Dentro da casa está estacionado um carro. O pai das gémeas, João Moura, tentou escondê-lo, isolando-o do resto da habituação improvisada com uma parede de pladur, mas os buracos que ali se foram formando denunciam o que está do outro lado: um carro velho, lixo e muitos sacos. É que aquele espaço era, de facto, uma garagem que João e a mulher, Mariana Santos, adaptaram para ali poderem ir viver com a filhas. Na verdade, adaptaram não só a garagem, mas também o café adjacente — o que também é percetível pelo toldo vermelho da Buondi, já esburacado e sujo, que pende sob a porta que dá acesso à casa.
Nas outras divisões, o caos nem por isso é menor: há baratas em cima dos colchões do beliche onde as filhas dormem; as paredes e o teto estão a descamar por causa da humidade — que vai também destruindo os desenhos pintados pelas crianças; há pilhas de caixas de papelão com cobertores rotos e sujos lá dentro um pouco por todo o lado; a casa de banho não tem banheira; os pais dormem num sofá encardido na sala; a cozinha é o balcão do antigo café que ali existia.
Foi este o cenário que a PSP encontrou no dia 14 de agosto, quando se dirigiu à casa para institucionalizar as crianças e deter os pais por suspeitas de dois crimes de violência doméstica. “As vítimas do crime eram as filhas gémeas do casal, de 10 anos de idade, que, suspeita-se, viviam em condições deploráveis e sem salubridade no interior de uma garagem, andavam mal vestidas e higienizadas, não iam à escola e presenciavam agressões físicas e psicológicas permanentes entre os pais“, anunciava a PSP num comunicado emitido apenas cinco dias depois, a 19 de agosto.
O caso era novo aos olhos da comunicação social, mas conhecido há muito pelas entidades competentes. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora conhecia-o, pelo menos, desde 2013, quando recebeu a primeira sinalização desta família. O Ministério Público (MP) conhecia-o, pelo menos, desde 2016. Nesse ano, recebeu das mãos da CPCJ da Amadora os processos relativamente a esta família, mas decidiu não abrir qualquer processo. Numa resposta escrita enviada ao Observador, a Procuradoria-Geral da República (PGR) explica que tudo foi feito para localizar a família, mas não conseguiram encontrá-la: é que a casa onde viviam, antes de se mudarem para a garagem, tinha sido demolida e ter-se-ia perdido o rasto da família. Nos três anos seguintes, ninguém fez nada. Só em 2019, após três sinalizações, os pais foram detidos e as crianças institucionalizadas.
A incapacidade de localizar a família surge, aliás, como resposta às várias interrogações sobre a falta de ação das entidades competentes até agora. Mas cria, ela própria, uma outra interrogação: como é que foi tão difícil encontrá-los quando, afinal, João, Mariana e as gémeas só se mudaram para o outro lado da rua, exatamente a 10 metros do local onde viviam antes e na mesma Estrada Militar da Damaia?
A primeira denúncia. Mariana e as gémeas foram para uma casa abrigo, mas saíram 15 dias depois — e ninguém lhes seguiu o rasto
A família nem sempre viveu naquela garagem. João e Mariana conheceram-se em 2007 — ela trabalhava num café e ele “era filho de um amigo do patrão”, conta a mulher brasileira, de 34 anos, ao Observador. Quando as gémeas nasceram, no ano seguinte, casal mudou-se para um apartamento que João tinha herdado da família, na zona da Damaia. A vida corria-lhes bem: Mariana foi sempre conseguindo trabalhar em cafés ou empresas de limpeza. João trabalhava na sua oficina de automóveis na Estrada Militar, na Damaia — que existia exatamente em frente à garagem onde atualmente vivem. Além disso, tinham arrendado o primeiro andar dessa oficina — ganhando assim algum dinheiro extra.
“Mas ele [João Moura] tinha uma dívida às Finanças“, desabafa Mariana. O que levou o casal a vender o apartamento para saldar a dívida. Como o primeiro andar da oficina na Estrada Militar estava arrendado, Mariana e João construiram um anexo na parte de trás para passar a ser a sua casa nova — alegadamente sem autorização. “Gastámos mais de 10 mil euros. Passámos noites ali a fazer o chão. Pus um soalho no quarto das meninas que parecia de profissional”, conta a mãe.
