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Naquele dia de inverno, Ana Rita estava à espera do autocarro no terminal rodoviário. Sentiu-se observada. Um homem “na casa dos 60 anos” estava a masturbar-se enquanto “olhava fixamente com um risinho sinistro” para ela. “Fiquei em pânico”, conta. O mesmo aconteceu a Marina, mas dentro de uma sala de cinema: “Eu desviei o olhar, ele não”. Rodrigo (nome fictício) só queria fazer o seu trabalho. “De repente, o cliente começou a encostar-se a mim, a tocar-me”, lembra. Um homem aproximou-se por trás de Andreia (nome fictício) numa loja e disse-lhe ao ouvido: “És toda boa, pagava-te 100 euros”. Raquel estava num centro comercial na companhia do namorado. Ao passar por ela, um homem colocou-lhe a mão “entre as nádegas”. “Ele riu-se para mim. Não consegui dizer nem fazer nada”, lamenta.
Nomes diferentes, histórias diferentes. Mas todas têm algo em comum. Todas podem configurar um crime de importunação sexual, de acordo com o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, João Massano, e com o advogado Paulo de Sá e Cunha.
Foi há exatamente seis anos — no dia 5 de agosto de 2015 — que este crime foi autonomizado no Código Penal. A importunação sexual envolve atos exibicionistas e constrangimento e, nesse ano, passou a englobar também as propostas de teor sexual — por outras palavras, piropos.
Os antecedentes mais imediatos daquilo que é hoje o crime de importunação sexual remontam à versão do Código Penal de 1995. Nesse ano, os atos exibicionistas passaram a ser crime. Em 2007, houve nova alteração e os contactos de natureza sexual também passaram a ser incluídos.
A última atualização foi, precisamente, em 2015. Atualmente, o artigo 170.º do Código Penal define que “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
É o que diz a lei. Mas em que se traduz isto na prática?
Até 2019, foram condenadas a pena de prisão efetiva seis pessoas pelo crime de importunação sexual. Número de inquéritos e acusações sobe a cada ano
O número de inquéritos e acusações por importunação sexual apresenta uma ligeira tendência de subida ao longo dos anos, desde 2015. Nos seis anos em que a lei está em vigor, o Ministério Público instaurou 5.602 inquéritos pela eventual prática de crime de importunação sexual e deduziu 677 acusações pelo mesmo tipo de crime. Só este ano, até ao final de julho, foram instaurados 538 inquéritos pela eventual prática de crime de importunação sexual e deduzidas 98 acusações — um número que quase chega ao total do ano passado. Ao todo, em 2020, foram instaurados 941 inquéritos pela eventual prática de crime de importunação sexual e deduzidas 103 acusações, de acordo com dados fornecidos ao Observador pelo Ministério Público.
Questionado, o Ministério Público não consegue no entanto precisar quais destes inquéritos e/ou acusações resultam de propostas de teor sexual (piropos) — precisamente porque a importunação engloba outros ilícitos, como o contacto físico não desejado e os atos exibicionistas. Continua assim sem se saber o efeito da introdução na lei da criminalização das propostas de teor sexual, uma vez que não é possível fazer essa desagregação.
Fazendo as contas, é possível no entanto concluir que pouco mais de 12% dos inquéritos resultam em acusação. Na resposta enviada ao Observador, o Ministério Público explica ainda que estes dados “abrangem todas as realidades que se incluem no tipo de crime de importunação sexual, abrangendo o assédio sexual e os atos exibicionistas”.
Quanto a condenações, só há dados oficias até 2019, mas os números também mostram uma tendência de subida. Entre 2015 e 2019, 233 pessoas foram condenadas por crime de importunação sexual, em processos crime na fase de julgamento findos nos tribunais judiciais de 1ª instância, segundo decisão final condenatória.
Em 2015, ano em que o artigo 170º do Código Penal sofreu as alterações já aqui analisadas, um total de 36 pessoas foram condenadas. Em 2019, foram 55. É uma subida de cerca de 2%. Não se sabe no entanto que comportamentos ou situações levaram a estas condenações nem que tipo de penas foram aplicadas. Os dados são da Direção-Geral de Políticas de Justiça e foram enviados ao Observador pelo Ministério da Justiça.
