Enquanto o resto do país tem conseguido diminuir o número de novos casos diários de Covid-19, a região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) é a que gera mais preocupação neste momento, uma vez que os valores continuam a aumentar mais do que em qualquer outra parte. E os dados indicam que o pico de prevalência da infeção nesta região ainda não terá sido atingido. A previsão é do Covid-19 Insights, um dashboard criado pela COTEC em parceria com a NOVA Information Management School da Universidade Nova de Lisboa, que indica que este pico, em Lisboa, só deverá ser ultrapassado entre a primeira e a segunda semana de junho — ao contrário do que já aconteceu no resto do país.
“Olhando para a prevalência da infeção, que no fundo é o que importa mais porque corresponde ao número de pessoas infetadas que temos em cada momento, estimamos ter verdadeiramente um pico de prevalência em Lisboa e Vale do Tejo no início de junho. Este pico estava previsto para 15 de maio, mas foi adiado devido a um novo surto de casos na região“, explica ao Observador Pedro Simões Coelho, professor catedrático da NOVA IMS. Nas restantes regiões, incluindo a região Norte, que foi a mais afetada pela pandemia, este pico já terá sido atingido.
Esta segunda-feira, dia 25 de maio, os 144 novos casos verificados na região de Lisboa e Vale do Tejo corresponderam a 87% de todas as novas infeções verificadas no país neste dia (165). Mas não foi um caso pontual: no total de maio (até esta segunda-feira) 3.752 dos 6.096 novos casos registados em Portugal ocorreram nesta região. A tendência de um maior aumento de casos diários relativamente a todas as outras partes do país mantém-se desde o dia 9 de maio.
A ministra da Saúde já veio explicar, durante a conferência de imprensa do boletim diário, a razão para esta zona representar atualmente a maior fatia do balanço diário de novos infetados. Segundo Marta Temido, a origem do problema não está associada diretamente às medidas de desconfinamento aplicadas em todo o país, mas sim a surtos localizados em algumas zonas da região, como os casos que ocorreram em empresas na Azambuja, e ao facto de serem municípios com muita gente que tem o seu local de trabalho em Lisboa ou noutros municípios.
Momentos de relaxamento, almoços e mudas de roupa podem explicar os surtos na região de Lisboa
O dia de viragem dos números
Desde o início da pandemia em Portugal, a região de Lisboa e Vale do Tejo mantinha-se relativamente estável quanto à percentagem de casos diários de infeção, quando comparada com a região Norte, a mais afetada pelo novo coronavírus. No dia 14 de abril, por exemplo, o Norte ainda era a região que apresentava uma maior percentagem de casos diários (3,19%) e Lisboa e Vale do Tejo (LVT), tal como as restantes regiões, conseguia manter-se com um menor aumento de casos (2,52%). A 27 de abril, a taxa de aumento de novos casos chegou mesmo a ser inferior a 1% (0,45%).
Dois dias depois, entre 29 de abril e 2 de maio, o cenário começou a a apresentar os primeiros sinais de mudança, quando a região esteve quatro dias com a maior taxa de infeção diária. O mesmo se passou entre 4 e 8 de maio. Mas foi a 9 de maio que o cenário se inverteu definitivamente e, desde esse dia, Lisboa e Vale do Tejo passou a liderar os casos de infeções diárias, enquanto a região Norte, pelo contrário, tem conseguido chegar a números cada vez mais baixos de infeção.
Para o delegado de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, as cadeias de infeção que se estão a verificar nesta região acabam por seguir um ritmo semelhante ao do Norte no início do surto, ainda que com características diferentes: “Não são cadeias de infeção de idosos. São sobretudo cadeias de pessoas jovens, que vivem em comunidades específicas, com determinado tipo de hábitos e de modos de vida e de condições de vida”, explica Mário Durval à rádio Observador.
Contágio nos transportes. “Isso são palpites. Nunca ninguém provou isso”.
Também Pedro Simões Coelho, professor catedrático da NOVA IMS, refere que o número de casos na região até estava a diminuir, mas surgiu um segundo surto, “menos intenso do que o primeiro”. “Estimamos que a incidência de infeção, isto é, os novos casos que surgiram em Lisboa, tenha tido um pico por volta de 6 abril. Desde aí começou a descer paulatinamente, desceu até ao início de maio e depois começou novamente a crescer. Podemos chamar isto de um segundo surto, que terá tido o seu pico por volta de 8 de maio”, acrescenta.
Importa aqui fazer a distinção entre dois tipos de pico: o pico da incidência de infeção, que diz respeito ao dia em que determinada região regista o maior número de novos casos (aquele que terá acontecido por volta de 6 de abril e 8 de maio em Lisboa); e o pico de prevalência de infeção, que diz respeito ao maior número de pessoas infetadas ao mesmo tempo (aquele que só deve acontecer em junho).