Foi à porta daquele anexo que a CPCJ bateu em 2013. Em outubro desse ano, os alarmes soaram pela primeira vez: chegava à comissão a primeira denúncia relativa a duas crianças “por exposição a situação de violência doméstica”. O caso era o de uma família pobre: um casal com duas filhas gémeas, à data com cinco anos, a viver numa habitação ilegal. João e Mariana, que entretanto se tinha despedido para ajudar o marido, estavam a passar aquilo que a mulher descreve como “um momento mau”. Ambos desvalorizam, porém, as alegações de violência doméstica. “Eles [os elementos da comissão] estiveram lá, viram o quarto das meninas, viram a casa que a gente fez. Tivemos uma conversa. E perguntaram-me se eu queria sair de casa com as minhas filhas”, relata Mariana.
Aceitou. No dia 26 de dezembro de 2013, mãe e filhas foram para uma casa abrigo, para serem afastadas da violência doméstica a que estariam sujeitas por parte de João. Uma vez ali protegidas, o processo de promoção e proteção das menores foi arquivado — por se considerar que já não estavam expostas ao perigo. O que aconteceu a seguir, a CPCJ diz que não sabe, uma vez que não acompanha os casos arquivados nem é informada do desenrolar dos mesmos. O problema é que o que aconteceu foi que, duas semanas depois de ter dado entrada na casa abrigo, Mariana descobriu que estava grávida e decidiu voltar para casa, com as gémeas. “Vou voltar para a minha casa, com o meu marido. Vamos tentar”, recordou a mulher. E voltou, acabando por ter um aborto espontâneo.
Este regresso, porém, parece ter ficado fora do radar de qualquer entidade com competência para assegurar a segurança das crianças. Alguém devia ter acompanhado a Mariana e as filhas, depois da decisão de voltarem para casa? Se sim, não é claro quem o devia ter feito. A instituição que as acolheu não podia impedir a saída de Mariana, uma vez que as decisões das vítimas são sempre respeitadas, nem a saída das crianças, uma vez que estavam acompanhadas pela mãe. Também é certo que não se sabe qual a versão apresentada por Mariana junto da casa abrigo: podia, por exemplo, ter mentido e ter dito que ia para a casa de familiares. A instituição responsável pela casa abrigo poderia sempre ter comunicado a situação à CPCJ — o que poderia, por exemplo, ter motivado a reabertura do processo de proteção das gémeas —, mas não o terá feito por não ver ali qualquer perigo.
A CPCJ diz que deixou de acompanhar o caso precisamente por causa do “afastamento” de Mariana e das filhas “da situação de perigo”, que ditou o arquivamento do processo. Mas a Lei de Proteção de Crianças e Jovens diz que “a medida aplicada é obrigatoriamente revista findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses”. O Observador questionou a CPCJ sobre se esta revisão, supostamente obrigatória, foi feita, mas a comissão recusou responder.
Independentemente de quem tinha a responsabilidade, o certo é que mais ninguém procurou Mariana e as filhas para saber se estavam bem — e foi assim durante os três anos seguintes, até 2016.
A segunda denúncia. Processos não avançaram por não ser possível localizar os pais. Mas família só se tinha mudado para o outro lado da rua
Em 2016, a família ficou sem casa. Em outubro desse ano foi “promovida a demolição da construção”, confirma a Câmara Municipal da Amadora ao Observador, mas sem esclarecer porquê. Certo é que terá sido um momento determinante em quase tudo o que aconteceu — ou não aconteceu — a seguir.
Sem sítio onde viver, a família decidiu ocupar o espaço na garagem que tinha mesmo em frente, do outro lado da mesma rua — o número 23 da Estrada Militar, na Damaia. Mas, a partir dali, é como se tivesse desaparecido, pelo menos para as entidades que a procuraram quando surgiu uma nova denúncia de maus tratos às crianças.
A destruição da casa é, aliás, apontada por várias entidades — Câmara Municipal, CPCJ e Ministério Público — como justificação para o facto de, durante os três anos que se seguiram a essa segunda queixa, nada ter sido feito: ninguém sabia para onde tinham ido viver, depois da demolição da casa, e isso tornava impossível notificá-los, contactá-los ou acompanhar a situação. Ninguém esclarece, porém, quantas tentativas foram feitas e por que meios.