Como é possível observar na informação disponibilizada ao Observador pelo Ministério Público, seis arguidos foram condenados a prisão efetiva. A maior parte é condenada a pena de multa (143). Segue-se prisão com pena suspensa com regime de prova (37) e prisão suspensa simples (13). Há ainda registo de condenações a prisão suspensa com sujeição a deveres (12), prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade (6) e medida segurança de suspensão da execução do internamento com sujeição a regras de conduta (3). Neste período, não houve condenações a medidas de segurança de internamento, prisão suspensa com regras de conduta, admoestação, prisão subsidiária suspensa ou medida de segurança suspensa com regras de conduta.
Analisando estes dados por comarca, as de Lisboa, Lisboa Norte e Oeste sobressaem entre as restantes, registando a maioria das condenações entre 2015 e 2019 (73 no total). Segue-se o Porto e Porto Este (34, no total), Aveiro (17) e Braga (16). As únicas comarcas sem registo de qualquer condenação por crime de importunação sexual, neste período, foram Guarda e Portalegre.
São números numa tabela, informações estatísticas que constam de uma base de dados. Mas cada número resulta de um caso real, com pessoas reais e no mundo real. O Observador ouviu dezenas de testemunhos. Estes são (apenas) alguns deles. Ipsis verbis.
“Fiquei gelada, sem saber o que fazer, sem conseguir levantar-me, mudar de lugar ou sair dali e coberta de vergonha, como se quem estivesse a fazer alguma coisa errada fosse eu”
Raquel T., 25 anos: “Aconteceu em Lisboa, num centro comercial qualquer. Eu descia as escadas rolantes com o meu companheiro da altura. Vinha de saia, lembro-me que estava calor. Um homem de 30-40 anos ultrapassou-me e, no movimento, colocou a mão entre as minhas nádegas com convicção. Olhei para trás, preparada para disparatar, mas ele riu-se para mim. Virou-se para mim, para ter a certeza que eu o tinha visto e lançou-me um smirk [sorriso mal-intencionado] que me petrificou. Não consegui dizer nem fazer nada. Ainda hoje ando com as costas viradas para o corrimão das escadas rolantes”.
Mariana Almeida, 19 anos: “Estava a voltar do supermercado para casa e estava uma carrinha parada num cruzamento. Reparei que o homem (o condutor) estava a olhar para mim fixamente. Fiquei desconfortável, mas segui o meu caminho. Para ir para casa, tinha de passar por trás da carrinha dele. Quando me aproximei, ele abriu o vidro e gritou coisas como ‘és toda boa’ e ‘comia-te toda’. Como faço sempre, ignorei. Apenas apontei a matrícula da carrinha. Fiquei assustada, mas segui o meu caminho. Depois, ele fez-se à estrada para me acompanhar lado a lado. Foi a andar super devagar ao meu lado, a fazer-me propostas, a perguntar se queria ir com ele e se eu precisava de boleia. Gritou para eu entrar na carrinha. Continuou até eu chegar a casa. Muita coisa me passou pela cabeça naqueles cinco minutos: o que é que eu iria fazer caso ele me tentasse agarrar e meter à força na carrinha? Quando cheguei ao portão de casa, o homem ficou extremamente furioso por o ignorar. Gritou ‘és uma puta’, ‘vai-te f…’, ‘vai para o c…’. Mais um homem que não aceitou o ‘não’ como resposta. Foi o meu episódio mais intenso. Não foi a primeira vez, nem vai ser a última. O assédio está cada vez mais descontrolado. Se fosse à esquadra fazer uma queixa cada vez que sou assediada, passava lá a vida”.
Beatriz Ribeiro, 24 anos. “É o meu caso mais chocante. Foi durante uma manhã, quando comecei a ir para a escola sozinha de metro. Devia andar no 8º ano. Um homem sentou-se à minha frente e começou a masturbar-se a olhar para mim. Na altura, lembro-me de não perceber muito bem o que estava a acontecer. Só me lembro de perceber que devia tentar não fazer contacto visual com ele. Estava mais gente no metro. Ninguém fez nada. Também já fui assediada por polícias duas vezes já em adulta. Este tipo de situações acontecem desde que me lembro. Sempre que saio de casa penso nisto. Há muita roupa que escolho não usar se sei que vou andar sozinha nesse dia. Há muitas coisas que gostava de fazer sozinha na rua mas não faço”.