Enquanto Lisboa e Vale do Tejo deverá atingir o pico de prevalência na próxima semana, as estimativas do Covid-19 Insights revelam que na Madeira e Açores esse pico já terá ocorrido em abril, no Centro no final de abril, no Algarve a meio de Abril, no Alentejo entre final abril e início maio e no Norte no início de maio — “mais tarde do que era estimado”. “Lisboa, de facto, alargou bastante o calendário do pico até meados de junho”.
Resultado do desconfinamento ou casos pontuais?
A situação em Lisboa e Vale do Tejo tem sido um dos principais temas nas últimas conferências de imprensa diárias da DGS. Se o número diário de casos tem diminuído no resto do país, por que razão continua a aumentar nesta região? “Tudo leva a crer que estamos perante surtos de novos casos associados a determinados locais de trabalho, empreendimentos comerciais e industriais e também a algumas situações de obra, de construção civil”, respondeu Marta Temido este sábado, rejeitando a ideia de que o aumento de novos casos possa ser resultado das medidas de desconfinamento, apesar de se saber que a mobilidade no país aumentou depois do confinamento.
De acordo com os dados da Direção-Geral de Saúde (DGS), o concelho de Lisboa é o que regista o maior número de casos de infeção pelo novo coronavírus (2.182), seguindo-se cidades como Vila Nova de Gaia (1.552), Porto (1.347), Matosinhos (1.269), Braga (1.209) e Gondomar (1.077). No entanto, Lisboa não é o único município que compõe a região de Lisboa e Vale do Tejo e há outros locais que continuam a ver o número diário de infeções aumentar significativamente, como é o caso de Loures, que teve 48 novos casos entre sexta-feira e domingo, ou a Amadora, com mais 39 casos.
Pedro Simões Coelho confirma que este aumento de casos, segundo os dados analisados pela COTEC e da NOVA IMS, poderá estar relacionado com “um conjunto de fenómenos localizados que tiveram a ver com determinadas empresas, determinadas indústrias” e não propriamente com as medidas de desconfinamento que acabaram por ter resultados semelhantes em todo o país. “Se tudo correr como esperado, e se isto for apenas o resultado desses fenómenos isolados, o que estimamos é que isto tenha tido feito um adiamento do pico de prevalência da infeção para inícios de junho, mas não mais do que isso”, acrescenta.
Numa análise ao mapa que delimita a região de Lisboa e Vale do Tejo, há algumas cidades que se destacam com um maior número de casos de infeção. A cidade de Lisboa lidera a lista, com 2.182 casos até este domingo, seguindo-se Sintra (1.078 casos), Loures (828), Amadora (663), Cascais (520), Odivelas (453), Oeiras (363), Almada (352), Vila Franca de Xira (351), e Seixal (318).
O aumento do número de casos nesta região pode ser associado a vários episódios que foram acontecendo ao longo do mês, desde casos registados em hostels de Lisboa a fábricas no Montijo e também na Azambuja. Neste último, várias empresas da região detetaram na semana passada casos positivos de Covid-19 em trabalhadores. Na Sonae MC da Azambuja, por exemplo, há 121 trabalhadores infetados, sendo que apenas 30 apresentam sintomas. Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, refere que foram realizados perto de mil testes só nas empresas da Azambuja.
“Não serão os incumprimentos das regras gerais pelas estruturas laborais que estarão a originar, provavelmente, estes focos. Mas sim algum relaxamento nos momentos que não são de trabalho formal — almoço, mudas de roupa, eventual utilização de meios de transporte coletivos, que não transportes públicos”, afirmou a ministra da Saúde, acrescentando que, em vários casos, “são as condições de vida que muitas vezes geram algum tipo de menor cumprimento das regras e de menor compreensão das mesmas”.
Pedro Simões Coelho explica que, nos surtos, “o que importa são as cadeias de transmissão não controladas” e há que ter em conta que os municípios mais afetados “são municípios onde reside muita gente que tem o seu local de trabalho em Lisboa ou noutro local”. “Vimos, aliás, nos casos das empresas, que a maior parte das pessoas que trabalha nessas empresas se desloca de outros municípios e de transportes públicos. Aqui poderá ter a ver com o facto de haver muita população jovem ativa que se infetou nestas mobilidades e infetou para os locais de trabalho. Não me parece que possa ter outra explicação para além dessa”, refere.
Já Mário Durval, delegado de saúde da região de LVT, refere que não se trata de um foco, mas sim “muitos focos” e sublinha que a hipótese da influência dos transportes públicos na transmissão do vírus é apenas um “palpite” que “nunca ninguém provou”. “Se o contágio é feito no comboio, porque é que só as pessoas que vão no comboio para a Sonae é que se contagiam?”, questionou, destacando que “aquilo que pesa aqui muito certamente é a densidade habitacional de muitos dos trabalhadores envolvidos, pertencentes a comunidades que têm normalmente habitação comum a muitas pessoas”.
O caso da Sonae na Azambuja, reforça o delegado de saúde, não é a origem dos surtos. “A Sonae é o fim de uma quantidade de pequenos focos que existem nas comunidades de onde essas pessoas vêm e é aí que os delegados de saúde dos locais de origem desses trabalhadores estão a concentrar os esforços para isolar os positivos que existem nessas comunidades”.