Essa nova sinalização, três anos depois da primeira, voltava a apontar para a eventual exposição das crianças a uma “situação de violência doméstica”. O processo de 2013 foi reaberto e, segundo explica a CPCJ da Amadora em comunicado, “foram feitas diversas diligências para contactar os pais e obter o consentimento para a intervenção e assim proceder-se à avaliação da situação de perigo reportada”. Tal não chegou a acontecer “por desconhecimento do seu paradeiro”. Por outras palavras, a CPCJ não conseguiu encontrar a família — o que levanta dúvidas sobre a celeridade com que os técnicos procuraram fazê-lo. É que esta denúncia foi recebida em setembro, um mês antes de a casa anterior ter sido demolida. Ou seja, quando a família foi sinalizada pela segunda vez, ainda vivia na casa que a CPCJ da Amadora visitou em 2013 — aquando da primeira sinalização.
Seja como for, e perante a impossibilidade de encontrar os pais das crianças para avaliar a validade da denúncia, a CPCJ da Amadora decidiu “remeter os processos para os serviços do Ministério Público”. A explicação é simples: contactar os pais não era só necessário para encontrar as crianças — era também obrigatório perante a lei: a CPCJ só pode atuar com o consentimento dos pais. Qualquer medida à força, sem o acordo da família, tem sempre de ser determinada pela justiça.
Também aqui o processo não foi veloz. Segundo a Procuradoria-Geral da República, a informação da CPCJ sobre o caso só chegou ao Ministério Público seis meses depois da denúncia. “Em março de 2017, a CPCJ remeteu ao Ministério Público os processos de promoção e proteção que tinha instaurado a favor das crianças por não ter conseguido obter consentimento legitimador da sua intervenção face ao desconhecimento do paradeiro dos pais”, lê-se na resposta da PGR, enviada por escrito ao Observador.
Quando recebeu toda a informação da CPCJ, o Ministério Público “abriu um processo interno com vista a recolher elementos que o habilitassem a propor uma ação judicial” — na prática, procurou reunir elementos para decidir se avançava com um processo ou não — e começou a procurar os pais e as crianças, como já tinha feito a comissão. Para isso, o MP pediu ajuda extra de outras entidades: polícia, Segurança Social e Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Mas nenhum deles os encontrou. “Não foi possível tal localização, desde logo atenta a demolição da construção onde terão habitado e o desconhecimento da sua nova morada”, explica a PGR, adiantando que, sem encontrar as crianças, não foi possível sequer instaurar um “processo judicial de promoção e proteção, o qual, necessariamente, pressuporia o conhecimento do paradeiro das crianças”.
A dúvida, porém, é imediata: como é que PSP, Segurança Social e Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares não conseguiram encontrar uma família que continua a viver na mesma rua e a apenas 10 metros do local onde vivia antes?
Até agora, ninguém parece ter uma resposta. Mas basta olhar para alguns elementos para perceber que a tarefa talvez não fosse assim tão difícil. Sobretudo tendo em conta que as crianças também não viviam propriamente escondidas: ironicamente, aparecem nas imagens captadas pelo Google Maps da rua onde continuaram a viver.
Pais terão alertado a Segurança Social
Segundo os pais, as obras de demolição da casa, em 2016, foram acompanhadas por alguns elementos da Segurança Social, que ficaram a saber de imediato que a família ia mudar-se para a garagem em frente. “Elas [assistentes sociais] sabem bem onde é que eu estou porque, no dia em que a casa foi abaixo, duas assistentes sociais que vieram viram-nos a colocar as coisas aqui”, conta Mariana, referindo que chegou a confrontá-las com a situação: “Você está a ver onde eu vou dormir com as minhas filhas?”. O pai das crianças explica também que aquela garagem e aquele café, que acabaram transformados em casa, eram de um familiar que os deixou ficar ali.
Contactada pelo Observador, a Câmara Municipal da Amadora disse apenas que, após a demolição, o arrendatário que vivia no piso de cima “teve acompanhamento da Divisão de Intervenção Social Municipal com vista à sua autonomização habitacional” e que a família, como não fez “qualquer candidatura a atribuição de habitação municipal”, “abandonou o bairro”. O Observador confrontou a Câmara com a versão dos pais, que garantem que não só não abandonaram o bairro e como terão dito logo no dia da demolição que iam viver para aquela garagem, mas ainda aguarda resposta.