Rodrigo Faria (nome fictício), 29 anos: “Faço demonstrações de vendas de produtos em casa de clientes. Estava em casa de um senhor mais velho. O namorado dele, mais novo, estava presente. Quando comecei a fazer a demonstração, o senhor começou a ter conversas super-sexuais. E o namorado estava a começar a ficar constrangido. De repente, começou a encostar-se a mim, a tocar-me. Chegou ao ponto em que, quando estava a fazer a demonstração para os dois, do nada recebi uma mensagem pelo WhatsApp dele totalmente nu. Eu disse que a demonstração estava terminada, saí e fiz queixa na empresa, não na polícia, para que aquele local ficasse sinalizado e não houvesse mais situações do mesmo género”.
Andreia Simões (nome fictício), 28 anos: “Estava a passar num corredor de uma loja e na direção oposta vinha um senhor com um guarda-chuva na mão. Quando passa por mim, bate-me com o guarda-chuva no meio das pernas. Na altura achei que ele tinha batido sem querer: era um senhor mais velho e o corredor era um pouco apertado. Continuei dentro da loja mas, já noutro sítio, de repente o mesmo senhor passa atrás de mim, aproxima-se do meu ouvido e diz: ‘És toda boa, pagava-te 100 euros’. Desta vez, consegui reagir e, assim que ouvi aquilo, comecei a gritar algo como ‘este senhor é um porco’ (e já não sei bem, mas penso que referi chamar a polícia), o que chamou a atenção de toda a gente e ele imediatamente começou a fugir pela loja fora e nunca mais o voltei a ver”.
Marina R., 36 anos: “Por volta de 2003, quando tinha 18 anos, apanhei o autocarro no Campo Grande [Lisboa] ao final da tarde. Surpreendentemente, eram poucos os lugares ocupados naquele dia e, a dado ponto da viagem, senti que alguém me olhava fixamente. Fiquei incomodada, mas a princípio não tive coragem de olhar para ver quem era. O sentimento de estar a ser observada continuou e, quando finalmente ganhei coragem para olhar, percebi que um homem de meia-idade, no banco do outro lado do corredor, estava a olhar para mim e a tocar-se. Pouco tempo depois, entre 2004 e 2006, estava sozinha no (cinema) Monumental numa sessão das duas da tarde e, mais uma vez, a certa altura, senti que estava a ser observada. Temi que se estivesse a passar outra vez a mesma situação que a do autocarro. E, efetivamente, estava. No meu lado direito, a uns quatro bancos de distância, estava um homem a olhar para mim e a masturbar-se. Eu desviei o olhar, ele não. Em ambos os casos, a minha reação foi exatamente a mesma: uma não reação. Fiquei gelada, sem saber o que fazer, sem conseguir levantar-me, mudar de lugar ou sair dali e coberta de vergonha, como se quem estivesse a fazer alguma coisa errada fosse eu. Em nenhum dos casos apresentei queixa porque, naquele tempo, nem sequer sabia que o que estava a acontecer era crime”.
Inês Lourenço, 26 anos. “Foi no ano passado, antes de entrarmos em confinamento. Tinha de apanhar o comboio na estação de Benfica todos os dias, de manhã. Estava sozinha. No caminho, para a estação, um homem estava escondido, ao pé de uma esquina. Quando olhei, estava a massajar-se, a olhar para mim. Tentei ir o mais rápido possível para o pé de pessoas. Só pensei ‘isto é normal, algum dia isto teria de acontecer’. Considerava-me sortuda por nunca nada me ter acontecido neste aspeto. E lá fui trabalhar às 7h00. Claro que fiquei com nojo de toda a situação. No final do dia, depois do trabalho, voltei. Até que me encontro às oito da noite sozinha e com um medo terrível de ir para casa. Aí sim, é que me apercebi que a situação tinha sido mais ou menos grave e não devia ser considerada de forma leve. Liguei a uma amiga que também vivia na zona. Estive com ela, contei-lhe, desabafei com ela. Senti-me perturbada. Até então, tinha estado adormecida. Decidi ir à polícia para me tentar sentir bem e para que eles ficassem atentos. Reportei a situação e perguntaram-me se conseguia descrever o homem. Disse que sim e, pelos vistos, nesse mesmo dia, ele foi fazer exatamente o que tinha feito comigo para outro sítio com outras raparigas. Avançámos com a queixa. Este ano, fui chamada à polícia para reportar e oficializar a situação. O próximo passo seria identificá-lo. A polícia andava à procura dele, mas não sei se terá fugido”.
