se tivesse nas mãos o brinquedo com que sempre sonhou. O desejo fazia-se adivinhar já há alguns anos, quando em 2017 se consagrou vencedor do concurso Chefe Cozinheiro do Ano, com um conjunto de propostas que prestavam tributo à gastronomia tradicional portuguesa, ainda que nela se atribuísse uma camada de complexidade extra que agora é dispensada. Aqui é diferente. Não se desconstrói. “Não há interpretação do chef”, explica ao Observador.
A criatividade é posta de lado, não tivessem as fórmulas sido já bem fechadas por Maria de Lourdes Modesto, o “tesouro das cozinheiras”, ou Virgílio Nogueira Gomes, enciclopédia da gastronomia tradicional portuguesa. “Foi muito importante poder contar com ele neste início de projeto”, revela.
Com uma secção de 11 petiscos (que podem ser servidos na janela do restaurante), seis pratos principais e um prato do dia por cada dia da semana, trata-se de uma proposta “honesta”, que “não inventa” e que, assim, introduz a Lisboa um restaurante com a gastronomia tradicional portuguesa cuidada. As diferenças face ao que nos é mais familiar são subtis — até porque o empratamento, detalha Luís Gaspar, mantém-se o mais fiel possível ao que estamos habituados a observar. Aqui há um esforço por melhorar os pratos do receituário português, mas a partir de técnicas contemporâneas que são adicionadas aos seus modos de confeção — técnicas essas que “por falta de conhecimento das cozinheiras que aprenderam com as mães”, não estão presentes nos restaurantes, muitos deles popularmente conhecidos como tascas, espalhados pela cidade.
Pode parecer uma tarefa simples, mas Luís Gaspar garante que se trata de um grande desafio. “Estou a competir com as memórias”, diz. “A expectativa das pessoas é a dificuldade: toda a gente conhece e toda a gente tem referências”. Mas as reações que foi tendo no curto período de vida do Pica Pau indicam que tudo está a ir na direção certa. De portas abertas desde meados de julho, houve uma cliente a quem as lágrimas correram. O sabor daquele Bacalhau à Brás (16€) levou-a à sua juventude. O sabor era igual ao do prato que a sua avó lhe fazia.
Manteiga dos açores, pasteis de bacalhau (com muito bacalhau) e o sucesso do cozido à portuguesa num dia quente de verão
À mesa começam a chegar as provas. Primeiro, o couvert: pão “quente e de Mafra”, manteiga Rainha do Pico e molho pica pau a substituir o tradicional azeite (3,5€). A acompanhar, azeitonas 81,5€). Depois, as entradas: o pastel de bacalhau (6€, duas unidades) faz jus ao nome — não engana e está recheado de bacalhau. A proporção entre a batata e o peixe, revela o chef, está de igual para igual. “Não é desfiado, é mesmo posta de bacalhau”, destaca. O rissol de leitão (6€, duas unidades) vai exatamente pelo mesmo caminho. O presunto de porco alentejano (8€) tem fulgor, desfaz-se sem problema. Os peixinhos da horta estão com o polme estaladiço (6€). A saladinha de polvo com pimentos assados e coentros (12€) está fresquinha. Bebericamos uma amarguinha sour (6€), invenção do chef de bar Fernão Gonçalves, responsável por trazer as bebidas tradicionais portuguesas à carta de cocktails. Neste caso, o pisco, bebida sul americana, é substituída pela base da nossa amêndoa amarga.
Antes de passarmos ao principal, Luís Gaspar dá-nos mais alguns pormenores sobre o que pretende ser este restaurante. Os preços da carta — que não são os de uma tasca, mas que destoam da restante oferta do Príncipe Real — dão pistas óbvias: a ambição é a de ter um “restaurante democrático”, ou seja, que aposte no “bom produto”, mas que seja “justo e honesto com o preço”.
Além disso, carrega em si uma componente pedagógica, ao desmistificar alguns aspetos da cozinha tradicional portuguesa. Por exemplo: no polvo à lagareiro com batata à murro e pimentos assados (19€) o azeite não vem a fervilhar. “O bacalhau à lagareiro, a origem do prato, era consumido no dia em que era produzido o azeite”, explica. Não era coincidência: servia para testar a qualidade do azeite que, para esse fim, precisava de estar no seu estado natural. Fervê-lo “estraga-o”, salienta.
Seguimos para os principais. É quinta-feira, o que significa que no Pica Pau é dia de cozido à portuguesa (12€). Confirmamos: até com uma onda de calor cai bem. Nenhum componente se destaca mais. A proporção de enchidos, de carne, de hortaliças e de arroz é equilibrada e ninguém fica a perder. Será um dos pratos que Luís Gaspar crê que, numa carta que se quer sazonal, vá ser “difícil de retirar”. Sexta-feira será arroz de cabidela (12€), sábado massa de garoupa e camarão (18€), domingo, cabrito assado com arroz de forno e grelos (20€). Para segunda-feira, o prato do dia é açorda de gambas (12€), terça-feira mão de vaca com grão (12€) e quarta-feira filetes de pescada com arroz de tomate e coentros (12€).
Mas se nenhuma das opções lhe agradar, saiba que na secção dos principais há mais: bacalhau à Brás, bitoque Pica Pau (16€), secretos de porto alentejano (15€) ou arroz de garoupa e berbigão (17€). Para a sobremesa, mantêm-se os clássicos, desde a mousse de chocolate, com ou sem cheirinho (água ardente CRF), farofias de leite creme. Porque na boa tradição portuguesa, o fim da refeição é sempre reservado para a fruta, aqui terminamos com produto da época: cereja do Fundão, bem rechonchuda, refrescada em gelo. Todas as sobremesas custam 4€.
Com uma carta que não se debruça em regiões especificas do país, o Pica Pau — cujo nome é uma homenagem ao petisco tipicamente lisboeta — vai guardar o foco regional para eventos gastronómicos, planeados para breve. O Pica Pau fica no número 27 da Rua da Escola Politécnica e funciona de domingo a quinta-feira, das 12h às 16h e das 19h às 00h e de sexta-feira a sábado, das 12h à 1h.