Câmara sabia desde 2016 que pai tinha uma oficina no local onde, afinal, viviam
Outro elemento que contraria a ideia de um desaparecimento da família sem deixar rasto — e que mostra que seria possível chegar a uma morada, pelo menos, de contacto — é que a autarquia sabia desde 2016 que a família podia ser localizada naquela garagem. E foi a própria Câmara Municipal a admiti-lo, ao confirmar, na mesma resposta escrita enviada ao Observador, que nesse ano, João Moura “alegou ainda ter atividade comercial no espaço correspondente ao número 23 da Estrada Militar da Damaia, construção não cadastrada não habitacional, onde labora uma oficina (construção onde agora foi detido)”. Ou seja, mesmo podendo não saber que a família vivia ali, a autarquia sabia que o pai das crianças tinha lá uma oficina, onde poderia ser encontrado.
Crianças têm vacinas em dia e um das gémeas esteve internada em 2018
Também o Hospital Santa Maria contactou com, pelo menos, uma das gémeas. A 3 de novembro de 2018, a criança deu entrada neste estabelecimento hospitalar, onde lhe foi diagnosticada escarlatina, acabando por ficar internada durante mais de 20 dias. Além disso, as gémeas têm todas as vacinas em dia, como verificou o Observador através do boletim de vacinas das crianças — o que indica que, pelo menos para serem vacinadas, as crianças estavam inseridas no Sistema Nacional de Saúde.
Mariana e João “eram muito conhecidos” e as meninas andavam sempre na rua
Se o conhecimento de entidades como a câmara ou o centro de saúde poderia não ter ajudado na procura pela família — por falta, por exemplo, de partilha de informação real entre as várias bases de dados —, há um outro elemento que deixa claro que havia mais quem soubesse que pai, mãe e duas filhas viviam ali.
A começar, claro, pelos vizinhos que, segundo Mariana, continuavam a ver a família, recusando também a ideia de que não deixava as crianças saírem de casa. “As meninas andam sempre por aqui. Às vezes iam lá à tarde ao supermercado, toda a gente as conhece”, garante.
Mas, mais que isso, a própria PSP — que, segundo a PGR, não conseguiu encontrá-los — conhecia-os bem. Foi isso mesmo que disseram ao Observador alguns agentes de uma das esquadras daquela zona, e de forma muito clara: Mariana e João são muito conhecidos e toda a gente sabia onde viviam.
À terceira denúncia, a família é encontrada pelo MP
Em julho de 2019, a CPCJ da Amadora recebeu um nova denúncia de “negligência grave relativa a duas crianças” e abriu um novo processo de promoção e proteção. De imediato, diz em comunicado, pediu “a colaboração da PSP para identificação e notificação dos pais, por forma a obter o necessário consentimento para a intervenção e avaliar a situação de perigo reportada”. Mas, mais uma vez, não foi “possível chegar ao contacto” com os pais e a comissão acabou por remeter de novo o caso “com carácter de urgência para os serviços do Ministério Público”.
O desfecho é o que se conhece: desta vez, o MP conseguiu localizar a família e os elementos da PSP chegaram à morada certa. “Todos habitam na Estrada Militar da Damaia, n.º 23, que é uma garagem/oficina de pneus”, lê-se no mandado de detenção a que o Observador teve acesso. No documento apresentado aos suspeitos no dia 14 de agosto, todos os indícios contra o casal aparecem enumerados: que os pais “são toxicodependentes e praticam os atos de tal natureza também em casa e na presença das menores”; que as gémeas “nunca frequentaram a escola” nem “qualquer estabelecimento de saúde”; que estão “subnutridas” e “sujas”; que a casa “não tem condições de salubridade” e as crianças “coabitam com ratos e outros animais”; que “durante o dia as crianças são fechadas” e apenas é autorizada a sua saída “no período da noite”; e que João Moura “anda armado”.
Os pais, suspeitos de dois crimes de violência doméstica, foram presentes a tribunal e foi-lhes aplicada a medida de coação mínima, o Termo de Identidade e Residência. As gémeas foram levadas para uma instituição. “No âmbito deste processo proceder-se-á ao completo diagnóstico da situação atual e do quadro familiar e social que à mesma conduziu”, explica a PGR. A investigação está em curso e está em segredo de justiça. Os pais negam qualquer prática de crime. “Temos uma falha: elas não foram à escola. Mas agora estarmos acusados de crime? Isso é tudo mentira“, garantem.