Ana Rita Maciel, 24 anos: “Metro em direção à Pontinha, hora de ponta e tudo tipo sardinha em lata. Eu estava de pé, virada para a janela do comboio e na zona entre os dois bancos, a segurar-me no ferro de um deles. Portanto, estava completamente de costas para as pessoas que estavam em pé no corredor da carruagem. Não dava para me virar para nenhum dos lados. Era obrigada a estar nesta posição. Apercebo-me que tenho um homem mesmo, mesmo coladinho a mim. A parte da frente do corpo dele está colada à parte de trás do meu. Começo a sentir aquilo que toda a gente sabe. Viro a cabeça, olho para ele, mais uma vez numa situação de aflição e ele está a olhar para outro lado. Mexo-me para ver se ele percebe que estou desconfortável, volto a olhar para ele, e nada. Ao mexer-me, e como estamos tão juntos, vejo que ainda estou a fazer pior. E então, fico ali petrificada, à espera que o metro comece a esvaziar e eu possa fugir para bem longe”.
Ao Observador, o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, João Massano, explica que, com base nos dados e informações conhecidos, todos estes casos podem configurar um crime de importunação sexual. No caso de Mariana está ainda em causa, para além da importunação sexual, o “crime de perseguição (art. 154 – A do Código Penal)”. E o caso de Inês, por exemplo, “insere-se nos atos exibicionistas”, detalha.
A mesma opinião tem o advogado Paulo de Sá Cunha: “São casos de ‘exibicionismo’, o que corresponde a uma das ações típicas” do crime de importunação sexual. Paulo de Sá e Cunha explica também que, no caso de Andreia, há uma formulação de proposta de teor sexual: “O ‘piropo’ é aqui acompanhado de uma proposta de teor sexual (se bem que apenas implícita ou subentendida: “pagava-te…”)”.
De acordo com os testemunhos de Rodrigo, Ana Rita e Raquel, o advogado explica que “poderão configurar o crime de importunação sexual na segunda modalidade de ação típica prevista no art.º 170.º, (a par do “exibicionismo”), que se traduz em constranger a vítima a contacto de natureza sexual”. Paulo de Sá e Cunha detalha que tal ato de natureza sexual “não pode ter a gravidade suficiente para se tratar de um ‘acto sexual de relevo’, caso em que já se estaria em presença de um crime mais grave, de coação sexual – art.º 163.º do Código Penal”.
O advogado João Massano adianta ao Observador que o enquadramento legal “dependerá de vários fatores, como, por exemplo, a idade da vítima, frequência, relevo do ato sexual”. Se a vítima tiver menos de 14 anos, aí o crime de importunação sexual “passará a ser abuso sexual de criança (art. 171º, do Código Penal)”.
“Em 2015, houve polémica porque se disse que era a lei do piropo. Que os deputados não tinham mais que fazer”
Há seis anos, Carla Rodrigues era deputada do PSD. Esteve envolvida na lei que avançou com penas de prisão para o crime de importunação sexual e propostas de teor sexual. Portugal tinha subscrito a Convenção de Istambul, que estabelecia “um maior rigor na ação dos Estados em relação à proteção das mulheres e da violência contra as mulheres”. Todos os países da União Europeia assinaram a Convenção de Istambul em 2011 e 21 ratificaram-na. Carla Rodrigues foi a responsável pelo grupo de trabalho que tratou do pacote legislativo da Convenção e autonomizou, por exemplo, o crime de mutilação genital feminina e criminalizou a perseguição e os casamentos precoces e forçados. E é neste contexto — no meio de um vasto pacote legislativo sobre este tipo de matérias — que surge a criminalização das propostas de teor sexual.
Percebi que havia margem para atuarmos. O crime de importunação sexual englobava atos exibicionistas e o contacto físico, mas nenhuma importunação verbal. Nós, mulheres que fazíamos parte do grupo de trabalho, já tínhamos todas sido importunadas. Sabíamos o incómodo, desconforto e gravidade desse tipo de situação. E entendemos, e eu particularmente, pela minha experiência pessoal, e porque sou mãe de uma menina, que havia margem para atuar”, lembra ao Observador Carla Rodrigues.
Antes, já tinham surgido propostas do Bloco de Esquerda, mas nunca houve consenso. E a então deputada do PSD não esquece que, na altura, foi preciso “fazer muita força” para avançar com esta alteração à lei. “Houve polémica porque se disse que isto era ‘lei do piropo’ e a criminalização do piropo. Disseram que os deputados não tinham mais nada que fazer e que andavam a preocupar-se com coisas banais. Muitas mulheres não perceberam o alcance desta lei. Diziam que até gostavam de um piropo e que isso não tinha nada de mal. Mas não estávamos a falar de meros elogios ou graçolas. Não foi isso que nos preocupou, mas sim coisas muito mais graves”, explica Carla Rodrigues.
Em 2015, a deputada do PS Isabel Moreira também fez parte do grupo de trabalho sobre as implicações legislativas da Convenção de Istambul. A deputada socialista concorda com Carla Rodrigues: “Em alguns momentos, a discussão foi um pouco ridicularizada. Pensava-se que estávamos a falar de simples piropos, como ‘és bonita’. E penso que, hoje, as pessoas têm consciência que não é isto que está em causa”, afirma a socialista ao Observador.
Passados seis anos, Isabel Moreira não tem dúvidas: “Houve um aspeto essencial: o efeito de sensibilização que a lei teve. O facto de as propostas de teor sexual terem passado a ser crime em 2015, teve um efeito de sensibilização para o problema muito grande”.
E tudo, porque, finalmente, foi possível reunir o necessário consenso para alterar o artigo 170º do Código Penal, depois autonomizado a 5 de agosto de 2015.
Confrontada agora com os números de inquéritos, acusações e condenações, Carla Rodrigues, confessa estar surpreendida. “São elevados”, reconhece. “Mas não retratam o que é a realidade”, afirma. Porquê? “São apenas uma fatia do número de crimes que é realmente cometido todos os dias no nosso país”, alerta.
Ainda assim, a também advogada destaca a importância da tendência de subida dos números a cada ano que passa. Mas deixa uma ressalva: “A tendência de subida não significa que haja um maior número de crimes. Bem pelo contrário, acho que não há. Haverá, sim, mais mulheres conscientes dos seus direitos e da gravidade destas condutas, que começam a perder o medo e a reagir. E reagem. Houve ainda uma desocultação deste crime e o encorajamento das mulheres e das meninas para denunciarem”.
A análise da deputada do PS, Isabel Moreira, à subida dos números vai no mesmo sentido: “As mulheres sentiram-se empoderadas por esta tipificação (criminalização das propostas de teor sexual) e isso é importante. É importante ter-se discutido publicamente a partir desta tipificação aquilo que é um facto social: sabermos todos e todas que o espaço público ainda não é nosso. Não é igual para homens e mulheres. O direito penal não é suficiente. Falta educação, sensibilização, mas a tipificação do crime ajudou a que a discussão fosse feita”.
Não obstante, Carla Rodrigues, antiga deputada social-democrata, deixa um alerta: “Em muitos destes casos, os arguidos são absolvidos não porque não tenham praticado o crime, mas porque não há provas suficientes para serem condenados. Na dúvida, absolve-se o arguido. É difícil provar, juntar prova suficiente e razoável para a condenação”, lamenta.
A lei continua atual?
Surge então uma pergunta: é preciso alterar a lei? Carla Rodrigues é clara: “A lei tem uma razão de ser e neste momento está adequada. Não acho que haja uma absoluta necessidade de uma nova alteração legislativa. Tem de haver estabilidade. Defendo é uma melhor aplicação pelos tribunais da lei que existe. Porque a lei, em termos gerais, é boa. Tem é de ser bem aplicada. E quem a aplica são os tribunais. Pessoalmente, não defendo mais alterações legislativas neste momento nesta matéria”.
O juiz desembargador Eurico Reis concorda: “Não acho bem mudar a lei. A lei tem de ter alguma estabilidade”. Ao Observador, o magistrado afirma que deve ser “o bom senso” dos juízes a “temperar algumas coisas que estão menos bem feitas”.
Eurico Reis reconhece que, na altura, a lei “era demasiado abrangente, com conceitos pouco claros”. O juiz explica que tal poderia gerar situações de “injustiça e desproporcionalidade”. Mas, numa altura em que se celebra o sexto ano desde que este crime foi autonomizado no Código Penal, Eurico Reis não tem dúvidas: “Ao fim destes anos, essas possibilidades de excessos e desproporcionalidades acabaram por não se concretizar”, afirma, com base no número de inquéritos e acusações referidos pelo Ministério Público. “Estar sempre a mudar a lei pode não ser útil nem resolver problemas”, resume o juiz. “E até criar mais”, alerta.
Opinião contrária tem a deputada não inscrita Cristina Rodrigues.
A antiga parlamentar do PAN tem trazido para cima das mesas de discussão do Parlamento várias propostas relativas à violência contra as mulheres. E destaca a importância da atualização que foi feita em 2015 ao crime de importunação sexual, ao passar a incluir os piropos. “Esta lei foi, de facto, um passo importante. Foi o reconhecimento de que há certas condutas que são erradas, que merecem censura social e que, por isso, são inaceitáveis — condutas com as quais muitos de nós crescemos e estamos habituados”, afirma em declarações ao Observador.
Mas, agora, a atual lei já não chega, afirma. A deputada não inscrita defende que esta lei tem limites e que, em 2015, “o legislador devia ter ido mais longe”. Por isso mesmo, e volvidos seis anos, Cristina Rodrigues quer agora aumentar de um para dois anos a pena de prisão prevista para crimes de assédio sexual e ainda penalizar quem dirigir a outra pessoa “expressões de cariz sexual”. O projeto deu entrada na Assembleia da República no início de julho. “A lei está desatualizada. Precisamos de voltar a olhar para ela e perceber o que podemos fazer para a melhorar”, apela.
O projeto prevê o aumento das penas em determinadas circunstâncias. Pretendi também clarificar os tipos de expressões de cariz sexual, ou seja, tornar a letra da lei mais abrangente, porque neste momento apenas refere as propostas de cariz sexual, e isso tem limitado algumas queixas. Independentemente de haver ou não propostas, se forem expressões de cariz sexual, deve ser enquadrado no crime de importunação sexual”, defende Cristina Rodrigues ao Observador.
A deputada dá um exemplo concreto que usou no projeto. “É uma expressão que não está enquadrada na formulação atual, mas estará na formulação que proponho: ‘Deixa-me caiar-te por dentro’. Não é entendido como uma proposta, mas efetivamente tem um cariz sexual muito explícito. É importante incluir estas situações”, considera.
A deputada não inscrita, ex-PAN, afirma ainda que é preciso trabalhar na formação dos órgãos de polícia criminal, do Ministério Público e dos juízes. “Este tipo de crimes continua a ser visto como crimes de menor gravidade. São desvalorizados”. A explicação? “Julgo que está associado ao facto de a grande maioria das vítimas serem mulheres e de vivermos numa sociedade machista. Acredito que a desvalorização não é propositada. Ela acontece porque tem um fundamento cultural. Temos de a combater”, apela.
Na Assembleia da República, ainda há uma forma um pouco desatualizada de olhar para este tipo de crimes. É preciso um novo olhar, mais adequado aos tempos de hoje. E não podemos ignorar o facto de a maioria dos deputados da Assembleia da República serem homens e a maioria das vítimas serem mulheres”, insiste Cristina Rodrigues.
Deputada Cristina Rodrigues quer agravar penas para situações de assédio sexual
“Juiz deve analisar perfil e passado do alegado agressor e personalidade da alegada vítima”
Estamos no tribunal. De um lado está a alegada vítima. Do outro, o alegado agressor. Em causa, um alegado crime de importunação sexual. Palavra de um contra o outro, como pode um juiz tomar uma decisão?
“Não é fácil ser juiz”, resume o desembargador Eurico Reis em declarações ao Observador. O juiz explica que, nestas situações, quem tem o processo em mãos tem de “analisar as provas, com muito cuidado e de forma criteriosa”. E adianta: “Devemos pôr-nos no lugar dos outros. E isso nem sempre é fácil. E tentar também perceber as consequências que decorrem dos atos que são praticados”.
Num sentido mais prático, o juiz desembargador Eurico Reis explica que é importante analisar o perfil do alegado agressor: “Se é um ‘chico esperto’ que tem a mania que o mundo é dele e que o mundo gira à volta dele, se é reincidente… No fundo, o perfil e o passado (do alegado agressor)”. Depois, importa também avaliar a pessoa que faz a acusação: “É preciso analisar a personalidade da alegada vítima e as consequências (que o alegado crime) têm para ela”. E acrescenta: “Se a perturbação pessoal da alegada vítima for muito intensa, ela tem que ser compensada. Tem que sentir que foi feita justiça”.
Carla Rodrigues, antiga deputada do PSD que avançou com a lei que criminalizou as propostas de teor sexual, vai mais longe: “É preciso uma mudança de mentalidade da sociedade, mas também dos juízes portugueses. Eles têm que aplicar a lei — obviamente há um critério subjetivo — mas não têm que desvalorizar a gravidade da lei em função das suas convicções pessoais. O legislador agiu, mas esse trabalho tem que ser complementado pelos tribunais”.
O Observador questionou a PSP para perceber, na prática, como é que aborda uma pessoa que se desloca a uma esquadra para fazer queixa de um alegado crime de importunação sexual e que tipo de diligências desenvolve, mas não obteve resposta. A PSP também não fornece dados oficiais sobre o número de queixas recebidas neste período.
“Piropos e verbalizações têm impacto na construção da identidade social” das vítimas
Como se desenvolve uma pessoa que é alvo de crimes de importunação sexual desde criança? Que efeitos psicológicos este fenómeno tem?
O psicólogo clínico do Observatório do Trauma do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, João Veloso, explica que tudo o que sejam “instalações negativas, e particularmente as que trazem insegurança ou a construção de uma identidade negativa, vão ter sempre um impacto no desenvolvimento da pessoa”.
E no caso de crianças e jovens? O especialista, que acompanha esta população, lembra que estão numa fase de construção de identidade e, por isso, alerta: “Os piropos e as verbalizações vão ter um impacto negativo e de inibição, ao mesmo tempo que têm um impacto na construção da identidade social, relativamente a um conjunto de reações que vão ter no futuro, do ponto de vista da espontaneidade e naturalidade”.
Algumas das consequências “podem ser instaladas do ponto de vista psicopatológico”, explica o psicólogo clínico do Observatório do Trauma do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Neste caso, este fenómeno corresponde “a uma inibição de comportamentos” e estamos perante “instalações muito negativas”. De forma geral, tal acontece quando “muitas dessas instalações negativas já advêm de pessoas que tem exposição a experiências negativas na sua vida”, explica João Veloso.
E que efeitos pode ter tido a pandemia neste fenómeno? O especialista explica que as pessoas que já apresentavam níveis de frustração elevados podem apresentar “comportamentos mais intensos e mais desregulados”.
O juiz desembargador Eurico Reis não tem dúvidas: “A pandemia seguramente agravou a situação. Há um maior stress, a situação psicológica das pessoas agravou-se. Tudo estará mais à flor da pele”, considera.
Devia a importunação sexual ser um crime público?
“Os crimes públicos são aqueles cujo processo se desencadeia oficiosamente pelo Ministério Público, após aquisição da notícia do crime – por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia”, indica a lei. Devia a importunação sexual ser incluída?
O juiz desembargador Eurico Reis é taxativo na resposta que dá ao Observador: “Não”. Porquê? “Os processos judicias não devem servir para agravar a penalização que a vítima já sofre. Devemos deixar as pessoas agirem conforme as suas necessidades”, responde. O juiz desembargador deixa no entanto uma ressalva: no caso de menores, a situação “é diferente”. “Aí, há um dever de os proteger, de agir”, defende.
A posição da deputada não inscrita Cristina Rodrigues vai noutro sentido. A parlamentar considera que “todos os crimes de cariz sexual devem ter natureza de crime público”. “(Se o crime de importunação sexual fosse crime público) daria uma maior segurança às vítimas, retirava de cima delas o peso de fazer queixa. Deixa claro que é um crime contra a sociedade e não contra aquela pessoa em particular”.
Do beijo forçado à chantagem sexual. O assédio sexual deve ser crime público?
De acordo com um estudo sobre a violência contra as mulheres da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, na sigla inglesa) publicado em 2014, entre 83 e 102 milhões de mulheres (45% a 55%) em todos os Estados-membros são alvo de assédio sexual desde os 15 anos. Entre 24 a 39 milhões de mulheres de todos os Estados-membros experienciaram assédio sexual no ano anterior a este estudo.